Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O abismo cavado pelos burocratas da imprensa

Ricardo Kotscho é um jornalista raro. No atual cenário da imprensa brasileira, é praticamente exemplar único, talvez acompanhado por um José Roberto Alencar: daquele tipo de jornalista que é essencialmente repórter, contador de histórias, mesmo que se torne dono de jornal ou assessor de imprensa. Em Do golpe ao Planalto — Uma vida de repórter, lançado na segunda-feira (31/7) pela editora Companhia das Letras, em São Paulo (no Rio em 7/8), Kotscho relata sua trajetória memorável da Gazeta Santamarense, jornal de bairro da zona Sul de São Paulo, até o Palácio do Planalto, onde até recentemente assessorava o presidente Lula.


Seus 40 anos de jornalismo, descritos no estilo de reportagem direta, pessoal, envolvente e engajada com que sempre marcou seus trabalhos, nos dão conta do abismo em que a imprensa foi mergulhada depois que as redações foram ocupadas por burocratas. As escolhas que fez, no entanto, também nos remetem a antigas discussões sobre limites da profissão: Kotscho tem sido há quase trinta anos – e faz questão de afirmar – jornalista e militante político. Sua longa relação com Lula, de quem se aproximou como repórter, durante a greve de 1978, e de quem se tornou amigo e correligionário, e a quem acompanhou desde a primeira campanha eleitoral até a presidência da República, marcam claramente sua carreira mas não parecem ter limitado suas escolhas como jornalista.


Como testemunha


A reportagem de Kotscho sobre sua própria vida abre algumas janelas para que o leitor possa entender melhor certos protagonistas e alguns fatos de nossa história recente. Sua descrição detalhada e cuidadosa de alguns episódios cotidianos da Redação do Estado de S.Paulo, por exemplo, revela que o verdadeiro estadista do tradicional matutino paulista era Júlio de Mesquita Neto, e que seu irmão, Ruy Mesquita, era quase sempre o freio nas ousadias do jornal contra a ditadura.


Um bilhete de Ruy Mesquita, encontrado por Kotscho entre seus guardados e reproduzido no livro, diz o seguinte: ‘Toda esta matéria contém denúncias que, se não forem comprovadas, podem ser simplesmente desmentidas e causar até procedimentos legais’. A matéria que o então diretor-responsável do Jornal da Tarde queria manter inédita era a imensa investigação, conduzida por Kotscho, sobre as mordomias no governo militar de 1976. Contrariando o irmão, Júlio Neto autorizou a publicação, que valeu ao Estadão o Prêmio Esso daquele ano.


O autor não consegue evitar certa nostalgia ao se referir a tempos em que a reportagem era a matéria-prima do jornalismo, e sua elegância não consegue esconder os nomes de alguns dos responsáveis pelas transformações que retiraram da imprensa sua alma. Da mesma forma elegante, Kotscho nos revela as dificuldades de conviver com jornalistas tão apaixonados quanto irascíveis. O quase lendário Mino Carta passa por vários capítulos, descrito ora como o eterno perseguidor do puro jornalismo, ora pintado como o tirano que transforma em inferno a vida de seus colaboradores. Em tudo, porém, Kotscho deixa escorrer um texto tão claramente honesto que chega a parecer cândido.


Do golpe ao Planalto também nos ajuda a entender por que razão é tão pobre e maniqueísta a atual agenda política que há quase quatro anos determina as primeiras páginas dos jornais, capas de revistas e as manchetes dos telejornais. Kotscho relata como testemunha, por exemplo, que enquanto uma parte do PSDB costurava uma aliança com Lula, para lançar como candidato a vice-presidente em 1994 o ex-governador cearense Tasso Jereissati, o então ministro Fernando Henrique Cardoso negociava sua própria candidatura a presidente com apoio do conservador PFL.


Num carrinho de pipoca


Foi assim, no relato do repórter, que Fernando Henrique saiu da chancelaria do governo Itamar Franco para um projeto de poder que ganhou o apoio unânime da mídia e o levou ao Planalto por dois mandatos. Em conseqüência, quebrou-se no PSDB o equilíbrio que mantinha em ascensão uma geração de líderes de variadas origens, centrando o poder no tucanato paulista, ao mesmo tempo em que se consolidava no PT o grupo que se opusera a um acordo com o governo Itamar Franco e que estaria, na década seguinte, no meio do escândalo que quase levou ao fim precoce o governo Lula.


Tudo contado com detalhes das reportagens que faziam a delícia dos leitores de jornais em tempos passados, também é dado a conhecer como o ex-ministro Tancredo Neves traiu o então deputado Ulisses Guimarães em sua cruzada pela volta das eleições diretas, negociando sua própria eleição pelo sistema indireto em troca da derrota da emenda constitucional que marcaria a redemocratização do país.


Kotscho sempre foi um repórter detalhista, daqueles que encostam no carrinho do pipoqueiro e descobrem os hábitos da vizinhança. Não faltam em seu livro episódios cuja descoberta se deu assim, mesmo, num carrinho de pipoca ou num boteco.


De seus primeiros textos num jornal de bairro, passando pelos grandes diários do país e por algumas experiências na televisão, que ele considera desastrosas, Kotscho agrega às qualidades de repórter uma característica humana que seus amigos conhecem bem – e que, de certa forma, parece andar na contramão do talento: a humildade. Depois de passar pelas mais de trezentas páginas em que ele faz o testemunho dos fatos mais relevantes que marcaram o mundo nestes quarenta anos, o leitor fica com a sensação de que o autor acha pouco.

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Jornalista