Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O abre-e-fecha da megabiblioteca mexicana

Para melar a festa não faltou algum gozador relembrando os velhos tempos da política mexicana, regida com mão de ferro pelo partido forte, o PRI, quando os presidentes, ao inaugurar uma obra pública no interior do país, faziam de conta, com a abjeta cumplicidade das autoridades locais, que tudo funcionava muito bem: assim, uma torneira comunitária só jorrava água durante a festiva passagem da comitiva oficial, depois era fechada para continuar o serviço, que podia nunca terminar ou estender-se por tempo indefinido – tudo dependendo dos interesses e conveniências dos puxa-sacos e aspones de plantão.

Resguardadas as diferenças – pois agora o poder, democratizado, é do partido opositor, o PAN – foi um pouco assim, semana passada, com a inauguração de uma das obras públicas mais criticadas, abominadas e rejeitadas do governo do presidente Vicente Fox, a chamada Megabiblioteca José Vasconcelos (44.186 metros quadrados, cinco andares, acervo inicial de 500 mil livros), entregue à população a toque de caixa para faturar prestígio e votos na reta final das eleições presidenciais de 2 de julho: o candidato do PAN e do presidente Fox, Felipe Calderón, obviamente se beneficia do barulho propagandístico das realizações, aceleradas, de fim de mandato.

Entregue em termos, pois o público em geral só terá acesso a biblioteca a partir de 1º de junho. Por enquanto, o recinto estará aberto apenas para receber grupos de estudantes, professores e pesquisadores em visitas guiadas.

Ausência de leitores

Foi enorme a frustração, tanto de jovens usuários ansiosos como dos meios culturais da Cidade do México, algo desconfiados de tanta pressa e badalação. E a imprensa não perdoou: ‘Megabiblioteca, en la disputa por votos’, ‘Megabiblioteca, espejo del centralismo cultural’, assim titulou o El Universal as duas matérias sobre o assunto na página de abertura do caderno cultural. A combativa revista semanal Proceso, em campanha permanente contra o governo de Fox, limitou-se a publicar um comentário assinado, nenhum esforço maior de reportagem.

Repercutiu, isso sim, a observação feita por um dos mais importantes intelectuais mexicanos, o sarcástico cronista e ensaísta Carlos Monsiváis, para quem a megabiblioteca ‘corre o risco de se converter num elefante branco ou num simples testemunho da passagem do foxismo por este país, caso não se consolide uma política eficaz de fomento da leitura… É incrível que, em 2006, 90% das oportunidades no campo cultural se concentrem na Cidade do México’.

(Ele tem criticado particularmente o que considera o fracasso do programa oficial de estímulo à leitura ‘Rumo a um país de leitores’, instituído pelo governo de Fox. Não aceita tampouco a afirmação de que os mexicanos não lêem: ‘Lêem, sim, só precisam de mais incentivo, formas inteligentes de fazer com que dediquem mais tempo e energia a boa leitura’.)

Monsiváis não falou de números, mas nem precisava: a Unesco corrobora dados do próprio governo e da indústria editorial: os mexicanos lêem 1,5 livros por ano, quando muito; hoje no país existem só umas 400 livrarias, gradualmente ameaçadas de extinção; e a rede nacional de 7 mil bibliotecas públicas – as da Cidade do México sobretudo, mal iluminadas, com acervos envelhecidos, roídas pelas traças – necessita reformas urgentes de infra-estutura, até mesmo nos banheiros.

Por que então investir tantos recursos oficiais em uma obra de dimensões faraônicas, bela e imponente arquitetura à parte, se muitos setores do arcabouço cultural e educacional do país requerem medidas urgentes de apoio e agora estarão em situação ainda pior, pois boa parte de seus já parcos recursos serão desviados para bancar o novo projeto? É o que perguntam, indignados, os críticos mais ferrenhos da megabiblioteca.

Mais ainda: por que tanto empenho numa monumental obra de natureza cultural quando, ao longo de seis anos de governo, Fox e seus ministros, pouco dados aos livros e à reflexão intelectual, não se preocuparam em melhorar as condições de trabalho dos setores culturais do país?

Catedral da cultura

Os números do projeto também são monumentais. Segundo dados do Conaculta – Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (equivalente a um ministério da Cultura), o custo total da obra, com projeto do renomado arquiteto Alberto Kalach, ao longo de quatro anos de planejamento, construção e instalação de equipamentos, foi de 100 milhões de dólares. O orçamento anual de operação da megabiblioteca deverá exigir por volta de 6 milhões de dólares, destinados a serviços, manutenção e pagamento de pessoal.

Quando aberta de forma integral, a megabiblioteca, orgulhosamente batizada pelo presidente Fox de ‘Catedral da Cultura’, poderá receber de 12 a 15 mil visitantes diários, quatro a cinco milhões por ano. Todo esse público disporá, além de um acervo inicial de 500 mil livros (a capacidade é de 1,5 milhão de volumos), de 750 computadores com acesso à internet.

A instituição deverá funcionar como um ‘cérebro’ ligado à rede nacional de bibliotecas, mas o processo de digitalização, necessário para essa ampliação, ainda não foi iniciado. Os usuários, atendidos por 125 bibliotecários, terão também uma cafeteria, sala de conferências, auditório para 500 pessoas, fonoteca e estacionamento para 400 carros.

O projeto arquitetônico ganhador propôs uma ‘integração do paisagismo, na forma de um jardim botânico com 26 mil metros quadrados, como parte de uma biblioteca concebida como depositária e transmissora do conhecimento universal’. Dispensada a linguagem pedante, o resultado da criatividade do arquiteto Kalach e equipe é de fato deslumbrante.

Passo a passo

Embora todas as pompas e frases entusiásticas da inauguração da megabiblioteca tenham saído de poses e bocas oficiais, ausentes grandes nomes da cultura e da arte mexicana, as próprias autoridades, um pouco acabrunhadas, não se furtaram a dar explicações sobre os incômodos atrasos e percalços da obra, incluindo goteiras.

Reconhece o diretor da biblioteca, Jorge von Ziegler, que ainda existem coisas para afinar e ajustar e que por isso mesmo o funcionamento se dará por etapas. Segundo ele, a digitalização do acervo tem demorado porque se trata, na maioria dos casos, de obras atuais protegidas por direitos autorais. ‘Esta é a obra cultural mais importante do governo do presidente Fox, que nos determinou iniciar operações normais nos próximos seis meses.’

E em meio a uma saraivada de críticas, brincadeiras e boa dose de fofocas político-eleitorais, a opinião positiva de outro escritor respeitado, o novelista Fernando del Paso, ainda que isolada e solitária, deve ter dado um certo alivio ao governo:

‘Muita gente dizia que é melhor várias centenas de bibliotecas no lugar desta, mas eu acho que é melhor ter as duas coisas. Não pesa nada a cidade de Washington ter a Biblioteca do Congresso, nem a Londres a Biblioteca do Museu Britânico, nem a Paris a Biblioteca Nacional. Uma grande comunidade em número necessita também uma grande biblioteca’.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México