Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dicionário mutilado

A Global Editora reeditou, nos últimos anos, diversos livros de Luís da Câmara Cascudo. Comprei a reedição da Global do Dicionário do Folclore Brasileiro, e tive uma surpresa bastante desagradável ao descobrir que o volume não apresentava o texto integral da obra.


Para ter uma noção das omissões da edição da Global (2001, 10ª edição), tomei como referência uma edição antiga do Dicionário (Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1988, 6ª edição). Comparei todos os verbetes iniciados pela letra ‘A’ nas duas edições – conferir o dicionário inteiro seria seguramente trabalho para mais de um mês. Eis alguns números:


** A referida 6ª edição tem 305 verbetes iniciados com a letra ‘A’, enquanto a 10ª edição (Global, 2001) possui apenas 161. A Global suprimiu (isso mesmo, simplesmente suprimiu) 167 verbetes da 6ª edição. Destes, 72 são verbetes meramente remissivos (i.e., seu texto completo não é mais que a simples remissão a outro verbete), mas que cumprem um papel fundamental em qualquer dicionário, e não podem ser omitidos sem sérios prejuízos ao aproveitamento da obra. Foram acrescentados cerca de 20 verbetes, sendo que parte destes não constitui matéria nova, pois foram transpostos, sem indicação, de outros verbetes da 6ª edição.


** Dos verbetes mantidos, 86 foram resumidos ou mutilados de forma estarrecedora.
Verbetes como ‘Alma’, ‘Alimentação’, ‘Aboio’ e ‘Aranha’, que ocupam, cada um, páginas e páginas na 6ª edição, foram reduzidos a poucas linhas – com a supressão de longos trechos, citações e referências bibliográficas, que constituíam uma das maiores riquezas do trabalho criterioso de Câmara Cascudo.


** Há um ou outro verbete com pequenos acréscimos, e são raros os que mantêm a mesma forma da antiga edição. Vários tiveram as referências bibliográficas omitidas.
Tomando por amostragem os verbetes da letra ‘A’, isso quer dizer que a da Global suprimiu mais da metade dos verbetes de uma edição anterior do mesmo dicionário, e certamente cortou fora também mais da metade do texto escrito por Câmara Cascudo para essa obra. E (o que é gravíssimo) a edição da Global não contém qualquer referência a essas modificações nem aos critérios que as orientaram.


A nova edição da Global reduziu as longas explicações de Cascudo (com ricas citações de exemplos, narrativas e referências bibliográficas de onde tirava bases para suas conclusões) a pequenas definições sumárias para cada verbete. Tentaram com isso, folclorizar o Câmara Cascudo, atribuindo-lhe uma autoridade com a qual o próprio autor certamente não concordaria.


Canoa furada


Sentindo-me prejudicado como consumidor (por pagar uma fortuna por um livro que veio pela metade) e como pesquisador (por ter que refazer parte de meu trabalho de pesquisa utilizando uma edição integral do Dicionário do Folclore Brasileiro), Entrei em contato com a editora. Eles admitem ter publicado uma versão resumida do Dicionário, concordando com os números que apresentei, e que cometeram um erro ao não colocar um aviso a respeito na capa. Propuseram-se a me ressarcir dos prejuízos que sofri – o que já foi feito.


Por e-mail, o editor-assistente da Global Editora, Luiz Guasco, afirmou que a ‘remodelação’ do Dicionário do Folclore Brasileiro foi coordenada por Laura Della Mônica, folclorista e professora da Universidade de São Paulo, e teve acompanhamento por parte dos detentores dos direitos autorais de Câmara Cascudo. Diz ele: ‘A Global Editora não solicitou nem sugeriu cortes, pois esta não é sua política para a publicação de livros em geral, e menos ainda para os de referência’.


Contudo, constado o erro, não informou das providências que a editora pretende tomar para corrigir esse deslize. O certo seria recolher a edição e colocar uma advertência na capa dos exemplares, e ressarcir todos os que já têm o livro. Não acredito que eles estejam dispostos a fazê-lo espontaneamente, mas ainda não me informei sobre caminhos jurídicos viáveis para que algo seja feito.


Por enquanto, temos que avisar aos colegas para não entrarem na canoa furada de comprar o Dicionário. Sugiro aos que, por azar, tenham adquirido a edição da Global do Dicionário do Folclore Brasileiro que peçam ressarcimento à editora.


A Global reeditou também diversos livros do Gilberto Freyre. Vale a pena certificar-se de que as edições estão completas antes de comprar.

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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília