Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso do bar Bodega

[do release da editora]

Livro-reportagem sobre um crime que mobilizou a opinião pública brasileira, Bar Bodega mostra como a violência e a barbaridade podem ser amplificadas pelo arbítrio das autoridades e pela ação negligente e sensacionalista da imprensa. A partir de um levantamento minucioso (entrevistas com os envolvidos nas investigações, exames de laudos processuais), o jornalista Carlos Dorneles reconstitui as circunstâncias do assassinato de dois jovens de classe média alta num bar de São Paulo, na madrugada do dia 10 de agosto de 1996, e do escândalo jurídico que o sucedeu.

Naquela noite, um bando de homens armados entrou no bar Bodega, no bairro de Moema, iniciando um assalto que teria como desfecho os dois tiros a queima-roupa contra o dentista José Renato Tahan, de 26 anos (que entrara desavisadamente na choperia), e a morte da estudante de odontologia Adriana Ciola, de 23 anos (que estava no Bodega desde o início do assalto e foi alvejada de maneira gratuita no momento em que os assassinos fugiam).

O fato de o crime ter ocorrido num bar freqüentado pela elite paulistana, de propriedade de atores conhecidos (Luis Gustavo e os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes), logo levou o caso para as primeiras páginas dos jornais. As manchetes falavam em pânico coletivo e epidemia de violência; os editoriais contestavam os defensores dos direitos humanos, descrevendo seus argumentos como catequese ideológica.

Paralelamente, os familiares de Adriana Ciola lideraram a formação do movimento Reage São Paulo, com apoio da Fiesp, da Federação do Comércio e personalidades como Hebe Camargo, o rabino Henry Sobel e o presidente da Força Sindical, Luiz Antonio Medeiros, promovendo passeatas, manifestações no Ibirapuera e protestos em frente ao Palácio dos Bandeirantes.

Nesse clima, com a polícia pressionada pela opinião pública, começam as primeiras prisões de suspeitos, imediatamente identificados como culpados por boa parte da imprensa: enquanto um jornal da capital anuncia ‘Presos assassinos do Bar Bodega’, uma colunista de outro grande diário escreve que os assaltantes são animais que matam por esporte, sentenciando: ‘São veneno sem antídoto, nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal é enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver’.

Papel da imprensa

Dentre os nove detidos estava Cléverson, menor infrator envolvido com drogas, acusado de assassinato e com passagem pela Febem. E é por meio da trajetória desse jovem delinqüente, atormentado e em busca de reconciliação com a vida familiar, que Carlos Dorneles consegue dar dramaticidade ao livro, sem prejuízo do rigor documental. Repórter da TV Globo desde 1983, o jornalista gaúcho acompanha nuances da biografia de Cléverson e mostra não apenas como a exclusão pode levar à criminalidade – mas como a condição de marginal pode levar à acusação por crimes não cometidos e à supressão dos direitos jurídicos mais elementares. Mostra, ainda, como o caso Bodega arrebatou as vidas de outros rapazes da periferia paulistana, jovens trabalhadores inocentes que, em meio a acus ações e ao terror policial, tornam-se também delatores, alimentando a violência em espiral.

O clímax do episódio ocorre quando, alguns meses depois da detenção dos suspeitos e de sua execração pública, a verdade começa a vir à tona: sete dos nove presos são libertados por insuficiência de provas, constatando-se que confissões haviam sido obtidas sob tortura e com a conivência de uma população sedenta de vingança. Esta verdade, porém, seria reconhecida de maneira discreta pela imprensa, que omitiu seu próprio papel na legitimação do disparate jurídico.

Quando finalmente são identificados e processados os autores dos assassinatos, verifica-se que ‘nas matérias telegráficas que a imprensa publicou, nenhum comentário sobre o fato de que os acusados anteriores eram negros ou mulatos, e não brancos como os verdadeiros assaltantes’. Ou seja, se num primeiro momento a polícia respondera aos apelos das manchetes, a imprensa foi pautada pela polícia e pelo preconceito vigente na sociedade brasileira.

Como observa Dorneles, essa mácula na história do nosso jornalismo foi imediatamente identificada pelo juiz que proferiu a sentença (reproduzida no livro), mas suas referências à imprensa jamais foram publicadas ou sequer citadas pelos veículos de comunicação. Da mesma maneira, os jornais não acompanharam o destino dos acusados após o caso do bar Bodega – e por isso não souberam que alguns deles se sentem mais indefesos diante da imprensa do que da polícia, ou que, após atingir a maioridade, Cléverson voltara para a casa do pai e havia conseguido emprego, mas foi assassinado uma semana antes de completar 20 anos. Um crime que nunca foi investigado pela polícia e nunca foi manchete de jornal – mas que Carlos Dorneles nos apresenta como o desfecho de um episódio imprescindível para se analisar o papel da imprensa.

O autor

Carlos Dorneles nasceu em Cachoeira do Sul (RS) em 1954. É repórter da TV Globo desde 1983, após trabalhar na Folha da Manhã, no Zero Hora e na RBS-TV, em Porto Alegre. Foi correspondente internacional em Londres (1988-1990) e Nova York (1991-1992). É autor de Deus é inocente – A imprensa, não, publicado pela Editora Globo e classificado em terceiro lugar na categoria Reportagem e Biografia do Prêmio Jabuti 2003.