Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O acendedor de lampiões e nós

Outro dia tive uma visão. Uma antevisão. Eu vi o futuro. O futuro estampado no passado. Como São João do Apocalipse, vi descortinar aos meus olhos o que vai acontecer, mas que já está acontecendo.

Havia acordado cedo e saí para passear com minha cachorrinha, a meiga Pixie, que volta e meia late de estranhamento sobre as transformações em curso. Pois estava eu e ela perambulando pela vizinhança quando vi chegar o jornaleiro, aquele senhor com uma pilha de jornais, que ia depositando de porta em porta. Fiquei olhando.Ele lá ia cumprindo seu ritual, como antigamente se depositava o pão e o leite nas portas e janelas das casas.

Vou confessar: eu mesmo, menino, trabalhei entregando garrafas de leite aboletado na carroça do ‘seu’ Gamaliel, lá em Juiz de Fora.

E pensei: estou assistindo ao fim de uma época. Daqui a pouco não haverá mais jornaleiro distribuindo jornais de porta em porta. Esse entregador de jornais não sabe, mas é semelhante ao acendedor de lampiões que existia antes de eu nascer. Meus pais falavam dessa figura que surgia no entardecer e acendia nos postes a luz movida a gás, e de manhã vinha apagar a tal chama.

Esse tipo foi imortalizado num soneto que Jorge de Lima, escreveu aos 17 anos e publicou em 1914:

O ACENDEDOR DE LAMPIOES

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

 

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se presente.

 

Triste ironia atroz o senso humano irrita:-

Ele que doira a noite ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

 

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!

Os próprios jornais estão alardeando que os jornais vão acabar, ou seja, vão deixar de ser impressos para virar um produto eletrônico. Não vamos mais folhear o jornal, sentir o cheiro de papel, nem ir à banca. Vamos ter um aparelho receptor onde aparecerão texto e imagem do jornal.

E isto já começou. É irrefreável. Os mais velhos vão dizendo que preferem ler o livro em papel e não abrem mão do jornal antigo. Mas o jornal e o livro é que estão abrindo mão deles. Os mais jovens, como se constata, já nascem lendo na tela, eletronicamente. Como se dizia antigamente- resistir quem há-de?

Tento me adaptar. Passei do mimeógrafo a álcool e do papel carbono à máquina elétrica e depois ao computador. Já tenho site, tenho blog e acabei de entrar no twitter.

Claro que o livro impresso vai continuar, como uma variante. Mas o entregador de jornais vai ser tipo histórico como o acendedor de lampiões. Assim caminha a humanidade…já dizia o filósofo James Dean. E em relação a essas formidáveis e assustadoras mudanças me vem aquela frase de Marshall McLuhan enunciada há 50 anos: ao ver uma deslumbrante borboleta, a larva disse: jamais me transformarei num monstro desses.

E dito isto, se transformou. [Publicado no Estado de Minas/Correio Braziliense, 22/8/2010.]

******

Poeta