Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O drama do apresentador e os interesses comerciais

A televisão aberta tem poucas opções de qualidade, principalmente na área do entretenimento. Aos domingos a coisa piora, pois a guerra da audiência ainda tem levado as emissoras a baixarem o nível da programação para conseguirem pontos no Ibope. Mesmo que o público tenha se tornado mais seletivo, parece que velhas formas de atrair o telespectador a qualquer preço estão sendo repetidas.

No domingo passado [25/10] – por volta de meia-noite –, resolvi assistir ao programa do Gugu, na Record. Não assistia a um programa dele há muitos anos, mas tive curiosidade em saber o formato da atração na nova emissora. Li em alguns artigos de jornais paulistas que – apesar do salário milionário que lhe foi oferecido – Gugu foi para o canal de Edir Macedo para fazer mais do mesmo, ou seja, ‘vender’ sonhos para pessoas de baixa renda e promover atrações de gosto duvidoso.

Admiro a trajetória do Gugu e sua história na televisão. Além de ter começado muito jovem, ele escreveu cartas para o Silvio Santos até conseguir um emprego no SBT. Só que, mesmo com tanto carisma, garra e determinação, me atrevo a dizer que alguns quadros do seu programa promovem um desserviço ao telespectador brasileiro – por serem baseados no sensacionalismo e na cultura do espetáculo.

Durante o programa que assisti no domingo, Gugu resgatou – ao vivo – uma família que morava embaixo do viaduto Alcântara Machado, na capital paulista. Lá ele encontrou um pedreiro cujo nome artístico era Piu-Piu, além de sua esposa e um casal de filhos. Após entrevistar a família necessitada, Gugu mostrou a situação que enfrentam os moradores que se instalaram nas imediações.

Anunciante era a Colgate

O apresentador levou a família para os estúdios da Record, eles fizeram uma transformação no visual e participaram do quadro Sonhar mais um Sonho. Piu-Piu já havia tentando ser artista, mas perdeu o que tinha arriscando tudo na carreira. Para dar uma oportunidade ao morador de rua, Gugu promoveu ao vivo uma apresentação das músicas do cantor, ofereceu-lhe um emprego de pedreiro na construção da própria casa, uma viagem à Bahia para ele, a esposa e os filhos visitarem os parentes, um patrocínio para a gravação do seu CD, além de tratamento médico e odontológico para toda a família.

Pode parecer um detalhe irrelevante, mas o estado dos dentes de Piu-Piu chamou a minha atenção. A situação odontológica do rapaz era tão deplorável que parecia uma dentadura postiça. Não entendo muito da área, mas como tenho pais dentistas, tenho noções básicas sobre questões da boca. Mesmo com dentes extremamente podres e separados, a gengiva de Piu-Piu era rosa, ou seja, a cor ideal para ela estar saudável. Não posso afirmar, mas depois dos episódios seguintes, cheguei a pensar que os dentes e a gengiva não eram dele.

O que me fez pensar assim? Quando o apresentador chamou os comerciais, percebi que a Colgate era um dos anunciantes. Não lembro exatamente o nome dos produtos anunciados, mas falava sobre prevenção de cáries, doenças da gengiva, cuidado com os dentes.

Aproveitando-se da ignorância

Logo após o intervalo, o merchandising feito por Gugu – para a minha surpresa – também era sobre a Colgate. Mesmo não podendo afirmar categoricamente a relação entre a triste história de Piu-Piu, os seus dentes e o anunciante, não há como negar que existem indícios de um teatro feito para agradar os interesses publicitários do programa. Não que a história de vida apresentada não seja verdade, até porque é a realidade de muitos que vivem neste país. A questão é até que ponto a publicidade pode interferir no conteúdo de um programa – que bem ou mal – retratou a história de um brasileiro.

Os meios de comunicação vivem de publicidade – não há nada de errado nisso. O problema é quando eles se aproveitam da ignorância e do drama de um morador de rua e seu suposto sorriso deficiente para favorecer interesses comerciais.

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Jornalista