Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Macunaíma veio da Venezuela

Corria o ano de 1927. Mário de Andrade vivia em Araraquara, onde até hoje pode ser vista a pequena mesa em que escreveu Macunaíma, a história do herói sem nenhum caráter.

Herói sem nenhum caráter! Como pode ser herói uma pessoa sem nenhum caráter?

O escritor não utilizou a palavra ‘caráter’ no sentido moral ou ético, e, sim, para dizer que seu herói está em formação, que não tem ainda marcas definidas de personalidade, semelhando um tipo nacional deveras insólito.

Em linguagem arroz com feijão, usou caráter no sentido que a palavra tem no grego (kharakter, marca, sinal gravado, traço particular), significado que os romanos acolheram e conservaram no latim (character). Caractere é, por exemplo, o que você imprime na folha ou na tela a cada vez que digita uma letra, número ou sinal do teclado.

Mário de Andrade, em prefácio que não incluiu na primeira edição de sua obra-prima, diz, como que se explicando:

O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenha auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro, não. Está que nem rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas, ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma‘.

Mas o escritor acrescenta um trecho pouco citado, dando brecha ao significado ético e moral de ‘caráter’: ‘Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza (a honradez elástica / a elasticidade de nossa honradez) o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias‘.

E adiante diz: ‘Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter (Gozei). Vivi de perto o ciclo das façanhas dele. Eram poucas‘.

Quase oitenta anos depois, Sebastião Nery retoma o assunto em sua coluna (Tribuna da Imprensa, 16 nov 2006: ‘Macunaíma não é brasileiro. É venezuelano. Mário de Andrade roubou. Quem me ensinou foi o jovem e competente embaixador do Brasil em Caracas, Renato Prado Guimarães, em 1990, eu exausto chegando de 1.700 quilômetros de carro por estradas de terra (hoje tudo asfaltado) entre Boa Vista e Caracas (300 quilômetros no Brasil, 1.400 na Venezuela)’.

Diz mais o jornalista: ‘Theodor Koch Grumberg, um alemão aventureiro, que se meteu pela floresta amazônica no princípio do século passado, publicou em Berlim, em 1917, em cinco volumes, a história de suas viagens: ‘De Roraima ao Orinoco’. Recolheu as lendas da região, inclusive a de ‘Urariquera’ e suas peripécias’.

Mário de Andrade, mais que gênio, oxigênio de nossas letras, lia em alemão, ferramenta importante para ele descobrir e recriar Macunaíma, trazendo-o do alemão e da Venezuela, para o português e para o Brasil.

PS. As modelos que estão morrendo revelam a ponta do iceberg: a mídia está passando por uma crise de editores sem precedentes. De quem é a responsabilidade por pautas que apresentam garota de programa como escritora e modelo como atriz? A mídia não é inocente na formação de padrões, principalmente num país como o nosso, em que os mais jovens ficam pouco tempo na escola, lêem pouco e, quando crianças, são educados pela televisão ou por babás que recebem remuneração de escravos, mas que na verdade são docentes, professoras ou tutoras dos filhos da Casa Grande. Todos os dias – ou, melhor, todas as noites – a mídia, principalmente, a televisão, ensina que para vencer na vida não é preciso ‘honesto estudo’ com ‘longa experiência misturado’. Basta um cursinho rápido, depois de malhar em alguma – como direi? – academia, e a modelo será atriz. Devemos esperá-la brilhando em Cannes, Berlim, Veneza, quem sabe arrebatando o Oscar de melhor atriz? De outra parte, dar um golpe e ficar rico da noite para o dia, é possível a um pilantra de sorte. Mas ainda não inventaram o golpe cultural. Se ontem à noite o cara era um ignorante completo, não pode dar um golpe na calada da noite e tornar-se referência intelectual. Mas a mídia insiste em apresentar figuras assim como exemplos que devem ser, mais que seguidos, copiados.