Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Livro retrata o jornalista, e não a lenda

Velhos jornalistas costumam contar histórias sobre José Ramos Tinhorão. Se gostam dele, é possível lembrar coisas como o elogio feito a um jovem candidato a copidesque por um editor muito atento à qualidade do texto jornalístico: ‘Se você continuar assim, pode vir a ser quase tão bom quanto o Tinhorão’. Mas se não gostam, talvez citem uma das respostas dadas por ele a repórteres que o provocaram querendo saber sua opinião sobre artista recém-falecido, o qual, sabidamente, Tinhorão já fulminara com suas críticas, o jazzman Victor Assis Brasil: ‘Morreu? Agora só falta o Paulo Moura…’

Não há muitas histórias como essas no livro Tinhorão, o legendário, de Elizabeth Lorenzotti, lançado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. No entanto, sai-se dele sabendo mais – e conhecendo melhor – o polêmico jornalista, crítico de música e historiador de cultura urbana do que pelo farto anedotário que ele tem inspirado. A autora, com acerto, preferiu traçar um retrato amplo, objetivo e nada folclórico de seu personagem a repetir episódios como o de Antonio Carlos Jobim, um dos principais alvos de Tinhorão, que começava o dia urinando no vaso de tinhorão, a planta (este, por acaso, é atribuído a uma invenção de Hermínio Bello de Carvalho, que assim se vingou do crítico que não gostou nem um pouco de sua estreia como cantor).

‘A bossa nova não sabe quem é o pai’

Há muitos Tinhorão no livro, além do crítico. O primeiro é mesmo o jornalista que, em plena vigência da reforma do Diário Carioca, se tornou famoso pela excelência de seus textos, enxutos, criativos, tecnicamente perfeitos, mas de um redator que sabe como e quando pode driblar o rigor dos manuais. Um mestre nos textos-legendas, o que justifica o apelido de ‘legendário’ usado no título do livro.

O Tinhorão seguinte – lamentavelmente não reconhecido pelos meios acadêmicos – é o historiador, o pesquisador obsessivo que transformou sua matéria-prima em teses que, publicadas como artigos de jornal e depois reunidas em livros, os mesmos meios acadêmicos jamais conseguiram igualar, tanto em fundamento como em qualidade literária.

Mas foi o crítico, com sua visão marxista da arte, quem multiplicou adversários pela vida afora, alguns, mais que adversários, inimigos. Toda a primeira geração de bossa-novistas – compositores, letristas, cantores, instrumentistas – viu-se atingida pela famosa abertura do ensaio publicado na revista Senhor em 1966, quando o movimento já fazia mais sucesso no exterior:

‘Filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana – que é, inegavelmente, sua mãe –, a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai.’

Elizabeth Lorenzotti mergulha fundo nesse tema, ouvindo prós e contras, além do próprio Tinhorão.

Ensaísta irrefutável

Ouve críticos do crítico e ouve as réplicas do criticado. A autora aborda ainda alguns dos debates em que ele se envolveu, um deles, antigo, sobre a mesma bossa nova (começando pela histórica revelação de que o famoso concerto no Carnegie Hall foi um fracasso), e outro, mais recente, sobre ‘a morte da canção’, em que teve como opositores músicos e letristas da chamada vanguarda paulista.

Por toda a sua argumentação e pelos exemplos que Elizabeth faz desfilar pelas páginas do livro (enriquecido por 16 crônicas exemplares do estilo de Tinhorão, incluindo, naturalmente, a da paternidade da bossa nova), há pelo menos uma conclusão que os meios acadêmicos deveriam observar para o levarem mais a sério: se o crítico é discutível, o autor dos livros, verdadeiros tratados de cultura popular, publicados aqui e em Portugal, é irretocável. Ou melhor, irrefutável, o ensaísta de ótimo texto apoiando-se no rico material que o pesquisador reuniu em quase 60 anos para afirmar o que acadêmico algum consegue contestar.

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Jornalista