Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Manual do repórter

A townhouse branca num nobre quarteirão do East Side não chama atenção, mas poderia ser tombada – tanto pelo desfile de luminares que por lá passaram, nos últimos 50 anos, como pelo proprietário. Numa manhã adorável de primavera, abro o gracioso portão de ferro, subo as escadas e toco a campainha da porta de vidro que separa o público da outra porta com a inscrição ‘Talese’. Atrás de mim, Taís Moraes, jornalista-cinegrafista-editora, esconde o equipamento. Tememos uma reação rabugenta do anfitrião que estará inevitavelmente vestido como um dândi de outra era, num horário em que muitos colegas seus só deram conta de escovar os dentes.

O sorriso largo e o aperto de mão generoso, apesar da gripe suína, me encorajam a explicar que a trama é um pouco mais complexa. Além da entrevista, precisamos de foto e vídeo (para veicular trechos da conversa no portal do Estado na internet). Ele concorda sem hesitação e me oferece a escolha entre a belíssima sala de visitas, a sala de jantar ou o jardim de inverno; escolho a sala de visitas. Gay Talese, um dos pais do Novo Jornalismo, um nome que ele desdenha, gosta de conversar com anônimos, algo que transformou numa arte ao longo de sua obra – mas como todo bom contador de histórias, não perde a loquacidade ao revisitar as próprias memórias.

O autor do mais famoso perfil de revista da imprensa americana, ‘Frank Sinatra Está Resfriado’, publicado pela revista Esquire, em 1966, não só goza de boa saúde, como não aparenta seus 77 anos. Dois de seus livros mais bem-sucedidos, A Mulher do Próximo, sobre a revolução sexual nos anos 70, e Honra o Teu Pai, uma história da família mafiosa Bonnano, acabam de ser relançados nos Estados Unidos, com novas introduções e posfácios. Vida de Escritor (Companhia das Letras), seu volumoso e atípico livro sobre o ofício que fez dele um cronista obrigatório do pós-guerra americano, sai no Brasil nesta semana.

O ator Stanley Tucci acaba de escrever um roteiro baseado em Para os Filhos, a obra de Talese sobre sua origem italiana. E os 50 anos do que ele descreve como ‘um arranjo incomum’ – seu casamento com a agente literária Nan Talese –, serão contados num próximo livro. Imagino que seu editor estará pronto para registrar bodas mais avançadas porque Talese é lendário na sua lentidão para entregar um manuscrito.

Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade, o jornalista e escritor – que estará no Brasil em julho, participando da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – fala de seu método de trabalho, sexualidade, casamento e, claro, sobre a crise dos jornais e por que a sociedade precisa deles: ‘No prédio de qualquer redação de um jornal respeitável, a qualquer momento, há menos mentirosos por metro quadrado do que em qualquer outro prédio.’

Assista aqui a trechos da entrevista com Gay Talese.

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O senhor já descreveu o ato de trabalhar num livro com metáforas dolorosas como ‘expelir pedras de rins’. Com este não foi diferente, certo?

Gay Talese –Pior ainda. Demorei mais de 10 anos. No começo, você tem uma ideia e é movido pela curiosidade. Mas não é porque você persegue a própria curiosidade que vai chegar a algum lugar, na análise final de um trabalho publicado. Você tem que se envolver ou, ao menos, começar a se envolver. É aí que o que eu chamo de perda de tempo começa a progredir, em reversão. Porque para escrever não ficção – eu não escrevo ficção –, não fabrico fatos, não tomo liberdade com eles. Para que a sua procura pelos fatos tome a forma da narrativa de ficção, você tem que conhecer seus personagens muito bem. Tem que estabelecer com eles uma compatibilidade, uma compreensão não só do que eles dizem mas também do que estão pensando. É preciso que haja um relacionamento, quase um caso de amor. O que não quer dizer que você passe por uma rendição de todo o afeto e da capacidade de julgar – de jeito nenhum. Há sempre uma parte da vida do escritor que é ser escritor, não importa como você viva. É a sensibilidade isolada do escritor, o estado de alerta, a separação – como escritor, você se separa dos outros o tempo todo. Porque há uma parte de você que está registrando, como escritor, o que vê e o que sente. Mas, ainda assim, você precisa desta relação de trabalho muito próxima e isto leva tempo. Assim como uma amizade demora a se formar, assim como fazer a corte leva tempo. Às vezes, você encontra alguém, acha que gosta da pessoa, que até ama esta pessoa e, depois, não dá certo.

Foi assim com Vida de Escritor?

G.T. – No livro, eu descrevo a forma que acompanha a curiosidade, o que você faz depois que a curiosidade o leva para uma certa direção. Como você se mantém na missão, como mantém o curso, como não se perde. É isto o que eu chamo a arte de ‘hanging out’. É assim que faço meu trabalho. Eu não saio por aí anotando tudo ou gravando. Mas eu carrego comigo estes cartões aqui (mostra várias cartolinas de caixas de camisas sociais recortadas em retângulos que cabem no bolso do paletó). E eu saio com uma caneta o tempo todo, anoto umas coisas, de preferência não na frente das pessoas. E aí, quando termino de trabalhar no fim do dia, uso a máquina de escrever (a mesma IBM elétrica há 35 anos). Depois que faço toda a pesquisa – e isso pode demorar anos – é que escrevo. Eu demoro 7, 8, 9 anos para escrever um livro.

Mas, se ficar entusiasmado com um personagem ou uma história, não dá vontade de começar a escrever logo?

G.T. – Oh, não! Nunca tenho vontade de escrever logo (risos). E muitas vezes não quero escrever de jeito nenhum… Esta parte que é dureza. Divertido é pesquisar. Especialmente quando viajo muito com os personagens; às vezes vou longe atrás deles. Neste livro, quando fui atrás da jogadora de futebol chinesa, não tinha nada marcado com ela. Simplesmente tomei um avião e fui procurá-la entre os bilhões de chineses. Mas não é possível escrever sem antes organizar, avaliar o material que se tem. Nunca fiz cinema mas o meu método não é muito diferente do de um diretor fazendo seu storyboard. Tudo o que eu escrevo, seja um livro ou artigo de revista, começa com uma cena.

No posfácio da nova edição de A Mulher do Próximo, o senhor diz que nada mudou em termos de atividade sexual. Mas não há uma diferença? A motivação do sexo livre hoje não é mais cínica e menos boêmia?

G.T. – Em 1970, quando comecei as pesquisas para o livro, o momento era de muita agitação. Havia o movimento contra a Guerra do Vietnã – os estudantes se engajavam de um modo como não se engajaram com a guerra no Iraque, porque tínhamos o alistamento obrigatório. Havia um espírito de revolução, a continuação do movimento de direitos civis, a explosão feminista. As leis contra obscenidade tinham mudado no final da década de 50 e isto afetou tudo, o cinema, a performance, a fotografia; a nudez foi liberada nos anos 60. As jovens tinham se liberado e eram mais permissivas do que suas mães. Em casas de massagens havia mulheres com idade para serem universitárias trabalhando com a mesma informalidade com que trabalhariam de garçonete ou numa biblioteca. Era um trabalho como qualquer outro, não havia a consciência, não havia o questionamento de si mesmas sobre o que faziam – era, de fato, sexualidade mercenária. Agora, você vê a mesma coisa, mas não pela mesma razão. A revolução dos anos 70 não é mais revolucionária, é ordinária. Para a minha perplexidade, hoje jovens praticam sexo oral como se fosse um aperto de mão. Quando eu estudava, sexo oral quase não era mencionado. Era mais íntimo do que intercurso sexual. Quando Bill Clinton disse que não estava fazendo sexo com ‘aquela mulher’, Monica Lewinsky, quem sabe achasse mesmo que não era sexo, só uma apresentação social…

No posfácio de A Mulher do Próximo, o senhor ataca críticos pela reação ao lançamento do livro.

G.T. – Quando A Mulher do Próximo saiu, em 1980, foi severamente criticado, e eu também. Consideram o livro uma tentativa de me esbaldar. É verdade que, tal como em outros livros, eu me envolvi totalmente, tornei-me nudista, era freguês de casas de massagens. Como é que você sabe o que se passa ali se não participa? Ficar na coletiva de imprensa, pegar o avião com o presidente, isso dá ao repórter a versão oficial. A reportagem sobre a sexualidade tem que ser feita em primeira mão. Ou você tem acesso ou desiste de escrever.

Mas o livro lhe custou em termos de privacidade…

G.T. – Eu invadi a minha própria privacidade, deliberadamente, e me submeti ao mundo sobre o qual queria escrever, o mundo erótico, privado, do adultério consensual, do merchandising sexual e da pornografia. Sou de família católica, era coroinha em 1940. A ideia do pecado sexual estava inculcada em mim. Queria descobrir a diferença entre o pecado na minha infância, quando as freiras me contavam o que ia me mandar para o inferno, e o pecado naqueles anos. Quem eram os novos pecadores? Eram diferentes de mim? Então, tive que me associar aos pecadores. Se você quer escrever sobre eles, tem que acompanhá-los ao inferno. ‘Hanging out’ no inferno, foi o que fiz.

E sua mulher, que foi descrita na imprensa como a esposa passiva?

G.T. – Aí está o problema. Lá estou eu, no meio daquele troca-troca, liberdade total. Sou casado e as minhas filhas são adolescentes. E eu fui muito franco sobre tudo. Não tenho motivo para me desculpar, era um grande repórter, estava escrevendo sobre a verdade e explorando a verdade. Enquanto isso, minha mulher ficava lendo as histórias sobre mim e os jornais especulavam sobre ela. E ela dizia: meu marido é escritor, está trabalhando no livro. Mas ela queria se divorciar do meu trabalho. Não de mim. Se bem que ela saiu de casa algumas vezes, não aguentou tanta atenção.

Por que o senhor está escrevendo memórias do seu casamento de 50 anos com Nan Talese?

G.T. – É uma boa história. Um escritor tem uma ideia do que é uma boa história. É claro que ela não é igual para Gabriel García Márquez ou Philip Roth. Tenho ideias muito claras sobre o que me interessa. Durante todo o tempo em que estava contando outras histórias, estava casado com a mesma mulher. E foi uma história que se passou toda no mesmo lugar, nesta casa. Nós nos casamos aqui em 1959.

Pesou na sua decisão a possibilidade de que talvez outros autores fossem escrever sobre o seu casamento após sua morte?

G.T. – Sim, achei que eu devia escrever porque saberia mais do que um biógrafo depois que estivermos mortos. Nós temos um arranjo incomum no nosso casamento.

Mas sua mulher colabora com o projeto sendo entrevistada por outros repórteres, certo?

G.T. – Ela fala com dois repórteres e eles escolhem o que perguntar. Ela relutou no começo mas, após ver uma reportagem recente sobre o assunto, constatou uma reação tão favorável que se animou. Testemunhamos muita coisa. Como editora, ela teve grandes experiências.

O senhor compara a exposição da sua privacidade de então e a privacidade na vida contemporânea?

G.T. – As pessoas precisam tanto se comunicar com os outros. Dizem que querem privacidade, mas ninguém quer. Quem quer isolamento? Às vezes se quer estar sozinho, por momentos, mas gente precisa de gente. É muito diferente se os papparazzi estão com as lentes na janela do seu quarto. Mas acho que você consegue o que quer. Se quer privacidade, pode escapar.

O senhor disse que hoje seria impossível escrever artigos de mais de dez mil palavras para revistas, como o senhor fazia na Esquire. Qual o efeito da internet sobre a reportagem?

G.T. – Não uso a internet, não me interessa a tecnologia. Trabalho basicamente como há 50 anos. Se precisar saber quem foi o vice-presidente no ano tal, posso usar o Google e não vou até a biblioteca… Mas as pessoas sobre quem quero descobrir alguma coisa não são famosas. Se eu fizesse uma busca no Google sobre os personagens reais de A Mulher do Próximo, eles apareceriam associados ao meu nome. Muita gente que entrevistei estava falando com um repórter pela primeira vez. Eu sou o historiador de pessoas que não têm história registrada em público.

O senhor escreveu há 40 anos a primeira narrativa importante sobre o New York Times. Como vê as dificuldades que o jornal atravessa?

G.T. – Você está me perguntando sobre o futuro do jornalismo. Bem, acho que a nova geração que assumiu o jornal nos anos 90, no limiar da revolução tecnológica, amadureceu sob o impacto da tecnologia e fez um erro calculado de oferecer notícias de graça. A publicidade ia pagar por todo o custo de apurar notícias. A decisão foi feita num comitê corporativo, como se fosse um colégio de cardeais. Os executivos e os proprietários, os Sulzbergers, acho que eles prestaram um desserviço a si mesmos e desvalorizaram um grande jornal ao concordar que o negócio era entregar tudo de graça. Eles arruinaram o próprio futuro quando foram incapazes de julgar de maneira adequada o que faziam. Porque o que o New York Times faz não pode ser feito por outros na internet. Há outros grandes jornais, claro, mas vamos ficar com o jornal que conheço melhor. Eles mandam repórteres para o Rio, para Roma, para a Islândia. E o custo de obter a notícia – de forma correta, não só em primeira mão, mas de maneira correta – deve ser a maior prioridade. Não há alternativa no mundo para este tipo de trabalho. Não se resolve com bloggers inventando histórias nos seus quartos. O estrago já foi feito e eles perceberam, tarde demais, que era inviável do ponto de vista financeiro. O que fazer agora? Bem, para ser justo, eu lhes dou crédito por não ter reduzido a redação a ponto de prejudicar a qualidade do jornal. O Times ainda é um grande jornal. Acho que é um jornal melhor hoje do que quando saí, em 1965.

Por que o Times se tornou melhor?

G.T. – Os jornalistas são mais bem educados do que os da minha geração. A linguagem, o vocabulário deles é mais inteligente, fazem referências literárias e esperam que o leitor entenda. Mas há o lado negativo. Há uma nova intimidade entre o mundo do governo, o mundo corporativo e o poder da imprensa. É como uma fusão de classes sociais, todos vêm de uma formação educacional mais sólida. E acho também que os jornais, principalmente o Times, cobrem governo demais e não o país que não vive perto do governo. Se eu fosse o editor, cortava a redação de Washington pela metade e distribuía os repórteres pelo país.

Como o senhor vê o desempenho do governo Obama?

G.T. – Rezei para o país ter uma cara nova. Adoro o fato de que ele vai conversar com o mundo, com Castro, com Chávez. O país não pode mais escolher com quem fala se espera ser ouvido. A jornada do Obama é entender e ser entendido. Ele não é um covarde, não tem a arrogância de Bush.

E como vê a maneira como Obama lida com a imprensa, com menos reverência e uma certa habilidade de falar direto com o público?

G.T. – Eu acho ótimo, ele tem razão de apontar as limitações da nossa imprensa que, às vezes, desinforma. E, o que é pior, vai adiante espalhando a desinformação. Há tantos exemplos de reputações destruídas por jornalismo incompetente.

Por que nós precisamos de jornais?

G.T. – Porque no prédio de qualquer redação de um jornal respeitável, a qualquer momento, há menos mentirosos por metro quadrado do que em qualquer outro prédio. Há mentirosos nos jornais também, mas em menor número. Nos prédios do governo, nas escolas, instituições científicas, estádios de esporte, nas fábricas, a mentira circula num grau mais alto. Os jornais estão mais interessados na verdade, mesmo se cometem erros, às vezes, erros involuntários. E se você ainda quer a verdade, é mais fácil chegar a ela por intermédio de um jornal do que em qualquer outra instituição. Os jornais ainda oferecem a melhor chance de manter a verdade em circulação.

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Jornalista