Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Memórias de Belo Horizonte e seus personagens

As passagens e obras de imortais da História – com H maiúscula – de Belo
Horizonte, MG, estão registradas na Coleção Beagá Perfis, concebida pelos
jornalistas José Eduardo Gonçalves e Sílvia Rubião, criadores da novíssima
Conceito Editorial. Os dois primeiros exemplares (Fritz Teixeira de Salles e
Hugo Werneck) foram lançados no final de abril de 2009. ‘As séries têm em comum
a preocupação com a memória coletiva’, observa Gonçalves. ‘Juntamente com os
lugares, temos agora os protagonistas da cidade, aqueles que com seus trabalhos,
formas de expressão, histórias de vida, são de fato `a cara de Belo Horizonte´,
esta cidade tão multifacetada.’ Para Rubião, a coleção vem preencher uma lacuna:
‘Ao escolher personagens que deixaram um legado importante, mas, no entanto, são
pouco conhecidos do grande público, embora às vezes sejam muito citados nos
meios específicos e até referenciados por nomes de logradouros públicos.’


Convém reafirmar que não são biografias, perfis – gênero jornalístico –, em
consonância com o excelente ensaio presente em Perfis, e como escrevê-los
(Sérgio Vilas Boas, Editora Summus, São Paulo, SP, 2003). Aliás, este livro, uma
grata surpresa, merecedor de espaços nas melhores bibliotecas e estantes
públicas e privadas, além de salas de aulas dos cursos de Comunicação Social,
Letras etc., torna-se referência teórica obrigatória para todos que queiram
pesquisar e expressar uma trajetória humana sintética, descrição com
objetividade, diálogos, interações, depoimentos, detalhes, lembranças afetivas e
culturais dos homenageados vivos ou falecidos. Todavia, num encontro com o autor
em 2005, ele vai além com a seguinte ressalva: ‘Percepção e linguagem são
fundamentais na elaboração de um bom perfil.’


Linguagem criativa e rica


São justamente estes dois fatores, apontados por Vilas Boas, os diferenciais
da Coleção Beagá Perfis. E percepção foi à proximidade afetiva, mantendo os
distanciamentos e as exigências racionais necessárias, mais às convivências
observadas, os lastros dos editores ao escalar o premiado Paulinho Assunção para
escrever o perfil de Fritz Teixeira de Salles, que prefaciou um dos seus livros
de poesia publicado em 1981: A sagrada blasfêmia dos bares. O mesmo se
aplica ao perfil de Hugo Werneck, redigido pela sua bisneta, Letícia Werneck
Miraglia, que não chegou a conhecê-lo. Teve o amparo e registros familiares como
uma das fontes de pesquisa, além de relatórios, atas e documentos dos primeiros
hospitais da cidade e da Faculdade de Medicina, a qual Hugo Werneck ajudou
fundar.


Merece consideração revelar também nos trabalhos do perfil de Hugo Werneck, a
valiosa utilização das pesquisas e a orientação da historiadora e professora
Rita de Cássia Marques (Escola de Enfermagem/UFMG) sobre as atividades do
‘médico das senhoras’ (ginecologia) no começo do século passado. O segundo fator
são as formações jornalísticas teóricas e práticas dos responsáveis pelos
perfis. Paulinho Assunção tem mais de 30 anos de profissão. E Letícia Werneck
Miraglia, ganhadora do Prêmio Abril de Jornalismo 2005, a bagagem de uma década
de atividades.


A competência dos dois profissionais da área de imprensa está estampada nos
livros: narrativas jornalísticas sólidas – sem afetações e sentimentalismos
banais –, repletas de figuras de linguagens, diálogos com a reportagem e a
literatura, depoimentos contemporâneos, interlocuções imagéticas e fotografias
na medida certa. Conseqüentemente, os dois lançamentos possuem uma linguagem
criativa e rica em informações, historiografias competentes, bibliografias no
prumo, fontes consultadas merecedoras de créditos, recortes pulsantes em vários
capítulos sem perder o tom e o fio da meada. Prendem às atenções dos
leitores.


Recordações e revelações


‘Boa parte do fascínio exercido por Fritz sobre os seus interlocutores, sobre
qualquer pessoa com quem conversasse, vinha de seu senso de humor, de sua ironia
afiada como a mais afiada das lâminas, de uma habilidade singularíssima para
transformar mesmo um fato banal em uma peça cativante. Loquaz, bom debatedor,
muitas vezes hiperbólico para dar mais cores ao que estivesse contando, inquieto
com o corpo e com os braços, sempre prestes a se levantar de onde estava para
ocupar toda a cena com a sua pródiga estatura, Fritz era um ser vulcânico.’


No parágrafo acima uma observação importante, apontada por Paulinho Assunção
sobre Fritz Teixeira de Salles: um Quixote irresistível (Conceito
Editorial, Coleção Beagá Perfis, BH, MG, 2009, 132 Páginas, R$ 18,00), o
primeiro volume da coleção. Fritz Teixeira de Salles (1916-1981) nasceu em Santa
Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Foi poeta, ensaísta, historiador
e professor. Homem de personalidade exuberante, polêmico, de grande cultura,
generoso, mineiro com extrema formosura, defensor arrebatado de suas idéias e
posições políticas, o escritor marcou época nas rodas intelectuais da capital
das Alterosas, que se reuniam nos bares e cafés da mitológica rua da Bahia e
adjacências. Incentivou inúmeros outros escritores, inclusive o autor do seu
perfil.


Chama a atenção detalhe que não pode passar batido, o título do perfil, na
apresentação de Paulinho Assunção: ‘Acertadamente, em uma crônica publicada
no Jornal do Brasil pouco depois da morte de Fritz (ocorrida em 13 de
abril de 1981) e, mais tarde, reproduzida em um número especial a ele dedicado
pelo então Suplemento Literário de Minas Gerais – edição organizada por seu
filho, o poeta e artista plástico Ricardo Teixeira de Salles –, Carlos Drummond
de Andrade chamou-o de `Quixote Irresistível´.’ Na realidade, o livro é uma
homenagem como poucas, repleta de lembranças, encontros, cartas e poesia. Entre
tantas escritas por Fritz, ‘… jóia do sonho no milagre da carne,/ velejando
novo mar,/ no irromper desses futuros.’, a saudação do primeiro neto. Sem falar
nas artes plásticas, dois retratos feitos de Fritz, um por Alberto da Veiga
Guignard (capa do livro) e o outro pelo argentino Luis Trimano. Também as
reminiscências de Darcy Ribeiro, quando Fritz deu aulas sobre História do Brasil
na década de 1960 na Universidade de Brasília (UnB). Com o golpe de 1964 e a
demissão de vários professores em 1965, em solidariedade com os companheiros,
223 docentes apresentaram sua demissão coletiva à reitoria. Entre eles, estava
Fritz Teixeira de Salles.


O ponto alto do livro está na parte final. São os depoimentos de Affonso
Ávila, Silviano Santiago, Fábio Lucas, Affonso Romano de Sant´Anna, o irmão
cronista José Bento Teixeira de Sales (ao longo do livro) e Benito Barreto. São
várias recordações e duas revelações impossíveis de não ser contadas, como bem
aponta Silviano Santiago: ‘…Fritz manifestava clara preferência pela
tradicional vertente realista do cinema, defendida entre outros por Georges
Sadoul. Já nós, os jovens estetas, retirávamos os exemplos de realismo dos
escritos de André Bazin.’ Outra revelação, com atenção especial para o texto de
Affonso Ávila, que conheceu Fritz bem jovem (com 20 anos de idade), é uma
coincidência salutar, dois poetas que tiveram influências tanto na poesia de
Fritz quanto na de Ávila: Gregório de Matos e João Cabral de Melo Neto.


Vereador e presidente da Câmara


‘Belo Horizonte talvez não fosse a mesma se por ela não tivesse passado Hugo
Werneck. Para a vida e a carreira do médico carioca, também foi decisivo ter
colocado – e fincado – os pés na capital mineira. Formaram uma dupla que se
completava. Em 1906, quando as duas histórias começam a se entrelaçar, Werneck
tinha 28 anos de idade e procurava um lugar de clima bom para se recuperar de
uma tuberculose. Belo Horizonte, que mal completava nove anos de existência,
precisava das qualidades e da disposição que ele tinha para o trabalho.’


Curou-se da doença e por aqui ficou. Foi o pioneiro da medicina na cidade,
como podemos observar em Hugo Werneck: médico e construtor de sonhos
(Conceito Editorial, Coleção Beagá Perfis, BH, MG, 2009, 132 Páginas, R$ 18,00).
Em 1906, arregaçou as mangas e implantou – na época a capital era conhecida por
‘Poeirópolis’, repleta de canteiros de obras por todos os lados – os primeiros
serviços de saúde para uma população totalmente desassistida. Principalmente, os
emigrantes europeus que chegavam em massa para ajudar na construção de ruas,
avenidas e edifícios. Transformou um amontoado de barracas em hospital de
verdade: a Santa Casa de Misericórdia.


Esteve à frente de várias outras realizações, como a criação da Faculdade de
Medicina (atual Escola de Medicina da UFMG), do Hospital São Lucas e da
Maternidade Hilda Brandão, além do Sanatório Hugo Werneck, referência no passado
para o tratamento da tuberculose. O mais interessante na sua história é uma
imensa e arborizada praça – laureada com o seu nome – que está localizada
justamente na área hospitalar da cidade, no começo do bairro Santa Efigênia.


Hugo Werneck (1878-1935) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Uma
observação fundamental, para não confundirmos as pessoas, pois o homônimo Hugo
Werneck aparece também na História do Brasil com a presença de outro pioneiro,
porém na luta ambiental, o ex-presidente da Fundação Zoobotânica de Belo
Horizonte (FZB-BH), membro do Conselho Universitário da UFMG e professor
belo-horizontino Hugo Werneck, falecido no dia 20 de dezembro de 2008, filho do
próprio Hugo Werneck, e pai do escritor Humberto Werneck. Uma outra informação
importante apontada no perfil é a origem paterna de Hugo. Era filho do também
doutor, bacharel em letras e político Francisco Furquim Werneck de Almeida,
introdutor da cesariana no Brasil (especializou-se em ginecologia, Viena,
Áustria) e médico particular da princesa Isabel. No livro podemos perceber a
participação e o incentivo do pai, que foi essencial na escolha da profissão e
manutenção da tradição familiar, à medicina, em particular à ginecologia.


Aparecem com relevância no segundo volume da coleção citações de jornais,
presenças de pessoas da área de saúde, vários casos, cartas, bilhetes, políticos
e até o escritor Pedro Nava, que também era médico. São de Nava algumas das
melhores observações e descrições de Hugo. Por outro lado, o reconhecimento como
médico, professor de ginecologia e obstetrícia e bom administrador nas direções
da Santa Casa e Faculdade de Medicina e mais tarde em seu Sanatório Hugo
Werneck, foram primordiais no convite feito por Clemente Faria para participar
da fundação e tornar-se o primeiro presidente do Banco da Lavoura, transformado
em 1928 no Banco da Lavoura de Minas Gerais e que, em 1971, mudou de nome
novamente, tornando-se o Banco Real e mais tarde Banco Real ABN AMRO.


Com o tempo, bem após o falecimento de Hugo, a família se desligou do Banco
da Lavoura, que se transferiu (a sede) na década de 1960 para São Paulo. No
início da década de 1970, o Banco da Lavoura de Minas Gerais se dividiu em duas
novas instituições, o Banco Real e o extinto Banco Bandeirantes. Além da
atividade bancária, Hugo era membro atuante do Partido Republicano Mineiro
(PRM), sendo vereador e presidente durante anos do Conselho Deliberativo de Belo
Horizonte, a Câmara de Vereadores da época, até a dissolução da casa, com a
Revolução de 1930. Faleceu em março de 1935, em São Paulo, SP, aos 56 anos,
vítima de uma pneumonia e o agravamento de uma cirurgia para a retirada de um
tumor na sétima vértebra.


PS para quem quer se aprofundar mais sobre a teoria e a arte de
narrar e descrever vidas, outra indicação é o primoroso Biografias &
Biógrafos: jornalismo sobre personagens
(Sérgio Vilas Boas, Editora Summus,
São Paulo, SP, 2002). Afinal de contas, as biografias e os perfis sempre foram
leituras prediletas em qualquer parte do mundo. Ademais, são valiosos campos de
pesquisas, reflexões e estudos mais aprofundados sobre os autores e seus
legados…

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Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG), é graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo contemporâneo (UNI-BH). Autor dePavios Curtos (Anomelivros, BH, MG, 2004), participa da antologiaO Achamentode Portugal (Fundação Camões, Lisboa, Portugal e Anomelivros, 2005), dos livrosPequenos Milagres e Outras Histórias (Grupo Galpão, Editoras Autêntica e PUC-Minas, BH, MG, 2007) eFolhas Verdes (Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, BH, MG, 2008), Belo Horizonte/MG