Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Não acredito em governos que exilem artistas’

A escritora catarinense Adriana Lunardi leva a literatura a sério. É formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (RS) e vive no Rio desde 1999. Nesta entrevista, comenta seu percurso literário e anuncia os caminhos que pretende trilhar doravante, depois de arrebatar prêmios importantes e chegar ao francês, ao espanhol e ao croata.

Desde a estréia, com os contos de As meninas da Torre Helsinque, lançados em 1996, cativou leitores e jurados de prêmios com uma voz narrativa original. Mostrando que tinha o que dizer e sabia como fazê-lo, não era escritora de um livro só: reapareceu com as narrativas de Vésperas (2002), em que se pôs na pele de célebres escritoras, como Virgínia Woolf e Dorothy Parker, e de escritoras referenciais em nossas letras, como Clarice Lispector e Ana Cristina César.

Transfigurando as tragédias individuais numa abordagem inventiva, constrói uma prosa marcada pelo esmero da linguagem e pela delicada apropriação da vida alheia, para melhor revelar aos leitores outras faces do que foram os atos finais dessas existências. Vésperas revelou ainda um outro acerto. Representou investimento público com retorno para além do esperado. Para escrevê-lo, Adriana Lunardi recebeu bolsa da Biblioteca Nacional.

A Editora Rocco, que tem o passe da escritora, lançou recentemente aquele que pode ser considerado o livro mais bem acabado da autora. É o romance Corpo Estranho, cujos temas e problemas inerentes ao dia-a-dia de duas mulheres, Manu e Mariana, levam a reflexões profundas e muito bem elaboradas a respeito do grande tema, o fim, cujas etapas decisivas são ignoradas pelas duas, que não se dão conta de que ‘tudo se extingue’.

Temos diante de nós uma escritora que resolveu magistralmente o dilema narrar ou descrever, em cujo alçapão tantos escritores de talento sucumbiram, num ou noutro livro. Ela, não. Descreve e narra, alternando as opções de acordo com as necessidades das tramas, preservando a todo custo, por meio de estratégias marcadas por detalhes em profusão, os atos de seus personagens, verdadeiros monarcas em sua prosa.

Adriana Lunardi é também editora de textos e roteirista de TV – atualmente, escreve no Expedições, programa exibido pela TV Cultura e pela TVE. A seguir, sua entrevista.

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Nascida em Santa Catarina, formada intelectualmente no Rio Grande do Sul, vivendo no Rio há tantos anos, que v. tem a dizer de seu começo como escritora?

Adriana Lunardi Para mim, uma história (ainda que seja a minha) pode começar de mil maneiras: no alto de uma colina italiana, em uma casa de pastores que, fugindo do inverno, começam a conduzir suas ovelhas para a planície, ou no dia em que o avião pousou no aeroporto Antonio Carlos Jobim, em março de 1999. O mais importante é o personagem, sempre.

Têm sido importantes os prêmios arrebatados por seus livros e as traduções que vêm obtendo?

A.L. – Cada escritor tem uma trajetória toda própria e, ao que parece, a minha inclui publicar no exterior. Vésperas foi traduzido para o francês, o espanhol e o croata, além de ter sido publicado em Portugal. Agora, é a vez de Corpo Estranho, comprado pela Gallimard. Se é importante? Sim, define a minha inserção no mercado editorial, proporciona algumas viagens e encontros significativos. Contudo, não é o que me faz escrever. Nem os prêmios. Quem escreve é a Adriana que nunca lembra dessas pequenas vitórias ao pôr a primeira frase na página do word. 

Os editores europeus estão mudando suas expectativas com a literatura brasileira?

A.L. – Na Europa, especialmente, espera-se da literatura brasileira um folclore de mulatas e palmeiras ou a cantilena de mazelas sociais e políticas. Sempre que posso denuncio essa expectativa, questionando por que razão a grande arte, os livros que mudam o mundo, seriam prerrogativa dos países desenvolvidos, enquanto a nós, os periféricos, restaria o relato antropológico de nossa miséria. Embora tenhamos escritores da mais fina cepa, tenho receio que essa minha queixa vai se repetir por muito tempo ainda.

A ditadura prejudicou a todos, mas como especificamente ela prejudicou os escritores?

A.L. – A ditadura brasileira foi criminosa em relação ao projeto literário de nosso país. Muitos autores viram-se obrigados a desviar seus talentos para denunciar o regime, adiando seus próprios projetos e ambições. Perdeu o país, perdeu a literatura brasileira. Desde então, elaborei uma ética pessoal que me posiciona politicamente: não acredito em governos que prendam intelectuais, exilem artistas, censurem jornais e fechem emissoras de TV.

Tenho lido e ouvido de quem lê e escreve sobre seus livros, que seus personagens são inquietos, introspectivos, à beira de explosões, entretanto contidas, quase sempre, prendendo o leitor numa teia de apreensões fascinantes. A cada momento parece que vai acontecer uma coisa extraordinária e o que é extraordinário é justamente essa desarrumação diante da vida. Como você vê isso? Você chegou a este, digamos, estilo, influenciada por alguns textos que a encantaram?

A.L. – A leitura da poesia, creio. A metafísica de Fernando Pessoa, a doce ironia de Mário Quintana, a rebeldia de Rimbaud, o poético infinito de Clarice foram um aprendizado não só literário, mas também existencial. A partir deles, entendi que através da linguagem, da busca por uma forma, eu conseguiria traduzir um sentimento muito meu, a noção de que não há um depois, e do quanto a consciência dessa finitude nos define.

As mulheres-escritoras ou escritoras-mulheres abordam melhor os temas e problemas da condição feminina?

A.L. – Há bons e maus escritores, o que resume o longo repertório de indagações sobre o fazer literário. A única novidade, desde que as mulheres começaram a publicar em maior número, foi a evidência de uma subjetividade nas letras que o cânon demorou a absorver. O fato é que, desde então, as personagens femininas criadas por homens ou por mulheres não podem ser mais mortas ou exiladas tão facilmente quanto antes.

É sempre complicado referir contemporâneos, mas alguns já estão acima e além de toda crítica, dado o percurso feito, sem contar casos referenciais, como os de Érico, Jorge Amado, J. J. Veiga, Callado, Drummond e Clarice, já mortos, o que para o leitor não tem importância, pois os livros estão aí para serem lidos e é isso que os torna imortais. Assim, pergunto-lhe: escritores em franca atividade, como Rubem, Dalton, Nélida, Lygia, Salim, Affonso etc, eles a influenciaram em alguma coisa? Ou outros, que não citei aqui, e que sejam de sua predileção, sugeriram a você temas ou caminhos?

A.L. – A influência de Rubem Fonseca na literatura brasileira é tão importante que desde já ele pode ser incluído em nosso cânon. Há um um diálogo estabelecido, conseqüente, entre a poética urbana daquele autor e a produzida por seus contemporâneos de todas as idades. Sou leitora de João Gilberto Noll, que ama a palavra escrita, e acompanho com grande interesse a literatura mais recente, numa silenciosa conversa com meus pares.

Quais seus projetos literários para os próximos anos? Você faz planos? Anuais, bienais, mais longos?

A.L. – Tudo o que quero é mais do mesmo: escrever dois livros, pelo menos, antes de completar cinqüenta anos, ler e reler certos livros na língua original, estudar grego e latim. E escrever uma peça de teatro.

Como é um dia na vida da escritora Adriana Lunardi?

A.L. – Quando estou em meio a um livro, tranco-me em casa, desligo telefone e reduzo a vida social ao mínimo. Agora, que estou no pós-livro (ou pré?), passo as tardes escrevendo roteiros. Dedico algumas horas por semana ao espírito, estudando línguas e literatura, e outras ao corpo, caminhando ou malhando na academia. Leio por duas ou três horas antes de dormir.

A ascendência italiana é peso ou bagagem favorável?

A.L. – É o que é: incomoda até a gente encontrar a própria voz, depois vira romance.