Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Menos escatologia, mais qualidade

** ‘Vampiro violentou 45 moças’ – manchete do jornal Notícias Populares, de São Paulo, em 05/04/1971

** ‘Queda do dólar afeta o bolso de catadores’ – manchete do jornal Diário Gaúcho, de Porto Alegre, em 12/08/2005

Trinta e quatro anos separam essas manchetes. O mercado dos jornais populares cresceu, mudou e quem só conhece o chavo sensacionalista para tratar do tema, precisa se atualizar. Os jornais destinados às classes B, C e D integram um novo mercado a ser analisado, caracterizado por um público que não quer apenas histórias incríveis e inverossímeis, mas compra jornais em busca também de prestação de serviço e entretenimento. Os veículos usam como estratégia de sedução do público leitor a cobertura da inoperância do poder público, da vida das celebridades e do cotidiano das pessoas do povo. Os assuntos que interessam são prioritariamente os que mexem de imediato com a vida da população. Na pauta, o atendimento do SUS e do INSS, a segurança pública, o mercado de trabalho, o futebol e a televisão.

O livro aborda um segmento de jornais que busca se aproximar de camadas mais amplas da população e, por isso, tem como diferencial uma entonação mais popular, que varia de veículo para veículo, mas os enquadra numa interessante segmentação. Dos oito jornais de maior circulação no país em 2005, três eram destinados a públicos mais populares: o Extra (RJ), O Dia (RJ), e o Diário Gaúcho (RS).

Vendidos somente em bancas, os jornais conhecidos como populares seguem com capas chamativas e a violência permanece como assunto, mas os cadáveres são cada vez mais raros. No lugar da linguagem chula, da escatologia e das matérias inventadas, os jornais buscam a linguagem simples, o didatismo, a prestação de serviços e, pasmem, a credibilidade. São jornais que atendem às regiões metropolitanas, apostam nas editorias de Cidades e dificilmente se tornarão nacionais. A temática política, até há bem pouco tempo ausente, hoje ocupa um lugar mais expressivo.

O lugar de fala

Jornais populares publicam matérias exclusivas, dão furos e ganham prêmios. No Prêmio Esso de 2004, por exemplo, O Dia venceu na categoria Fotografia e ficou finalista nas categorias Reportagem, Criação Gráfica e Primeira Página (com o Extra). Em 2005, o jornalista Fábio Gusmão, do Extra, ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pelo trabalho ‘Janela Indiscreta’. A série de reportagens mostrou como a aposentada Dona Vitória, de 80 anos, registrou o dia-a-dia do tráfico na Ladeira dos Tabajaras, no Rio de Janeiro. A reportagem provocou uma operação da Polícia Militar no local e ajudou na prisão de bandidos e policiais militares envolvidos com o tráfico.

O Dia venceu, em 2005, a categoria Fotografia do XXII Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, concedido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e pela Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio Grande do Sul (OAB-RS). A foto, intitulada ‘Guerra na Rocinha – Que futuro é esse?’, do repórter-fotográfico Carlo Wrede, foi feita durante operação policial na favela da Rocinha, em junho de 2005. É uma imagem de um garoto fingindo dar tiros com um cabo de vassoura nas mãos. Enfim, os jornais desse segmento têm assumido maior importância social. Evidentemente, essa mudança de rumo não significa que os jornais populares agora sejam de qualidade ou não mereçam uma análise crítica, mas indica que precisam ser vistos com outros olhos.

Meu interesse pelo assunto surgiu no trabalho realizado nas assessorias de imprensa sindicais nos anos 1980. Enquanto alguns jornais populares comerciais vendiam muito e os programas televisivos popularescos tinham enorme audiência, os produtos informativos sindicais eram tediosos e pouco atraentes. Perguntava-me por que, afinal, os jornais sindicais pareciam tão distantes de seu público. Concluí sobre a necessidade de estudar como os jornais se aproximam dos leitores de baixa renda e pouco hábito de leitura.

Na década de 1990, ao fazer dissertação de mestrado na área de comunicação rural, descobri o sentido do termo ‘comunicabilidade’, costumeiramente ignorado pelos jornalistas, com base em estudos sobre como a compreensão das mensagens jornalísticas está ligada à cultura dos setores populares. Quando uma notícia, um folder ou um vídeo são produzidos de acordo com a linguagem e os hábitos de agricultores do interior de Minas Gerais, dificilmente serão entendidos por produtores do Nordeste e vice-versa.

Com o passar dos anos, já como professora de jornalismo, percebi o aumento do mercado de trabalho no segmento popular da grande imprensa, mas na universidade era evidente a falta de profundidade das considerações sobre programas e jornais populares, pois os comentários sobre o tema nunca ultrapassavam a mera condenação. Expressões como ‘degradação cultural’, ‘lixo’ e ‘antijornalismo’ sempre foram usadas para desqualificar os produtos informativos populares comerciais, o que também os exclui do rol de objetos dignos de serem estudados e pesquisados.

Daí para fazer o doutorado sobre o tema foi um passo. A Rede Brasil Sul (RBS) lançava no mercado um jornal popular fora do esquema ‘espreme que sai sangue’, rótulo pelo qual ficou conhecido o jornal Notícias Populares, editado em São Paulo de 1963 a 2001. O Diário Gaúcho, lançado em 2000 pela Rede Brasil Sul, na Grande Porto Alegre, com tiragens polpudas, foi escolhido como objeto de pesquisa. Na pesquisa, enfoquei uma estratégia utilizada pela publicação: a intensa fala do leitor popular em suas páginas. A tese, intitulada ‘O lugar de fala do leitor no Diário Gaúcho‘, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, faz uma ampla articulação teórica para explicar o segmento popular da grande imprensa e seus vínculos com o leitor.

O leitor recompensado

Este livro surgiu após a tese, fruto da necessidade de divulgar uma abordagem mais ‘arejada’ da imprensa popular, de apontar suas conexões culturais e tendências e de mostrar um pouco do que vem sendo feito no país. A temática merece muitos estudos críticos, mas o objetivo do livro é discutir o velho conceito de sensacionalismo e mostrar a evolução de um mercado importante para a mídia impressa hoje.

O texto foi escrito com o desafio de trazer contribuições da academia para uma realidade pautada pelas necessidades do mercado. A intenção é mostrar no que essa imprensa se diferencia e como pode se qualificar. Minha idéia não é ser advogada de defesa do gênero, mas fornecer elementos para que a discussão saia do ‘achismo’ e tenha uma base em sólida pesquisa.

Escolhi como fio condutor da reflexão o segmento popular da grande imprensa, embora o texto resgate, com o objetivo de ilustrar, alguns programas de televisão e algumas revistas populares mais significativas. Não me refiro ao rádio, precursor de muitas fórmulas populares, pela dificuldade de sistematizar os diversos programas espalhados pelo país, o que demandaria uma pesquisa específica. Mesmo assim, indico, ao final do livro, uma bibliografia para quem se interessa pelos produtos jornalísticos populares nos vários veículos.

O livro se intitula Jornalismo popular, mesmo que, por vezes, a prática dos produtos populares não se configure em jornalismo. Embora pareça óbvio, fazer jornalismo deve ser a meta de todo jornalista, e o texto aponta para essa direção. Acredito que uma imprensa popular de qualidade só é viável se conseguir desenvolver um tipo de jornalismo ético que aperfeiçoe suas técnicas de comunicação com o leitor popular sem ficar refém dos requisitos do mercado.

Pensar em um jornalismo voltado à maioria da população é uma experiência sempre tomada por questionamentos e críticas, pois, quando se trabalha com jornalismo numa perspectiva popular, percebe-se o quanto são tênues os limites entre a responsabilidade pública e a sedução do leitor.

Do ponto de vista da relevância social, é muito produtivo analisar como a imprensa se faz popular. É tarefa do jornalista informar setores mais amplos da população e, por isso, não é recomendável ficar circunscrito a uma única forma de se fazer jornalismo. Os jornais populares devem ser observados para que seja possível captar suas estratégias e, num movimento crítico, incorporá-las ou descartá-las no sentido de criar bases técnicas para um jornalismo popular diferenciado.

Também é importante deixar claro que o leitor popular não é passivo em relação aos jornais. Nem o segmento popular da imprensa é simplesmente fruto de interesses empresariais, nem seu público responde cegamente aos chamados do produto. Se os jornais, programas e revistas fazem sucesso, é porque há recompensas para esse leitor. Assim, existe uma complexa relação entre a produção e o consumo dos produtos populares.

Roteiro de leitura

O livro é construído de modo que os capítulos possam ser lidos de maneira aleatória. O primeiro capítulo aborda o tema do ponto de vista conceitual e histórico. Explica por que uso o termo ‘popular’ e não o ‘sensacionalista’ e conta um pouco da história do sensacionalismo na imprensa. Muitos recursos de popularização citados são utilizados por toda a imprensa, mas são prioritariamente encontrados nos jornais que se destinam às classes B, C e D.

No segundo capítulo, o leitor encontrará uma contextualização da nova fase em que os jornais populares se encontram. Nele, apresento os principais jornais populares do país e relato brevemente o que está ocorrendo com os produtos jornalísticos populares na televisão e no mercado de revistas.

Quem optar por ler de início uma reflexão mais densa sobre o tema pode ir diretamente ao capítulo ‘O leitor do mundo e o mundo do leitor’, em que há uma reflexão sobre a existência de diferentes imprensas e sobre como elas falam de mundos diferentes. Um tipo de jornal sobrevive prioritariamente de um discurso sobre questões de interesse público e outro é pautado em primeiro lugar pelo interesse do público. A imprensa considerada ‘mais séria’, destinada às classes A e B, precisa legitimar-se entre os formadores de opinião e, por isso, aborda temas classificados como mais relevantes. A imprensa que pretende conquistar o leitor das classes C, D e E dá mais atenção às temáticas de interesse desse público. O capítulo aborda o que é notícia no segmento popular e cita exemplos de como predominam as notícias próximas do público, que têm capacidade de ser útil e de entreter. Abordo o jornalismo popular pelo enfoque da cultura. Trago as raízes históricas do melodrama e do folhetim para explicar o quanto são antigas as estratégias da imprensa popular usadas na atualidade.

Apresento o caso do jornal Diário Gaúcho no quarto capítulo. Contextualizo esse veículo em termos de sua organização editorial e do perfil do seu leitor, mostro como ele se diferencia da cobertura de Zero Hora e aponto algumas características dramáticas presentes no jornal.

Aqueles que preferirem ir direto para os aspectos mais práticos do jornalismo popular podem dedicar-se ao último capítulo. O capítulo aborda as necessidades dos jornalistas de: conhecerem seu público, mudarem os pontos de vista de acordo com as posições sociais, econômicas e culturais desse leitor, adotarem linguagem simples e didática e tornarem os jornais essenciais para o leitor. Alerto para os perigos desse caminho de popularização, principalmente no que se refere à excessiva dramatização, à priorização do interesse do público em detrimento do interesse público e à representação das pessoas do povo como vítimas ou meros consumidores. Exponho algumas características do perfil do profissional desse segmento, mostro as possibilidades de um jornalismo popular de qualidade e indico alguns parâmetros para a definição de jornalismo popular na grande imprensa. Ao final do texto, reproduzo as capas de alguns jornais citados e apresento um roteiro de leitura sobre produtos jornalísticos populares e uma bibliografia complementar.

Padrões de qualidade

O livro tem o objetivo de introduzir o jornalista à realidade desse mercado apresentando ao profissional algumas reflexões sem lugares-comuns e clichês. Afinal, esse é um segmento importante porque democratiza a informação jornalística para setores da população com baixa escolaridade e amplia as oportunidades de trabalho para jornalistas. Embora o segmento dos jornais populares não seja recente, houve uma ampliação do mercado de trabalho com o surgimento de veículos como o Extra (RJ), o Diário Gaúcho (RS) e o Agora São Paulo (SP) e, mais recentemente, o Meia-Hora (RJ), o Expresso (RJ), o Aqui! (MG) e o Super Notícia (MG).

São jornais que atendem a nichos de mercado pouco explorados e provocam um debate fundamental no campo jornalístico: – Afinal, o que interessa aos leitores? – Entre os assuntos que interessam aos leitores, o que pode ser considerado jornalismo? No que os jornais populares se diferem dos demais?

É hora de nós, jornalistas, pensarmos em padrões de qualidade para essa imprensa. Quantos de nós saberíamos o que fazer com nossas críticas na hora de trabalhar num veículo jornalístico popular? Que pontos, precisamente, criticamos e que cuidados devemos ter na produção de um jornal popular de qualidade? Pretendo que a leitura gere novas idéias para contribuir com a construção dessa prática.

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Jornalista