Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Não há boa reportagem sem imaginação’

Que lições escritores e pensadores tão distintos como Conan Doyle, Platão, Jorge Luís Borges e Charles Sanders Peirce podem dar a um repórter? Muitas, na opinião da professora Maria Cecília Guirado, da Universidade de Marília (SP). Em seu livro Reportagem: a arte da investigação, Cecília reflete sobre esta que é considerada a essência do jornalismo.

Partindo de um rico referencial teórico e lançando mão de sua própria experiência jornalística, Cecília mostra que a boa reportagem é muito mais do que mera técnica. O criativo diálogo que trava com antigos filósofos gregos, teóricos da semiótica e jornalistas revela níveis diversos da relação do repórter com seu objeto. Trata-se de um ‘processo constante de mediação, de interpretação e tradução de idéias sobre as coisas’.

Para realizar essa mediação, o repórter precisa utilizar todas as armas. Vale a imaginação, a consciência, a percepção, a capacidade de interpretar os signos circundantes. Na verdade, Cecília imagina um ‘repórter/poeta’, conceito forjado na pista da Poética, de Aristóteles, uma vez que o poeta, assim como o repórter, ‘faz a cópia dos fatos reais e trabalha sobre eles para construir uma outra realidade: a realidade que se deixa entrever no texto’.

Uma boa reportagem, contudo, não existe dissociada de um componente importante: a própria experiência do repórter. Por isso Cecília prescreve a especialização, ‘sempre em conexão com outras editorias’. Ela questiona inclusive se um ‘foca’, um jornalista recém-admitido na profissão, teria condições de realizar plenamente uma boa reportagem, dados os desafios inerentes a esse gênero jornalístico. Neste sentido, o livro contém lições preciosas de calejados repórteres como Ricardo Kotscho, Clóvis Rossi, Tão Gomes Pinto e Aloysio Biondi (já falecido).

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cecília Guirado falou sobre alguns assuntos abordados em seu livro.



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Sua reflexão sobre a reportagem estabelece três níveis de compreensão: filosófico, semiótico e jornalístico. Há a superioridade de um nível sobre o outro?

Maria Cecília Guirado – Não, não há. Porque assim como o próprio signo, a reportagem se fabrica na interdependência entre o modo de olhar e sentir, o modo de arquitetura da investigação e análise e o modo da construção do texto.

Elementos como ‘imaginação’, ‘percepção’, ‘consciência’, ‘signos’, presentes nos estudiosos por você examinados, estão na base do processo de compreensão da realidade. Como eles se combinam na elaboração de uma reportagem?

M. C. G. – Não há boa reportagem sem que o repórter recorra à imaginação em qualquer uma das fases do processo de criação de texto. O que é muito velho, cansativo, em termos de informação não vende jornal, não prende o ouvinte, nem o telespectador, que dirá o internauta acostumado a atualizar o conhecimento a cada segundo. Então, talvez o segredo seja a novidade na forma, ou seja, a roupa nova do fato já sabido. A percepção está presente no faro jornalístico da descoberta: o furo. Mas deve também fazer parte do processo investigativo propriamente dito, como também da escolha estética das palavras que melhor compactuam com o fato a ser representado. O jornalista que não exercita essa sintonia fina entre a realidade e o que dela pode ser transformado em notícia não consegue ser um bom profissional.

Quanto aos signos, bem… tudo é signo: o pensamento que elabora o primeiro digrama, os documentos, os suportes eficientes (computadores, lápis e papel etc.), os depoimentos das fontes, as palavras utilizadas para descrever. Então, os signos midiáticos, como gosta de dizer Lucia Santaella, pervadem a vida cotidiana do jornalismo, cada qual em seu nível, representando a função de desvendar ao público, mesmo que subjetivamente, uma visão do acontecido.

Hoje existe uma ênfase na primazia da técnica como chave para o bom trabalho jornalístico. Até que ponto ela é suficiente?

M. C. G. – Desde os gregos a sociedade discute este tema. Penso que não há primazia da técnica sobre o conteúdo ou ainda sobre a maneira de perceber e traduzir fenômenos no jornalismo feito com seriedade. Acredito que a maior dificuldade a ser vencida é a responsabilidade ética. Até as dificuldades tecnológicas podem ser superadas ou exercidas em colaboração. Os velhos jornalistas não sabiam usar o computador, mas nem por isso deixaram de escrever excelentes textos. No entanto, quem não sabe ver, pensar e traduzir o que pensa, não consegue ser repórter. E não adianta dominar as técnicas da ‘objetividade’ ou do new journalism.

Paulo Francis, por você citado, dizia que a linguagem jornalística perfeita é o resultado de uma síntese e uma imitação. Dessa forma, capturar a essência do fato, do real, é uma tarefa inatingível para o repórter?

M. C. G. – A essência é inatingível em qualquer instância. Captar a essência de um fato é missão quase impossível. Apenas roçamos as franjas desse tapete que se chama realidade.

Partindo das reflexões da Poética, de Aristóteles, você aproxima o repórter do poeta, no sentido de um criador de fábulas. Até onde pode chegar essa aproximação, sem que o repórter ultrapasse a linha tênue da ficção?

M. C. G. – Escrever textos-reportagens é produzir literatura. Literatura jornalística, mas sempre literatura. E literatura é igual a ficção. Todas as versões dos fatos acabam por ser ficcionadas a partir de um conjunto de referências (background) da mente que as produziu.

Neste sentido, como você analisa a experiência do new journalism?

M. C. G. – Uma experiência possível de ser repetida sempre. Por que os textos têm que seguir, num mesmo veículo de comunicação, a mesma estética? Já não basta que recebam a mesma disposição visual? Penso que o jornalismo online pode recuperar o new journalism de Truman Capote e de Gay Talese especialmente…

A partir do conceito de ‘experiência colateral’, de Charles Sanders Peirce, grosso modo traduzido como a experiência prévia que o repórter deve ter de determinado assunto, você conclui que o repórter deve especializar-se num assunto, em vez de seguir apostando em generalidades. Como isso se reflete na qualidade da reportagem?

M.C.G. Como diriam os budistas, o melhor caminho é sempre o do meio. A especialização por acomodação é burrice, mas a especialização em uma dada área, buscando sempre a conexão com as outras editorias, é um serviço que se presta à sociedade.

Em seu trabalho, você se refere aos métodos de Sherlock Holmes, o detetive criado por Conan Doyle. O que eles podem ensinar ao repórter?

M. C. G. – Método, planejamento, esforço prévio – no sentido de atingir um propósito – e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Por que fariam ao trabalho do repórter? É elementar ter disciplina.

Pelo conjunto de desafios em jogo, a reportagem, no sentido mais clássico do termo, é um trabalho para repórteres experientes, e você questiona se um ‘foca’ teria condições de realizá-la. E, no entanto, as redações têm sido cada vez mais povoadas por gente que está ingressando muito jovem na profissão. Como é que essa contradição pode ser resolvida?

M. C. G. – A contradição está nas empresas e não na prática da profissão. Todos nós jornalistas sabemos que assuntos delicados ou polêmicos que rendem uma boa reportagem são tratados com maior facilidade por profissionais mais experientes. Claro que eles são cada vez mais raros e mais caros nas redações. Por outro lado, se o ‘foca’ não treinar, com o apoio do editor, não vai conseguir nunca. O abuso, por parte da empresa jornalística, é a exploração dos ‘focas’ e até mesmo dos estagiários.

Em entrevista a você concedida em 1991, citada em seu trabalho, o jornalista Tão Gomes Pinto afirmou: ‘O repórter brasileiro tem uma certa dificuldade de enxergar, de sentir cheiro, de olhar a paisagem. O jornalismo que vem sendo praticado no Brasil é muito baseado em declarações’. A seu ver, o diagnóstico se modificou ao longo desses anos?

M. C. G. – Tudo continua como dantes, infelizmente.

Em sua opinião, como deve ser a relação do repórter com suas fontes?

M. C. G. – Uma relação educada. É difícil não misturar às vezes amizade e profissionalismo, mas a ética deve estar acima de qualquer suspeita.

Outro ponto que você menciona é o ‘autismo midiático’, entendido como o paternalismo ou a arrogância da mídia sobre o leitor. Como o repórter deve trabalhar esses vícios?

M. C. G. – Conversando com o caixa da padaria, com o motorista de táxi, com a empregada doméstica… tentando saber o que as pessoas comuns pensam sobre o mundo noticiado. Os jornalistas nem sempre se colocam no mundo como pessoas comuns, embora sejam as mais comuns, no sentido de ‘ser com’, de ‘estar com’, e seria preciso mesmo ‘viver com’ os problemas cotidianos que afetam a população todos os dias. Não basta saber o que o fulano disse na Folha ou o Beltrano no Estadão, porque aí vira e mexe na mesma panela e o cozido fica com o mesmo sabor.

A boa reportagem não pode prescindir de um bom texto. Como seria esse texto?

M. C. G. – Ah, em seu mais puro sentido, um tecido de coisas diversas, mas bem arranjadas, como uma peça de Gaudi, onde cada pedaço brilha por si, mas onde também o todo é harmônico e faz bem aos olhos e à alma. É preciso dar ao leitor o prazer do texto.

Você lista alguns argumentos que são rotineiramente colocados para justificar o escasso investimento na reportagem. A seu ver, eles procedem?

M. C. G. – Penso, sinceramente, que o jornalismo impresso terá que repensar sua função. Quem quer saber de notícias, de modo rápido, vai para a internet. Quem quer saborear um texto jornalístico mais profundo vai ler uma boa reportagem num jornal ou numa revista. Parece que este hábito irá, futuramente, trazer de volta o investimento nas grandes reportagens impressas.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias