Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mario Vargas Llosa

‘A Grã-Bretanha é provavelmente o único país do mundo onde as comissões investigadoras nomeadas pelo governo servem para alguma coisa. Na maioria dos países que conheço, as autoridades nomeiam estas comissões para distrair a opinião pública de algum problema candente que a instiga e para adiar sua solução até as calendas gregas. A função destas comissões costuma ser a de diluir no tempo um tema espinhoso que poderia prejudicar o poder político e apresentar suas conclusões, geralmente gasosas e obscurecidas por um jargão jurídico fora do entendimento do cidadão comum, quando já quase ninguém se lembra do assunto pelo qual elas foram nomeadas.

Na Grã-Bretanha não costuma acontecer assim, por duas razões. Primeiro, porque quem preside e integra estas comissões são integradas quase sempre por pessoas de integridade, as quais o governo não poderia manipular nem que se dispusesse; segundo, porque, embora a autoridade as nomeie, elas gozam do respaldo das forças políticas tanto governamentais quanto de oposição e de uma opinião pública que acata seus informes, convencida de que estes resultam de um trabalho sério e independente.

Esta pequena reflexão relaciona-se ao veredicto do juiz Brian Hutton, nomeado pelo governo britânico para investigar a morte do cientista David Kelly, que se suicidou em julho após a revelação de que ele havia sido a fonte de uma reportagem do jornalista Andrew Gilligan, da BBC, que provocou a maior crise enfrentada pelo governo de Tony Blair. O juiz exonerou Blair e colaboradores de manipulação dos informes dos serviços secretos sobre as armas do Iraque e censurou a BBC por ter divulgado informações ‘infundadas’, sem que os organismos de controle da rede funcionassem e impedissem a difusão de informações inexatas ou duvidosas, capazes de prejudicar instituições e pessoas. As conclusões do juiz Hutton provocaram uma série de renúncias na BBC – do presidente, do diretor-geral e, é claro, de Gilligan.

Embora muitas pessoas discordem da decisão do juiz, esta foi rigorosamente acatada.

Tenho pena da BBC, uma empresa que, muito possivelmente, como serviço público de rádio e televisão, não tem similar no mundo, por sua independência frente aos poderes políticos, econômicos e militares, mas alegro-me com o exemplar sistema institucional britânico, que, a meu ver, sai reforçado desta prova. Dito isso, várias considerações se impõem em torno das conclusões de Hutton para que se possa julgá-las com conhecimento de causa.

A investigação, que durou quatro meses, foi levada a cabo com uma transparência incomum, sobretudo num caso em que os serviços secretos e material reservado de inteligência são expostos. As sessões nas quais as 70 pessoas chamadas a declarar foram públicas, e boa parte delas, televisionada. Também a profusa documentação revisada foi posta à disposição do público, pela internet. A enorme simpatia que fora despertada pelo caso trágico do doutor Kelly não foi obstáculo para que, à luz dos testemunhos e documentos apresentados, se tornasse evidente que ele se havia excedido em suas iniciativas, transformando-se em informante da imprensa apesar de suas funções no Estado obrigarem-no ao mais estrito segredo profissional e, sobretudo, dando declarações contraditórias quando viu-se acossado pelo escândalo. Mas, sem dúvida, o fato mais importante evidenciado pela investigação do juiz Hutton é o de que o governo Blair utilizou, para justificar sua decisão de intervir no Iraque, alguns informes dos serviços secretos, mas sem desfigurar nem ‘esquentar’ seu conteúdo, como alegava a oposição. Esta conclusão salvou um governo que muitos viam já em queda livre, num país onde uma grande maioria da opinião pública foi e continua sendo contrária à invasão do Iraque.

Quando se examina em detalhes as ‘distorções’ pelas quais se responsabilizou Gilligan sobre as declarações fornecidas pelo doutor Kelly e pelas quais lorde Hutton censurou a BBC com tanta dureza, tem-se vontade de rir. Aqui no Peru, onde passo alguns meses, eu me atreveria a dizer que não há um único órgão de rádio, jornal ou TV que – sem nem dar-se conta de que o faz na maioria dos casos – não enfeite, oriente e aproveite as informações de modo infinitamente mais subjetivo e partidário do que o jornalista inglês fez em seus programas. E no entanto ninguém se surpreende ou escandaliza com o fato de ‘informar’ ter se transformado no Peru – dir-se-ia que há um consenso geral a respeito – em outro modo de travar as batalhas políticas e de desacreditar os adversários. Atrevo-me a pensar que, em parte da América Latina e do mundo, essa degradação da objetividade jornalística é um fato consumado e talvez irreversível.

Não acontece nada parecido na Grã-Bretanha? Esse país tem, lembremos, uma imprensa marrom que goza de uma gigantesca popularidade e dá um jeito de todo dia oferecer às hordas de leitores um novo escândalo que destrói uma reputação. Como se conciliam ambas as coisas? Conciliam-se porque, junto a esse mundo jornalístico que vive da maledicência, na Grã-Bretanha ainda há, por sorte, alguns órgãos de imprensa – minoritários – que mantêm os mais elevados níveis de responsabilidade ética e profissionalismo. A BBC está entre eles. É difícil para quem não escutou suas notícias e assistiu a seus programas ter uma idéia exata do que quero dizer. E a razão é muito simples:

em toda parte, os serviços de comunicação públicos, embora em teoria pertençam ao Estado e estejam a serviço de toda a sociedade, na prática expressam e defendem os pontos de vista do governo da vez. O que diferencia uns dos outros são as precauções e técnicas de que se valem para funcionar, preservando as aparências da independência e da objetividade informativa.

A BBC não. Sempre foi uma entidade que defendeu sua independência de todos os poderes e manifestou em suas opiniões o pluralismo da sociedade britânica. Seus esforços para estabelecer uma clara demarcação entre informação e opinião criaram um padrão que rádios e tevês públicas do restante do mundo trataram de imitar – sem muito êxito na maioria das vezes.

E isto lhe conferiu um prestígio que lhe tem garantido esta independência que os governos dificilmente teriam se atrevido a violentar, pois sabiam que isto teria tido para seus dirigentes nefastas conseqüências perante o eleitorado. Esta independência lhe permitiu contar com a colaboração dos melhores talentos que não hesitavam em colaborar com um ente público sabendo que seu trabalho não seria usado politicamente.

Sempre me lembro de um episódio que envolveu a BBC durante a Guerra das Malvinas, período que passei na Inglaterra. Os informativos da BBC, aos quais eu assistia de manhã e à tarde, informavam com luxo de detalhes sobre a evolução do conflito em suas vertentes política e militar, levando o empenho de imparcialidade ao extremo de dedicar o mesmo tempo de tela aos discursos da primeira-ministra Margaret Thatcher e do general Galtieri. Esta simetria provocou uma reação irada de parlamentares conservadores e trabalhistas que, observando que se tratava de uma guerra na qual morriam soldados e marinheiros britânicos, reclamaram da BBC uma atitude mais patriótica. O presidente da BBC apareceu e explicou que, antes de dar a conhecer seu parecer, revisaria pessoalmente as informações questionadas.

Fechou-se não sei quantos dias a analisar os noticiários sobre a guerra.

Emergiu finalmente numa entrevista coletiva que foi breve e definitiva. O presidente felicitou ‘seus’ jornalistas pelo excelente trabalho realizado e os exortou a continuar mantendo essa linha de objetividade informativa, sem deixar-se intimidar por chantagens patrioteiras. Assunto encerrado.

A decisão de lorde Hutton e o descalabro que ela causou nos serviços de informação da BBC devem ser lidos contra o pano de fundo de casos como o que recordei. É bom que se exija de uma instituição que pertence a todos os britânicos e na qual todos os cidadãos depositam sua confiança algumas normas de conduta ética e profissional irrepreensível. Gilligan, muito condizente com o que em nossos dias é uma expansiva cultura que faz da informação um espetáculo divertido antes que uma fonte de conhecimento, se permitiu retocar algumas declarações porque desse modo conseguiria um furo e garantiria mais ouvintes. Seus chefes, talvez também contaminados por aquela febre, deixaram passar a leve transgressão da ética profissional, esperando que, sem dúvida, nada aconteceria. Esta é a gota que teria podido furar a pedra e marcar o princípio do fim do que tornou a BBC a emblemática instituição que é.

Obrigado, senhor juiz, por ir contra a corrente mais impetuosa de nosso tempo e empenhar-se em exigir que o jornalismo não imite a ficção e seja, como o bom futebol, uma estimulante exibição de destreza, jogo limpo e decência.’

 

Fernando Duarte

‘De Downing Street para os palcos’, copyright O Globo, 8/02/04

‘Mesmo o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, que semana passada sobreviveu a um dos maiores desafios de sua carreira política, não parece ser a pessoa mais satisfeita com o desfecho do inquérito Hutton. O processo investigou as alegações de que o governo teria manipulado informações de inteligência para justificar a participação do Reino Unido na invasão do Iraque e Blair escapou. Mas para o polêmico ex-diretor de Comunicações de Downing Street Alastair Campbell, inocentado pelo inquérito, o passeio pela berlinda fez bem ao inflado ego e o transformou numa bizarra personalidade cult: janeiro marcou o início da turnê nacional de talk-shows em que o ex-escudeiro de Blair, apelidado de vice-primeiro-ministro por críticos e admiradores, conta detalhes de sua vida política e privada. E ele pode se gabar de estar lotando sessões.

Em ‘Uma noite com Alastair Campbell’, o ex-escudeiro abre o coração para discutir assuntos ligados tanto aos 13 anos que passou a serviço de Blair (e que teve início quando o hoje primeiro-ministro ainda ensaiava a caminhada até o número 10 de Downing Street) quanto à luta contra o alcoolismo e os tempos de estudante, em que garante ter tocado gaita de foles nas ruas de Nice, França, para pagar a viagem.

Campbell até faz elogios à BBC, com quem ele e Blair travaram uma queda-de-braço por conta das acusações feitas pelo jornalista Andrew Gilligan. A rede acabou duramente criticada pelo inquérito Hutton.

No show de abertura, em Newcastle, os 400 ingressos foram vendidos antecipadamente e eram oferecidos a preços inflacionados nas mãos de cambistas: alcançaram 500 libras esterlinas (cerca de R$ 2,7 mil), quando o preço oficial era de apenas 14. Mesmo com todo o interesse pelo inquérito Hutton, essa quantia equivale ao que atravessadores cobraram por ingressos nas turnês de Paul McCartney e dos Rolling Stones em 2003.

‘O mais surpreendente foi ver Campbell enfrentando as perguntas com mais charme e bom humor do que ele costumava usar em Downing Street, ainda que tenha dito que só responderia a perguntas de jornalistas na platéia que tivessem pago por seus ingressos’, escreveu o repórter Brian Wheeler no site da mesma BBC tão criticada pelo ex-diretor de Comunicações.

As alfinetadas, porém, foram maioria na mídia britânica e mesmo em outras partes da Europa. Campbell, que alegou um excesso de exposição para deixar o governo, também não era a figura mais amada pelos correspondentes estrangeiros em Londres, graças ao desprezo dispensado a eles (‘Seus leitores não votam’, era sua resposta para pedidos de entrevista com integrantes do primeiro escalão).

Algumas críticas beiraram a crueldade. Lisa Mullen, colunista da revista de variedades ‘Time Out’, disse que a experiência de ver Campbell no palco é ‘tediosa ao ponto de fazer o público roncar nos assentos’. No entanto, não deve ser tão fácil assim cair no sono quando uma figura pública conta que, além de já ter tido um colapso nervoso quando era editor de política do tablóide sensacionalista ‘Daily Mirror’, teve a experiência de trabalhar como escritor de histórias pornográficas para uma revista masculina.

Ironicamente, o show de estréia acabou acontecendo no mesmo dia em que Gilligan pediu demissão da BBC. Campbell, que confessou ter ficado nervoso antes do show, não quis comentar o assunto. Mas fez uma série de elogios à BBC. Foi aplaudidíssimo.

– Foi um alívio. Antes do show eu só pensava que acabaria sendo vaiado – disse ele, que deixou a vida pública em agosto passado.’

***

‘BBC poderia ter contestado governo Blair’, copyright O Globo, 6/02/04

‘A BBC desperdiçou uma chance de contestar os resultados do inquérito Hutton, na semana passada, em especial as críticas à atuação da corporação no tratamento das acusações ao governo feitas por um de seus jornalistas, Andrew Gilligan, afirmou o ‘Independent’ em sua edição de ontem. O jornal obteve um dossiê em que advogados da BBC alertaram seus executivos de que a decisão de pôr no ar a reportagem de Gilligan estaria garantida pelos dispositivos de liberdade de expressão da Convenção Européia dos Direitos Humanos, bem como por casos judiciais anteriores nos tribunais britânicos em que acusações feitas pela mídia não precisaram ser provadas antes de sua publicação ou transmissão.

Porém, em vez de pedir uma revisão do inquérito, a BBC, que acabou como única culpada depois de uma investigação que incluiu o primeiro-ministro Tony Blair e outras figuras importantes do governo, preferiu sacrificar seu presidente do conselho de diretores, Gavyn Davies, e seu diretor-executivo, Greg Dyke. Além disso, a corporação fez um pedido oficial de desculpas a Blair, considerado desnecessário e humilhante por políticos, jornalistas e parte do público.

Uma fonte da BBC ouvida pelo ‘Independent’ disse que os funcionários ficaram decepcionados com a relutância do comando da rede:

– Tínhamos base e argumentos legais para montar nossa defesa e contra-atacar o governo.

Funcionários da BBC protestaram ontem em frente a prédios da rede em Londres, Glasgow, Birmingham, Bristol, Manchester e Cardiff, cidades onde estão as principais unidades da corporação. Além de se queixar contra os resultados do inquérito, os manifestantes consideram que a situação é uma grave ameaça à independência editorial do grupo.

Ainda de acordo com o ‘Independent’, o dossiê da BBC acusa ex-diretor de Comunicações do governo, Alastair Campbell, de ter mentido tanto para o Parlamento britânico quanto para lorde Hutton, juiz que conduziu o inquérito. Campbell teria omitido detalhes de seu envolvimento numa suposta manipulação de informações de inteligência sobre as ameaças representadas por Saddam Hussein, com o objetivo de ‘esquentar’ o argumento do governo para apoiar a invasão do Iraque.

Líder conservador pede renúncia de primeiro-ministro

Na noite de quarta-feira, Downing Street emitiu um comunicado em que se recusou a comentar a reportagem, sugerindo que as partes interessadas aceitassem o veredicto de lorde Hutton. Porém, o líder do Partido Conservador e principal figura da oposição, Michael Howard, pediu a renúncia de Blair, sob o argumento de que o primeiro-ministro não consegue apresentar justificativas convincentes para a confusão envolvendo a participação britânica na guerra.’

John Lloyd

‘A BBC e o problema da verdade em jornalismo’, copyright Folha de S. Paulo / Financial Times, 8/02/04

‘Pode o jornalismo dizer a verdade? Essa sempre foi uma de suas metas declaradas. Há muitas outras que ocupam uma parte maior do tempo da mídia, entre elas o entretenimento, o lucro e a criação de celebridades. Mas dizer a verdade deveria ser o princípio básico que norteia o jornalismo.

É possível acreditar na verdade jornalística depois de a BBC, um serviço de rádio e televisão visto como o mais objetivo do mundo, ter sido acusada, na semana passada, de distorcer fatos? Será que a emissora, condenada no relatório Hutton, falhou por não ter dito a verdade? Para jornalistas de todo o mundo, a resposta a ambas essas perguntas é ‘sim’.

A verdade é um pico jornalístico que poucos de nós escalamos com freqüência. Poderíamos, é claro, nos esforçar mais para isso.

Quando falamos da verdade, às vezes apelamos para o ensaio de John Stuart Mill ‘Sobre a Liberdade’, segundo o qual do choque de opiniões surgirá a verdade. Mill não viveu para ver como a televisão encara essa idéia. No choque de opiniões que se trava nos estúdios de democracias ricas, políticos e jornalistas tentam falar mais alto. Suas opiniões se chocam, mas raramente o que emerge é a verdade. O público é convidado a avaliar não a questão que está sendo discutida, mas a atuação dos participantes.

O segundo critério pelo qual o jornalismo se pauta é a investigação, e, para isso, o texto sagrado é ‘Todos os Homens do Presidente’, o relato feito por Bob Woodward e Carl Bernstein sobre como trouxeram à tona a corrupção no coração da Presidência de Richard Nixon. A investigação resultou em medidas judiciais ou de reparação e levou a reformas. Mas histórias como essa podem ser sedutoras. São boas quando se segue o exemplo de Woodward e Bernstein, que se deram a trabalho enorme. São más -ou, no caso da BBC, desastrosas- quando uma parte pequena e possivelmente questionável de uma narrativa maior é interpretada erroneamente como revelação de podridão de um sistema inteiro.

Há um terceiro tipo de verdade que pode ser buscada por meio da mídia: pela explicação de contextos, utilizando as ferramentas racionais da investigação. Numa base diária, esta é tão essencial quanto a discussão e a investigação para manter os cidadãos bem informados. Essa deve ser a razão mais importante para manter uma emissora como a BBC.

O choque de opiniões é necessário para subsidiar a opção democrática, e o processo de revirar pedras para trazer à tona o que está debaixo delas também. A investigação e exposição constituem a terceira base necessária para um bom equilíbrio. No entanto essa terceira forma de dizer a verdade vem sendo vista menos hoje do que era no passado. A paixão por explicar é sentida por apenas alguns poucos órgãos de imprensa. As explicações praticamente não são oferecidas pelos canais de televisão comerciais. A televisão pública é o último reduto do jornalismo objetivo, mas está em perigo cada vez maior.

A BBC, que no passado liderou o mundo na área da TV explicativa, vem se afastando dessa direção, concentrando-se, em lugar disse, no choque de opiniões em estúdio. Com freqüência cada vez maior ela vem buscando revirar pedras -ou seja, sair em busca de revelações espantosas, no caso em pauta o contexto dentro do qual o repórter Andrew Gilligan fez sua acusação, hoje notória, de que o governo mentiu com conhecimento de causa quando redigiu seu dossiê sobre o Iraque.

Gilligan tinha em mãos o começo de uma matéria: um fio que, se fosse puxado com habilidade, poderia ter revelado muito sobre o processo decisório britânico no período que antecedeu a guerra no Iraque. Mas esse começo não foi explicado por meio do que, mais tarde, descobrimos ser um relato impreciso da idéia que uma fonte parcialmente bem informada (David Kelly) fazia sobre o que pode ter acontecido. Esse começo só seria compreensível se fosse acompanhado de uma explicação completa do contexto. Isso levaria tempo para preparar, mas atuaria como uma espécie de critério pelo qual o público poderia se pautar.

Um jornalismo desse tipo é o oposto do jornalismo ‘pró-governo’. Ele assume a responsabilidade de tentar contar uma verdade inteira. Significa ganhar uma compreensão independente do mundo. A BBC é uma das poucas emissoras do mundo capazes para esse trabalho. Ao fazê-lo, ela às vezes concordará com a visão das autoridades e, em outros momentos, exporá o que é inconveniente a elas. Se não o fizer, a BBC estará sempre em falta com o público, porque não estará fazendo o que os cidadãos que a financiam têm o direito de esperar.

Os líderes da BBC optaram pela saída romana e se jogaram sobre suas próprias espadas. Essa saída pode agora estar aberta a um jornalismo que lance luz consistente sobre nosso mundo. Ao tentar chegar a isso, a BBC poderia voltar a ser um modelo. (John Lloyd edita a ‘FT Magazine’.)’

Milton Coelho da Graça

‘Por que conversar (e muito) com juízes’, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 4/02/04

‘O inquérito sobre o suicídio do cientista David Kelly, na Inglaterra, que prometia abalar o governo Tony Blair, terminou como um terremoto para a BBC e uma faísca para reacender o debate sobre a proteção de fontes pela imprensa. E, ao aceitarem a instalação de uma comissão independente para determinar se foram corretas as avaliações dos serviços de inteligência sobre o poderio militar do Iraque, Blair e o presidente Bush vão certamente lançar mais lenha nessa fogueira.

Deixando de lado outras questões consideradas por lorde Hutton, que assinou o relatório de 328 páginas sobre o caso Kelly, proponho discutir neste cantinho apenas dois pontos, centrais e recorrentes em todas as questões que opõem juízes a jornalistas, regras para uma justiça confiável versus regras para uma imprensa livre – ambas inspiradas pelo princípio fundamental da defesa do interesse público.

Lorde Hutton censura o repórter Andrew Gilligan (e seus superiores que permitiram a divulgação) por ter informado que o governo britânico havia ‘apimentado’ informações recebidas dos serviços secretos de Sua Majestade, baseado apenas em uma fonte, Kelly, especialista em armamentos e contratado por esses serviços secretos.

Por trás do pensamento do juiz, evidentemente, está o sacrossanto princípio, estabelecido pelo Direito Romano, ‘testis unus, testis nullus’. Ou seja, um só testemunho não pode ser aceito como prova de verdade.

No jornalismo temos a nossa própria variante de busca pela verdade – ouvir sempre a outra parte ou, se não for possível, deixar isso claro para o leitor.

Mas todos entendemos que esse critério tem de ser flexível quando ‘a outra parte’ é o poder público. O presidente Lula, com sua habitual franqueza, disse o que Bush, Blair, Putin e outros pensam mas não dizem: ‘Notícia é aquilo que não queremos ver publicado.’ E os jornalistas têm o dever, em nome do interesse público que deve orientar seu trabalho, buscar todas as informações que o poder político ‘não queira ver publicado’.

Outro ponto é a questão da velocidade da informação, elemento vital para o exercício da democracia e o funcionamento de uma moderna sociedade. Gilligan e seus superiores tiveram de decidir se era confiável a informação de Kelly, sem evidentemente poder ouvir o governo ou os serviços secretos. E, naturalmente, de olho no relógio e pensando no interesse público de milhões de britânicos que estariam sendo induzidos a aprovar uma guerra sem adequada justificativa.

Como lorde Hutton – ou qualquer outro magistrado, inglês ou brasileiro – pode entender esses dilemas, se foi necessariamente educado e treinado numa visão profissional oposta?