Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Males da leitura apressada

Resenhar livros dá trabalho. Demanda um tempo desproporcional ao que se paga pela resenha, especialmente no caso inconveniente de livros extensos. Marcelo Leite não é o único a resolver o problema saltando a leitura da maior parte do livro.


Mas, ao empregar o ‘método’ na resenha publicada na Ilustrada (26/9) de meuUma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial [ver abaixo], falseou o argumento central da obra. Leite quer que o leitor faça como ele, economizando tempo e reflexão. Ele decreta que o livro é ‘um texto de intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais’ e sugere que se salte tudo que não incide diretamente sobre o Brasil, como as ‘partes três e quatro, por exemplo’.


A proposta de ignorar mais de metade de uma obra – justamente onde se encontram, nas palavras do resenhista, as ‘digressões histórico-geográficas’ (cruz, credo!) que ‘comprovariam a tese’ – é uma inovação e tanto. Pergunto-me se ele considerou a hipótese de que a sugerida leitura produtivista deturpe a compreensão da tese.


Vítima da pressa de Leite, o leitor da Ilustrada é levado a imaginar que defendo uma tese primitiva segundo a qual o multiculturalismo não passa de ‘conspiração’ da Fundação Ford (FF). Tudo o que Leite não leu – ou leu salteadamente – constitui o desenvolvimento de tese bem distinta.


Revisão racial da história e da identidade


Os fundamentos do que viria a ser o multiculturalismo pós-moderno estão enraizados no pensamento racial clássico e encontraram expressões paradigmáticas nas formulações dos intelectuais que moldaram o imperialismo europeu, elaboraram a doutrina do pan-africanismo e inspiraram as leis raciais aplicadas em distintos países, ao longo de um século. Essa é a minha tese.


A FF só entra na história mais tarde, como um (relevante) ator político da transição entre o universalismo da campanha pelos direitos civis de Luther King e o racialismo dablack politics inaugurada por Richard Nixon.


Proverbialmente, jornais servem para embrulhar peixe. Acho que não é bem assim, mas sei reconhecer a diferença entre a função de um jornal e a de um livro. O primeiro é um espaço adequado para a ‘intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais’ – e tenho feito isso. O segundo é apropriado para investigações de maior fôlego, devotadas a elucidar as fontes históricas de dilemas atuais.


Leite tem todo o direito de sugerir que meu livro só serve para embrulhar peixe – mas uma módica honestidade intelectual o conduziria a ancorar o diagnóstico pelo menos na exposição de indícios de inconsistência da tese realmente exposta no livro.


Só uma vez o resenhista cita uma frase do livro (‘No Brasil, a fronteira racial não existe na consciência das pessoas’), para qualificá-la como ‘duvidosa’. A parte cinco da obra consome 80 páginas para demonstrar essa ideia – e esclarecer o sentido das políticas que intentam inocular a raça no imaginário brasileiro. É uma seção do livro poupada da proposta de não leitura de Leite. Mas ele mesmo a leu distraído.


Um pouco de atenção lhe permitiria saber que interpreto as políticas de cotas raciais como um (importante) fenômeno superficial, sob o qual se oculta o projeto de uma revisão racial da história e da identidade do Brasil. Os leitores da resenha ficaram privados também dessa informação crucial.


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Magnoli faz livro de combate contra cotas
Marcelo Leite # reproduzido daFolha de S.Paulo, 26/9/2009


Não se iluda o leitor com o título da obra. O livro do geógrafo e colunista Demétrio Magnoli não é um compêndio. Trata-se de um texto de intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais.


Seu mérito maior é ter muito menos defeitos que o best-sellerNós Não Somos Racistas, do jornalista Ali Kamel. A tese é a mesma: as ações afirmativas e o movimento negro resultam de uma armação ideológica. Ela conspira contra o princípio da igualdade perante a lei, contra a ideia de nação e, no caso brasileiro, contra seu generoso mito fundacional, a mestiçagem.


É uma tese boa de briga. Toma partido da sociologia de Gilberto Freyre, em sua oposição com a escola de Florestan Fernandes. Até Barack Obama entra nessa capoeira, como mestiço vingador na pátria da dicotomia entre brancos e negros. Kamel e Magnoli prestam um serviço ao debate insistindo na denúncia da prestidigitação estatística que apagou diferenças entres pardos (mestiços) e pretos, juntando-os na categoria binomial de ‘negros’. Se funciona mal nos Estados Unidos, ainda pior no Brasil.


Magnoli é academicamente mais cuidadoso. O leitor terá de procurar bastante até encontrar passagens tão definitivas e duvidosas sobre o caráter nacional quanto esta: ‘No Brasil, […] a fronteira racial não existe na consciência das pessoas’ (pág. 366).


Digressões histórico-geográficas sobrecarregam um tanto a leitura com exemplos de países, instituições, movimentos e autores que comprovariam a tese. As partes três e quatro, por exemplo, poderiam ser saltadas sem prejuízo para o fulcro do debate brasileiro.


Seria uma perda pular, contudo, a reconstituição do papel da Fundação Ford na disseminação mundial das ideias ‘multiculturalistas’, chave do esquema interpretativo de Magnoli. É o ponto alto do volume. É, também, o que mais deixa vontade de entender melhor o que possa estar por trás da conspiração denunciada. Fica a impressão de que se trata de minar os movimentos sociais, segmentando-o em demandas identitárias estanques (etnias, gênero, orientação sexual etc.).


Permanece enigmático, porém, por que tal agenda foi encampada nos Estados Unidos tanto por republicanos quanto por democratas. Não se examina a fundo a hipótese de que seja uma tentativa de responder a demanda social legítima: enfrentar iniquidades que não se dissolvem diante do princípio da igualdade.


Não se busque neste livro de combate a propalada generosidade da mestiçagem. Para Magnoli, políticas racialistas ressuscitam o racismo e, em essência, não diferem das políticas do nazismo e do apartheid. Pouco importa se de um lado está o sujeito do preconceito e, de outro, seu objeto – a crença em raças os irmana.


Não há e não pode haver aperfeiçoamento das ações afirmativas. Aos pardos e pretos pobres de hoje, no Brasil, sob o fardo extra de descender mais obviamente de escravos, resta a esperança de que um dia a nação brasileira cumpra a promessa de dar oportunidades iguais para todos – seja em que geração for.


[Uma gota de sangue, de Demétrio Magnoli, 400 pp., Editora Contexto, São Paulo, 2009; R$ 49,90]

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Sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.