Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O cronista maior da grande cidade

Paulistano da gema, oriundi legítimo (Ruggiero pelo lado materno), nascido e criado no Bixiga, com passagens pelo Alto do Pari e Aclimação, sempre tive com a cidade – sobretudo a dos anos 1950 e 60, ainda bastante italianizada em seus gestos, falas e costumes – uma relação muito estreita, mais tarde refinada pelo olho e o ouvido de repórter.

Mas, e não escondo isso, só passei a sentir e apreciar novos e singulares ângulos da vida urbana, gente e paisagens da chamada selva de pedra quando li os livros de outro paulistano, também oriundi, Edmundo Donato – para seus leitores devotos o escritor Marcos Rey, morto em 1999, aos 74 anos. E muito mais aprenderia sobre São Paulo e sua fauna humana, bem mais tarde, quando passei a conviver com ele nas saudosas rodas literárias dos sábados, na Livraria Cultura, nos anos 1980.

Tão intensa foi essa convivência, com longos papos sobre literatura americana e jazz, temas por ele dominados com paixão, tudo temperado com boas fofocas do petit monde literário local, que, em algum momento, cheguei a pensar saber muita coisa sobre a vida e a obra do escritor. Se pequei de presunçoso, então a reprimenda, das mais suaves por certo, luva de pelica de fina estirpe, chegou nesta terna e respeitosa biografia de Marcos Rey escrita por Carlos Maranhão (Maldição e Glória – a vida e o mundo do escritor Marcos Rey), que muito antes de lançar-se nesse pedregoso e estafante oficio, o da biografia, já provara sua competência como jornalista em várias publicações da Editora Abril.

Segredo de morte

Ao encarar o desafio de biografar o escritor, por sugestão de sua viúva, Palma Donato, Maranhão, mesmo acostumado aos tempos frenéticos e hipertensivos de uma redação, logo se viu diante de um sério obstáculo: o prazo, para variar, era exíguo, cinco meses, e talvez por essa razão, mesmo arriscando perdas na qualidade final, optou por fazer um livro relativamente curto, com pouco mais de 200 páginas, em 31 capítulos.

Nada a objetar, pois o resultado da pauleira brotou num estilo elegante, enxuto até, mas nem por isso menos agradável e envolvente, com muitas revelações inéditas sobre a vida e a obra do escritor, como pano de fundo um amplo panorama da vida intelectual e artística da São Paulo dos anos 1950 e 60.

A mais surpreendente dessas revelações e até certo ponto chocante: durante toda sua vida Marcos Rey ocultou um segredo indevassável, um fato trágico que o marcou ‘da infância até a morte’. Foi, na adolescência, um hanseniano, ou, como se dizia antes, bem baixinho, um leproso. Anos mais tarde, já curado pelas sulfonas mas não livre das seqüelas, ele esconderia, sempre que possível, as mãos feiamente atrofiadas pela doença. Por discrição ou desconhecimento da origem da deformação, os amigos atribuíam aquilo a uma artrose, ninguém podia imaginar coisa mais séria. Só a família sabia a verdade e, por razões óbvias, jamais a revelou.

A doença, na época – fins da década de 1930 – incurável e contagiosa, de efeitos devastadores, que fazia do infeliz portador um pária na comunidade e cujo único destino eram as colônias de isolamento no interior do estado, será o delicado ponto de partida para o biógrafo contar uma vida e analisar a obra literária de Marcos Rey – como se a própria empreitada de resumir em livro a existência de alguém não fora em si um trabalho gigantesco e de resultados nem sempre satisfatórios.

Mesmo lembrando que o próprio escritor, quando discorria sobre seus autores americanos prediletos – Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Dreiser, Saroyan – dizia muito dever a todos, porque pouco inventavam, na verdade não faziam ‘um puro e simplesmente belo jogo de palavras. Era mais que isso: a transmissão de uma vivência’.

Tema proibido

De fato, isso ele fez em sua obra: primeiro, por necessidades circunstanciais, conviver; depois, por razões de oficio, descrever todo tipo de pobretões iludidos pela fama e o dinheiro – balconistas e caixeirinhos duros, rameiras ambiciosas, publicitários arrogantes, eternos extras e figurantes, malandros ‘espertos’ do asfalto paulistano, figuras que retratou em seus 40 livros (romances, contos, literatura juvenil e paradidáticos), mais de 5 milhões de exemplares vendidos, além das toneladas de laudas que perpetrou direitinho, para pagar as contas e afastar os credores, no rádio e televisão, jornais e revistas, na publicidade e no cinema. Foi um dos mais prolíficos e requisitados roteiristas da época das pornochanchadas da Boca do Lixo, anos 1970, para as quais escreveu 32 roteiros.

Um escritor versátil, produtivo, rápido e bom cumpridor de prazos, segundo muita gente do ramo entrevistada por Maranhão. Mas se de vivência autêntica se tratava na hora de escrever, então Marcos Rey foi rigorosa e contraditoriamente seletivo, quem sabe com justa razão, até o fim: nada existe na sua obra e muito menos nos papos com amigos e admiradores que faça alguma referência à doença ou ao seu sofrimento.

O biógrafo sensível soube respeitar esse desejo, tratando com cuidado e finura o drama maior do biografado, sem contudo deixar de informar o leitor sobre as atrozes conseqüências permanentes da doença – uma tortura diária, interminável.

Irretocável é, por exemplo, a descrição do que é a hanseníase e as dramáticas repercussões sociais da doença nos anos 20 do século passado, em São Paulo. Assim como a narrativa da trajetória pessoal e política, sem folclorismo barato, de uma das maiores defensoras dos hansenianos, a famosa deputada estadual Conceição da Costa Neves, uma legisladora boa de briga que pessoalmente desafiou o médico Francisco de Salles Gomes Jr., pai do futuro crítico de cinema Paulo Emilio, que, adepto convicto do confinamento absoluto, criou e chefiou um sinistro comando de caça aos hansenianos na cidade, mandando-os em seguida as tais colônias.

Era a morte antes da morte, pois dali poucos e raros saíam e voltavam a uma vida normal ao lado da família. O ‘doente Edmundo Donato, prontuário n. 19.532”, foi um desses privilegiados.

Gente como a gente

Impossível afirmar e muito menos comprovar, mas tudo indica que Marcos Rey teria decidido, até mesmo como uma defesa natural ou uma forma de administrar melhor uma carga desse tipo, tremenda para o corpo e o espírito, dedicar-se a literatura, usando, além de suas inclinações para a escrita, reveladas muito cedo e aprimoradas na leitura voraz dos clássicos na biblioteca do pai encadernador, um sentido de humor peculiar, com tinturas sarcásticas, às vezes tristes.

Com esses recursos e um texto claro e direto de bom contador de histórias, com freqüência gozador, sem firulas de estilo, reviveu e recriou a atmosfera, então pacífica, da noite boêmia de São Paulo, por ele conhecida a dedo em cada esquina, dentro dos bares e boates do centro – da Luz à Vila Buarque –, povoada por figuras inesquecíveis.

Homens e mulheres durante o dia escondidos nos cantos cinzentos e sujos da periferia ou perdidos na rotina perene atrás de um balcão de loja, mas que à noite, bem vestidos e perfumados, movidos por grotescos sonhos de grandeza, brilhavam nos inferninhos e dancings da São Paulo dos anos 1950. Às vezes até pegavam uma boquinha no apartamento de algum ricaço paulistano, pronto para pagar bem seus hábitos libidinosos.

Leitor atilado de um jornalista e escritor americano dos anos 1940, Damon Runyon, grande cronista da Broadway e dos habitantes de suas coxias e vielas, Marcos Rey em parte dele absorveu, e depois desenvolveu com estilo próprio, uma técnica narrativa veloz e ao mesmo tempo um leve tom patético, sobretudo nos seus contos. Alguns deles antológicos, como ‘O Bar dos Cento e Tantos Dias’, um retrato cruel do desemprego estoicamente vivido por um publicitário numa mesa de bar, o histórico Paribar, da praça Dom José Gaspar. (Depois de ler esse conto, jamais me senti tranqüilo num bar de calçada, de onde, dizia um dos personagens do livro, é só a gente olhar bem e vemos os mortos passar em frente.)

Entre seus romances, e aqui vai o gosto do resenhista, Opera de Sabão é o mais logrado de todos, uma singela história situada no fim da época getulista, suicídio do Velho à vista, e no auge do rádio paulistano, quando a grande audiência era a da Rádio São Paulo, a das novelas o dia inteiro – aqui disfarçada com o nome de Rádio Ipiranga, mas, pela descrição minuciosa, funcionando nos mesmos estúdios do casarão da Avenida Angélica onde a emissora e seu belo elenco de atores e atrizes de vozes solenes e impostadas, truque daqueles tempos (lembram do galã Odair Marzano?) reinou muitos anos.

Estruturalês neles!

Ao amanhecer setentão, 40 anos a batucar nas pretinhas, nas conversas sabatinas que tinha com os amigos, sorvendo um chopinho gelado e bicando umas coxinhas do bar do português, em frente à Livraria Cultura, cortesia infalível do poeta e advogado Yves Gandra Martins, Marcos Rey, autor consagrado no Brasil e traduzido em vários países, bem de vida, desabafava, sem constrangimento, uma das poucas mágoas que tinha: não ser reconhecido como o bom escritor que era pela crítica mais séria do país.

Mas, de repente, rindo, um gostinho de vingança no tom de voz, citava outro amigo, o escritor João Antônio, admirador de sua obra, também em grande parte concentrada na São Paulo dos pobres e destituídos, que alguma vez lhe respondera:

‘Marcos, como os seus escritos não são complicados – você não enrola o óbvio – a chamada crítica literária não os badala. Também, como poderão os doutores em estruturalês entender uma literatura que é feita de gente?’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México