Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O estranho adjetivo

Na leitura de artigos, editoriais, colunas políticas em que o presidente da República Itamar Franco era citado na imprensa, vez ou outra me deparava com um estranho adjetivo: “mercurial”. Por 35 anos batalhando nas redações do Jornal do Brasil, O Globo, O Dia e Extra, jamais o vira atribuído a outro figurão político, como Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Magalhães Pinto, João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, por exemplo, num retroagir aos tempos iniciais de minha carreira profissional. Estes receberam adjetivações comuns, compreensíveis, contra ou a favor, para definir seus perfis – exceto “mercurial”. E, mais à frente – ultrapassemos os sombrios 20 anos em que os generais se revezaram no poder –, Tancredo Neves, José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, da mesma forma, jamais fizeram por merecer o epíteto. É como se Itamar Franco tivesse adquirido a sua exclusividade, vedado o seu emprego a qualquer outro político – do vereador ao presidente da República.

Eis dois exemplos assinados por conceituados jornalistas, em artigos/epitáfios sobre Itamar Franco:

** “Um homem de temperamento mercurial, mas, em compensação, de conduta vertical.” (Dora Kramer / O Estado de S. Paulo – 5/7/2011)).

** “Várias vezes o mercurial Itamar renunciou ao cargo durante a campanha [de Fernando Collor].” (Merval Pereira / O Globo – 14/7/2011).

De minha mãe ouvi pela primeira vez o adágio popular: para quem sabe ler um pingo é letra. É a imagem dela que me ocorre sempre que a minha retina se depara com o tal “mercurial”: vejo-a conferindo no termômetro, uma pequena haste de vidro, tracejado, o nível do mercúrio indicando a quantas anda a febre do seu pequerrucho acamado por uma gripe qualquer. Em seguida, ela o sacode para abaixar o elemento químico, líquido, prateado, que se elevará novamente na próxima tomada da temperatura do meu corpo.
Eis que chegamos, finalmente, ao entendimento sobre o emprego do “mercurial” que servirá aos jornalistas acima e outros tantos, a maioria da imprensa paulista, para classificar o temperamento do presidente Itamar Franco, que variava do afável, cordial, educado, diplomático ao contido e irritadiço de acordo com o calor dos debates ou diante dos momentos de graves decisões.

Mas, ora bolas, o sobe-e-desce do humor “mercurial” não ocorria ou ocorre também com todos os políticos acima citados diante da excitação natural no enfrentamento com adversários ou na leitura de editoriais jornalísticos recheados de críticas infundadas, pejorativas e mal intencionadas? Será que Fernando Henrique Cardoso – fiquemos apenas com o exemplo de FHC, que se aliou a Itamar Franco para compor a dupla que mudou a História do Brasil para melhor – conseguia manter o seu humor, linearmente, diante de todas as crises e acusações por que seu governo passou sem alterar o nível “mercurial” de suas emoções?

Assim sendo, conclui-se que todos os seres humanos, políticos ou não, são “mercuriais” – mas só no caso de Itamar Franco a adjetivação foi empregada, em tom pejorativo, acusatório, mas que o tempo se encarregou de revelá-la como sinônimo de ranço e preconceito.

“O maquinista”

No dia em que recebi a missão/desafio de Marcello Lignani Siqueira e Djalma Morais, com o aval do próprio Itamar Franco, de ser o autor de sua biografia, confesso que a encomenda fez explodir o meu ego profissional, mas relutei e fiz-lhes ver que essa era uma tarefa de grandeza acima de minhas possibilidades, modestamente.

Estávamos em junho de 2009, e a intenção era que o livro fosse lançado ao mesmo tempo em que se realizariam as convenções partidárias, ano depois, quando Itamar Franco seria oficializado candidato do PPS a uma das duas cadeiras no Senado Federal por Minas Gerais. Ao deparar-me com os milhares de documentos colocados à minha disposição para começar as pesquisas, percebi estar diante de uma missão impossível – afinal, somente para realizar a pauta dos trabalhos, foram mais de 30 dias. E nela não constava o capítulo que encerra este livro. Os três se renderam aos meus argumentos e liberaram-me dos compromissos com prazos rigorosos – assim como me habituara na redação dos jornais, ouvindo sempre o alerta, que deixava editores, redatores, secretários, diagramadores com os cabelos em pé a cada brado: “Olha a hora!”

O encontro foi realizado na sala do ex-presidente, em um dos ambientes dos dois andares que abrigavam o Instituto Itamar Augusto Franco (IIAF). Algumas dezenas de anos antes, eu os frequentava, um jovem engravatado entre centenas de pessoas ocupando um espaço em comemorações sob diversas motivações (bailes de formaturas, de carnaval, de debutantes, comemorações estudantis, shows de bossa-nova etc.), nos ambientes elegantes, charmosos do tradicional Clube Juiz de Fora. A modernização dos tempos se encarregou de torná-los inadequados, economicamente inviáveis, e acabaram adquiridos por empresa privada.

Os amplos espaços, de onde se descortinava uma agradável vista panorâmica de Juiz de Fora, abrigavam, agora, o acervo que registrava a história de Itamar Franco, desde os seus tempos colegiais até a sua gloriosa aventura como 33º presidente da República do Brasil.

“Presidente, é uma honra, mas…” – dei início às minhas razões para a recusa, mas logo fui interrompido pela figura esguia, elegante, em calça jeans, camisa social-esportiva, sem nenhum excesso de gordura seja na face ou no restante do corpo. O cabelo grisalho era aquele que tanto furor causava aos que o caricaturavam ou o descreviam – uma mecha em forma de topete renitente insistindo em apontar para o alto – o traço característico de um homem de 79 anos, que aparentava uma disposição invejável para alguém em sua idade.

“Itamar, por favor, Itamar…” – corrigiu-me, impondo desde aquele momento um tratamento que muitas vezes deixava-me pouco à vontade. Mas esse era o seu estilo, não só comigo, logo percebi, mas com todos que dele se aproximavam para dois dedos de prosa ou para longas entrevistas ou tomadas de depoimentos cercadas de formalidades.

Nos intervalos dos frequentes compromissos que o afastavam de Juiz de Fora, ocorriam as sessões de entrevistas, com durações que variavam de duas até cinco horas. Era quando, olhos nos olhos, tive o privilégio de conhecer o protagonista de um capítulo extraordinário da História do Brasil e, extrair-lhe, nos momentos mais excitantes, confidências pessoais inéditas. A algumas delas se seguiram recomendações para deixá-las de lado, não as registrar nas páginas que se seguem, por receio de trazer à tona episódios que pudessem constranger personagens ou despertar ressentimentos adormecidos. Respeitei-as, por entender que as confissões lhe escapavam como se estivesse em uma sessão de análise – quem diria, logo eu, servindo de psicanalista a quem foi classificado pela revista semanal britânica The Economist (1,5 milhão de exemplares) como “o maquinista que colocou o Brasil nos trilhos.”

Grandeza moral

E assim se passaram dois anos, desde que mergulhei de corpo e alma no enredo em que se conta a vida de Itamar Franco, cujo início tem algo de épico/cinematográfico, e cujo epílogo, insisto com pesar, não constava do roteiro original. A este se seguiram depoimentos recheados de todas as adjetivações possíveis de exaltação, estampados na cobertura da imprensa sobre o acontecimento, que reduzem o tal “mercurial” à sua dimensão e função exatas, que é o de medir a temperatura ambiente ou febril de um corpo – e jamais a de dimensionar o caráter do homem da grandeza ética e moral, perspicácia política e competência administrativa, movida sobretudo pela preocupação social, chamado Itamar Augusto Cautiero Franco.

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[Ivanir Yazbeck é jornalista]