Existem certas pessoas que surgem em nossa vida e de algum modo se tornam personagens obrigatórios de nossas lembranças, exerçam elas o papel de antagonistas ou de coadjuvantes.
Quando, no início da década de 1980, entrei na Faculdade de Letras, na UFRJ, conheci o poeta Felipe Fortuna, com quem visitava sebos e livrarias, com quem travei algumas polêmicas (polêmicas pueris, mas que anunciavam o nosso desejo de pensar por conta própria), a cuja defesa de mestrado na PUC eu assisti (na banca, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna), cujos artigos no Jornal do Brasil e na Folha de S. Paulo eu li, cujos livros eu tirei da estante agora, e estão aqui ao meu lado.
Felipe é filho do cartunista Fortuna. Carioca, morador do bairro de Santa Teresa, tornou-se diplomata por opção, espelhando-se em Vinícius de Moraes, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto. Poeta, crítico literário, sempre foi muito profissional em seu afã de escrever e publicar. Nunca tratou a literatura diletantemente. Sua seriedade, combinada com humor ferino, é seu estilo.
De Felipe guardo uma recomendação. Que eu escolhesse um autor (na época eu gostava de ler Kierkegaard), e nele me especializasse, e dele soubesse tudo, para que me tornasse referência kierkegaardiana. Já possuía (tínhamos 19, 20 anos) a ‘malícia’ acadêmica. Não escolhi o autor dinamarquês, escolhi outros, mas até hoje reproduzo esse conselho a quem preciso orientar.
Amor e loucura
De Felipe guardo algumas cenas. Uma, em especial: ele vendendo seus contos entre professores e alunos da faculdade, numa edição feita em casa, com esmero. Onde estarão aqueles textos de que tanto gostei?
Poeta, Felipe, em 1990, aos 27 anos, fez uma afirmação rotunda no livro Artes e ofícios da poesia, organizado por Augusto Massi: ‘Ainda não sei que novidade me espera; mas sei que, se esta novidade não existir, também não existirá mais minha poesia’.
Tenho um exemplar do primeiro livro de poemas de Fortuna, Ou vice-versa (1986). E releio um poema, Menina morta – ‘Tua morte não foi tão imediata / como foi saber que estavas morta’ –, dedicado (não expressamente) à Clélia, colega nossa da faculdade que morreu num acidente de trânsito: ‘Tuas mãos não sabem mais tocar as minhas, / teu nome líquido – não sei se resta. // Só sei que morreste com segredos, / pois o mundo é a doença mais secreta’.
Se alguns se autoproclamam sagitarianos ou palmeirenses, Felipe é daquele tipo que se define, mais nas entrelinhas do que pelas declarações, como sartreano de carteirinha. Estão nele impregnados a visão existencialista, o ateísmo inteligente, o amor à liberdade que se funda em si mesma.
Em 1992, Felipe publicou outro livro de poemas, Atrito, e num deles esbarro: ‘Nunca mais alguém / que filosofe em off pelos áridos campi, / que brinque de ping-pong, de anagrama e vaivém, / que se alongue em mentiras e me induza ao câncer.’ Certamente, com quase 30 anos, Felipe quer outro alguém, quer amor, loucura, não mais vida acadêmica, e dele recebemos primorosa tradução, em 1995, da poesia de Louise Labé: ‘Tão atingida estou por tantos lados / Que, se quiser abrir-me nova chaga, / Não haverá lugar para ferir-me.’
Fortuna publicou de novo poesia (Estante, 1997), mas seus dois últimos livros – Visibilidade (2000) e A Próxima Leitura (2002) – estão mais na linha da prosa, da sua primeira obra de crítica literária (A Escola da Sedução, 1991). Talvez ainda nos reserve novidade em poemas. Contudo, se novidade não houver, e se bem conheço o hoje quarentão amigo (atualmente respirando ares londrinos), será fiel àquela sua rotunda afirmação.
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Doutor em Educação pela USP e escritor