Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O elogio da tortura

O sorriso perverso de Jack Bauer diante da prisioneira que reclama seu direito a um advogado não será suficiente para desencadear o repúdio da platéia. Jack, interpretado por Kiefer Sutherland, é ‘do bem’. Seu personagem foi cuidadosamente construído pelo roteirista do seriado 24 Horas. Ele tem uma família, ama sua filha e amava sua esposa, até ela ser assassinada pela agente Nina Myers, personagem-chave do seriado até sua morte na terceira temporada.

Assisti às três primeiras temporadas. Foram 72 episódios de uma hora cada, divididos em 18 DVDs. O seriado é transmitido pela Fox, de Rupert Murdoch, e repetido no Brasil pela Rede Globo, que acaba de anunciar, não sem alegria, sua extensão até 2009. A indústria cultural está satisfeita. Nos EUA, 24 Horas foi premiado com cinco Emmy (o Oscar da televisão), incluindo melhor seriado dramático e melhor ator para Sutherland.

Tudo gira em torno da UCT (Unidade Contra o Terrorismo), situada em Los Angeles. Lá estão os personagens principais: Jack Bauer, Nina Meyers, Tony Almeida, Ryan Chapelle, Michele Dessler, Kim Bauer (a filha de Jack, que em três temporadas passa de ‘filha-arruma-problema’ a agente da UCT), entre outros.

Na primeira temporada, o objetivo da UCT é impedir o assassinato do candidato negro à Presidência da República, David Palmer. Os ‘terroristas’ vêm dos Bálcãs. A esposa e a filha de Jack são seqüestradas e ele é manipulado para facilitar a missão. No final das contas, acaba conseguindo salvar a vida – não uma, mas duas vezes – do candidato Palmer. Os dois tornam-se amigos.

A tática da autovitimização

Na segunda temporada, Jack e companhia precisam localizar uma bomba nuclear plantada em solo estadunidense por ‘terroristas’ islâmicos. Depois de localizá-la, o nobre herói é voluntário para pilotar o avião que levaria a bomba para o deserto, onde seria detonada sem maiores riscos para o povo estadunidense. No final das contas, o diretor da UCT se oferece para trocar de posição, já que havia sido contaminado por plutônio e morreria de qualquer jeito. O herói Jack reluta no início: precisa ter certeza de que o enjôo da radiação não poria tudo a perder. Mas acaba cedendo, depois que fica bem claro que ele estava mesmo disposto a morrer para salvar seu povo.

Na terceira temporada, os ‘terroristas’ são mexicanos. O problema começa com tráfico de drogas e termina com os malvados irmãos Salazar tentando comprar um vírus extremamente letal para revendê-lo à Al-Qaida que, naturalmente, atacaria os EUA com a nova arma. Claro que Jack resolve tudo no final.

Nas três primeiras temporadas, fica evidente que o objetivo é construir no imaginário da platéia a idéia de que os EUA vivem sob ameaça. É como se dissessem: ‘Vejam, o mundo tem raiva de nós. Eles nos odeiam sem motivo algum. Se há um motivo, é porque somos livres e democráticos.’ O medo faz com que as pessoas aceitem tudo. Inclusive mentiras para levar seu país a invadir outros países, a legalização da tortura ou uma fraude eleitoral. E essa é a mensagem transmitida durante todos os capítulos do seriado: o país está sendo ameaçado o tempo todo por todo o mundo. Ao inverter a realidade (na verdade, os EUA é que ameaçam o mundo com suas ogivas nucleares, seu terrorismo de Estado e suas corporações que destroem o meio ambiente), o seriado alinha-se à propaganda política de Washington, que, adotando a tática da autovitimização, exime-se de toda e qualquer responsabilidade pelo que há de errado neste planeta.

Uma maleta e uma seringa

Jack é um fenômeno. Sabe operar sistemas sofisticados de computação, atira como ninguém, pilota aviões e helicópteros (a ponto de driblar dois helicópteros militares num teco-teco civil) e tortura quem aparece pela frente sem que o público o odeie por isso. Claro, para salvar milhões de estadunidenses, vale torturar alguém para obter informações (mesmo que já tenha sido provada a ineficiência desse método). Perdão. De acordo com a nova lei aprovada no ano passado nos EUA, o nome não é tortura. São ‘métodos duros de interrogatório’.

Como se não bastasse, Jack é um garanhão. Além da esposa, pegou a agente Nina Meyers, a irmã de uma terrorista (que não sabia de nada, claro) e Cláudia (esposa de Marcos Salazar). Só mulherão! E o diretor ainda deu um jeito de fazer com que ele desse uns beijos na agente traidora, mesmo depois de ela ter matado sua esposa. Pelo script, o coitado foi obrigado a fazer isso para manter o disfarce.

Mas há algo mais nesse seriado. Além de grandes atores e de histórias muito bem montadas, a equipe de produção é quem faz a diferença. Eles constroem os personagens de maneira que a platéia não tem escolha: há os personagens que o espectador adorará e outros que ele odiará. Nina Myers, por exemplo, interpretada por Sarah Clarke. Uma pintura de atriz. Confesso que não consegui odiá-la nem quando ela trabalhava para a UCT e nem quando mudou de lado, passando a vender informações para qualquer ‘terrorista’ que lhe pagasse uns milhões de dólares.

Há outro detalhe digno de nota: até a tortura é diferenciada. Quando são os ‘terroristas’ que a praticam, as cenas são repletas de sangue, gritos, gemidos. Há uma cena em que o torturador lembra um açougueiro. Seus instrumentos de tortura parecem saídos da Idade Média e sua roupa fica repleta de sangue. Já quando Jack tortura, ou a tortura é feita na UCT, a coisa é diferente. Muitas vezes, vem um sujeito de terno e gravata abre uma pequena maleta, retira uma seringa e injeta no sujeito algum líquido que lhe causa uma dor extrema. Tudo limpo.

Efeito devastador

Outro esforço dos realizadores de 24 Horas é mostrar que o presidente David Palmer é um homem justo, honrado. O presidente dos EUA sempre apresenta semblante pesado quando precisa tomar uma decisão que vai salvar a vida de milhões de pessoas, se isso causar a morte de um único ser vivo. Na segunda temporada, ele faz de tudo para evitar uma guerra contra países islâmicos, mesmo depois que pessoas de dentro do seu próprio governo forjam provas para implicar aqueles países. Mas Jack consegue provar a fraude no último minuto.

Ou seja, o seriado passa uma imagem irreal da figura do presidente dos EUA, como se ele não fosse o principal representante das corporações que lucram com a exploração dos povos e o assassinato em massa.

Segundo a revista New Yorker, o ator Kiefer Sutherland disse que o seriado ‘não passa de entretenimento’. Mas quem sabe que a mídia, hoje, é a instituição com maior capacidade de produzir subjetividades (formas de sentir, pensar, agir e viver), percebe o efeito devastador dessa ‘obra de ficção’. Cada vez que o torturador Jack Bauer entra em ação, milhões de pessoas são levadas a apoiar suas práticas. E a humanidade torna-se menos humana.

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Jornalista, editor do FazendoMedia