Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nassif desvenda os cabeças-de-planilha

[do release da editora]

Quais são os interesses por trás dos fracassos econômicos do Brasil? Quem foram os arquitetos dos fragorosos desastres do Encilhamento, no início da República, e da explosão dos juros logo após o Plano Real? Inteligentes, persuasivos, bem relacionados, eles são os Cabeças-de-planilha, expostos com maestria neste livro por Luís Nassif.

Aliando conhecimento do passado a uma notável familiaridade com os temas próprios da economia e do jogo político, o autor faz uma análise lúcida de diferentes períodos históricos. Sem misturar alhos com bugalhos, Nassif delimita bem as diferentes conjunturas, não transpõe tempos e personagens, mas demonstra uma realidade pertubadora: por trás das estruturas, das teorias econômicas, das leis do mercado e dos governos há seres humanos com qualidades e seus defeitos, como obstinação, voluntarismo, vaidade e ganância.

Fruto de profunda pesquisa e de anos de experiência no estudo das questões econômicas nacionais e internacionais, o livro consegue mostrar com clareza quem são estes homens, em quais momentos eles agem e como utilizam seus argumentos a fim de favorecer o triunfo do grande capital especulativo – com o qual, não raras vezes, mantêm uma perigosa proximidade.

Nassif decifrou números, combinou pessoas, fatos políticos e oscilações da economia, destrinchando o discurso hermético dos homens que definem os rumos da nação. E acabou deixando evidente um fenômeno importantíssimo para a compreensão do estrutural atraso brasileiro em relação aos países desenvolvidos: em momentos que estamos prestes a sair da mediocridade, somos travados pelos ‘cabeças-de-planilha’ – homens do governo que fazem jogo duplo e condenam o país inteiro à estagnação. Claro, conciso, erudito e polêmico, o livro não faz concessões: revela as tramas políticas e as negociatas financeiras, mostra os caminhos do dinheiro e diz quem é quem, com todas as letras, entre os ‘cabeças-de-planilha’.

Sem mágicas

Ao analisar dois momentos muito especiais, a política financeira de Rui Barbosa na Primeira República, e a insistência de homens fortes de Fernando Henrique em atitudes como a supervalorização do real frente ao dólar, Luís Nassif conclui: ‘Os cabeças-de-planilha são tão antigos quando o diabo. (…) quebraram o país do Cruzado, quabraram o país do Real. Mas cumpriram sua missão de enriquecer os rentistas e desmoralizar princípios de trabalho, produção, projetos de país e solidariedade nacional’.

Entretanto, Nassif não assume uma postura derrotista, nem acredita na velha ladainha que rotula o Brasil como ‘país do futuro’. Ao contrário, argumenta que nos tornaremos desenvolvidos no momento em que todos, Estados e sociedade civil, se unirem em torno de um projeto que não tem nada de mágico: uma estratégia com base na realidade do país e do exterior, gestão pública isenta, pacto político, educação universal e de qualidade. Ao fim de Os cabeças-de-planilha vemos que a grande mudança poderia começar agora.

O autor

Jornalista econômico, formado pela Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo, Luís Nassif foi um dos introdutores do jornalismo eletrônico no país. Membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, é autor dos livros O Menino de São Benedito (finalista do Prêmio Jabuti em 2002) e O jornalismo dos anos 90 (2003). Pelas suas matérias sobre o Plano Cruzado, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1986.

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Prefácio

Luis Nassif

Na primeira metade dos anos 1990, li o clássico América Latina: males de origem, de Manuel Bonfim, obra do começo do século XX. Nela, pela primeira vez, pude perceber as semelhanças entre o início da República e o convencionou chamar de Nova República.

Havia um modelo conservador, com poucos se apropriando do butim. Foi criado um movimento de ‘republicanização’ do Estado, que juntou, primeiro, os carbonários. À medida que foi ganhando musculatura, conquistou adesões de aliados ao velho regime. No poder, foram esquecidas as bandeiras da republicanização, e cada qual tratou de buscar sua parte do tesouro.

Essa corrida quebrou o Estado. Era uma crise do Estado, não da Nação. Como o Estado pôde emitir moeda, emitiu e provocou uma inflação que passou a afetar a Nação. Quando a população começou a se dar conta de que o problema estava no Estado, surgiu a figura mágica do ‘financista’, o sujeito que estudou fora e que volta com as últimas teorias econômicas. ‘Façam o que eu digo, e o país será salvo’ é o seu lema mágico. Propõe cortes orçamentários. Mas onde cortar? Na época, cortar soldo das Forças Armadas derrubava governos. Não dava também para cortar favores de aliados políticos. Corta-se, então, na linha de menor resistência: saúde, educação, recursos para estados. No final, o Estado estava salvo, a Nação, mais pobre.

Esse papel tinha sido claramente desempenhado pelos economistas do Plano Cruzado, capítulo da história que acompanhei de perto e que me permitiu o Prêmio Esso de 1986.

A partir da leitura da Bofim, sempre mantive a curiosidade de prosseguir na análise da analogia entre os dois períodos.

Ao mesmo tempo, sempre me intrigaram os erros flagrantes cometidos nas áreas de câmbio e juros pelos economistas do Real – os mesmos do Cruzado – na partida do plano. De julho de 1994 em diante, tornei-me um dos críticos mais persistentes dos erros cometidos. Por aqueles dias, dava para perceber não apenas o desfecho dos erros, como as motivações – em coluna daquele ano, a propósito da vinda de Winston Fritsch para comandar um banco estrangeiro no Brasil, chamei a atenção para os componentes de negócio que poderiam explicar os erros do câmbio.

Naquele mesmo mês de dezembro, houve um vento na sede do Banco Central no Rio de Janeiro. Como já havia começado a escrever sobre as semelhanças entre os dois períodos, nele Gustavo Franco me presenteou com sua monografia sobre o Encilhamento, livro que escreveu com apenas 27 anos.

Li, guardei e prossegui na guerra contra os erros do Real, especialmente a partir de abril de 1995, quando a violenta elevação dos juros para brecar a economia confirmava os prognósticos de todos os que apontavam os erros da apreciação cambial.

No meu livro, O jornalismo dos anos 90, há um longo capítulo com colunas que escrevi no período, alertando para tudo o que veio a acontecer posteriormente.

Quando terminou o governo de FHC, resolvi retomar a analogia com o início da República. Quem teria sido FCH? Campos Salles, como ele gostava de se definir, preparando o país para um Rodrigues Alves?

Comecei a me aprofundar nas leituras do período. De Campos Salles, FCH herdou a tecnologia da política dos governadores. No final do seu governo saudei essa habilidade com a coluna ‘Uma obra de arte política’, que acabou fechando a segunda edição da sua biografia, escrita pelo brasilianista Ted G. Goertzel.

Mas não batia com Campos Salles. Estes pegara uma situação catastrófica, herança do Encilhamento, e fornecera as bases para um período de estagnação que vigoraria até a Revolução de 1930. FHC comandara a catástrofe, com os erros do Real. A analogia teria que ser com o período anterior, com a quadra que se convencionou chamar de Encilhamento.

Então me lembrei da monografia de Gustavo. Como não a encontrava em minha biblioteca, escrevi-lhe pedindo uma cópia. Sua resposta foi objetiva: ‘Eu não! Senão você vai usá-la para me atacar’.

Embora crítico acerbo dos erros de Gustavo, sempre nos demos muito bem. Sempre admirei seu brilhantismo, até para defender teses incorretas, sua coragem de dar a cara a tapas, a maneira como aprendeu rapidamente as manobras de mercado, sua ambição política de querer mudar o país, e até sua longa purgação, tendo de carregar nas costas o estigma de ter cometido alguns dos mais graves erros da história econômica do país.

No dia seguinte, por coincidência, achei a monografia em minha biblioteca. É um livro pequeno, em que o jovem Gustavo ainda não desenvolvera o estilo claro que viria com os anos. Mas tinha uma profusão de dados que permitia ao leitor, inclusive, questionar as conclusões.

Era patente o entusiasmo do jovem Gustavo com seus personagens. Considerava o conselheiro Mayrink um vulto do tamanho de Mauá. E tinha em Rui Barbosa seu ídolo absoluto. O que mais intrigava no livro era a preocupação central de Gustavo em saber por que o modelo de Rui não dera certo. Não questionava os privilégios conferidos a Mayrink, nem sequer via correlação entre esses privilégios político de Rui, ou com as medidas que ele tomou no decorrer de 1890 para consertar o erro de partida, privilegiando um banqueiro sem capital, um empreendedor sem escrúpulos. A pergunta reiterada de Gustavo era: o que faltou para dar certo? E conclui que faltou um Banco Central para impedir as ondas concêntricas que se seguiram à quebra do Banco Baring na Argentina.

Uma leitura mais acurada permitia entender que o que encantava o jovem Gustavo não eram as formulações econômicas em si. Era algo muito mais sofisticado: como aproveitar o momento para inverter o jogo de poder, mudar o país, impor uma nova elite. E tornar-se sócio dela.

Rui era seu símbolo máximo, porque era o intelectual classe média que lograra utilizar o poder do conhecimento não para ir a reboque desses empresários ‘atrasados’, ou desses políticos ‘malandros’, preconceitos que ficaram evidentes em quase todos os seus discursos, mas para ser, ele próprio, fonte autônoma de poder.

A partir da percepção sobre o que se passava na cabeça do jovem Gustavo, mais as possibilidades de riqueza fácil abertas pelo Encilhamento, comecei a reconstruir os erros do Plano Real a partir de uma ótica mais comezinha.

Durante alguns meses, em minha coluna de domingo na Folha de S. Paulo iniciei um exercício de formular hipóteses, para os leitores e para mim mesmo, para entender algo que escapava à minha compreensão: como podem economistas preparados, como os que fizeram o Real, cometer erros tão bisonhos na partida do Plano, e persistirem neles até o limite de comprometer o próprio destino do Brasil?

A resposta demorou para sair, até por bloqueio. Mas acabou ficando cada vez mais nítida. A razão é que, na partida do Plano, assim como Rui Barbosa, não resistiram a, primeiro, dar a grande ‘tacada’ – expressão empregada pelo sócio e cunhado de Rui Barbosa, Carlito, e de uso corrente no mercado nos anos 1990, que serve para definir oportunidades únicas de enriquecimento fácil.

Este livro é fruto dessas reflexões e dessas pesquisas sobre esses dois momentos, o Encilhamento e o Plano Real, em que se mataram as duas maiores oportunidades de desenvolvimento do Brasil.

Agradeço a revisão crítica de Rodrigo Elias.