Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O fim de uma escola de talentos

Se alguma esperança ainda tinha a classe intelectual mexicana – os escritores, sobretudo – de que o governo desse ou venha dar-lhe mais atenção e mostrar-lhe mais respeito, neste último fim de semana convenceu-se de que o descaso e a indiferença continuarão regendo as posturas e pautas oficiais: na quinta-feira (1º/9), quando o presidente Vicente Fox apresentava ao Congresso o quinto balanço de sua administração, o tradicional ‘El Informe’, não se ouviu nem uma mísera linha sobre os problemas e carências que afetam a arte e a cultura nacionais. E, bem mais triste, as edições de sábado e domingo dos grandes jornais mexicanos anunciavam, com destaque, o encerramento das atividades de uma das mais prestigiosas instituições do país, o Centro Mexicano de Escritores, oficina literária que nos últimos 50 anos formou três gerações de grandes criadores, como os narradores Juan Rulfo, Carlos Fuentes e Juan José Arreola, o crítico Emmanuel Carballo, o ensaísta Carlos Monsiváis, os poetas José Emilio Pacheco e Jaime Sabines, entre muitos outros.

De fato, o Centro, que nunca teve uma sede própria, cruelmente desamparado pelas autoridades, fechou as portas por falta de recursos e por se ver obrigado a entregar a sede atual – uma pequena casa no bairro Villa de Cortés, lado sul da cidade – ao Ministério da Saúde, que a havia cedido em comodato vinte anos atrás.

Há tempos vinham minguando a verba dada pela Secretaria de Educação Pública, reduzida a 37 mil dólares anuais, e as doações de particulares, alguns deles ex-alunos do Centro. Só as bolsas de estudo concedidas aos cinco ou seis escritores aspirantes, 600 dólares mensais, consumiam quase todo o orçamento. O conselho-diretor do Centro tentou, no maior sufoco, conseguir mais recursos, mas a Secretaria de Educação Pública recusou-se a aumentar sua verba, o que teria permitido a entidade seguir em frente.

Ao atender os repórteres que correram para obter mais informações sobre a situação, a administradora do Centro, Martha Domínguez Cuevas, há 45 anos trabalhando ali, confirmou, com um ar resignado, o fechamento definitivo: ‘Sim, não acredito que apareça alguém e diga ‘aqui estão 100 mil dólares, ponham tudo num fundo, e continuem entregando bolsas de estudo.’ Isso seria maravilhoso’.

Históricas tardes de leitura

Seja como for, maravilhosos, em termos de criatividade literária, foram os anos em que o Centro, fundado em 1951 por uma escritora americana, Margareth Shedd, sem fins lucrativos, funcionou em toda sua plenitude tanto para escritores mexicanos como para estrangeiros. Sempre porém com um perfil baixo, pois aquele era um lugar, dizia Juan Rulfo, para aprender a escrever a sério, não para badalações mundanas.

Assim se manteve o Centro, em seus primeiros 30 anos, em outros três sobradinhos no bairro Del Valle, também no sul da capital. Os jovens aspirantes a escritores, peneirados por meio de um projeto de obra e depois contemplados com uma bolsa de estudos que lhes permitia viver modestamente durante um ano, em seguida se dedicavam ao seu objetivo: escrever um romance, contos ou poesia, em casa ou nas modestas pensões em que moravam, pois muitos vinham do interior com a cabeça cheia de sonhos de fama e fortuna.

Nas tardes de segunda-feira, ansiosos e inseguros, iam ao Centro e liam o material para os colegas e professores e, num clima descontraído, o grupo fazia suas críticas e comentários. Munidos das observações e conselhos colhidos nessa leitura e debates, os autores em formação afinavam e até mesmo reescreviam seus textos, que deviam ser finalizados no prazo de doze meses.

Várias dessas tardes de leitura e incansável aprimoramento de forma e fundo acabaram virando clássicos da literatura mexicana moderna, como foi o caso dos dois livros de Rulfo, Pedro Páramo e El llano en llamas, e La región más transparente, de Carlos Fuentes, além de muitas outras obras importantes mas menos conhecidas em nível internacional. Mais tarde, nos anos 1960, o próprio Juan Rulfo se converteria num dos tutores da casa, corrigindo e polindo os escritos incipientes, aqui e ali com achados prometedores, perpetrados pelos jovens escritores. Cigarrinho no canto dos lábios, retraído, de pouca conversa e já respeitado como grande escritor, Rulfo impressionava a moçada com suas críticas às vezes ásperas, mas sempre certeiras. Afinal, era a glória ser canetado por ‘el maestro’ Rulfo, por mais acachapante que fossem os estragos!

Arquivo de três gerações

Na verdade, o declínio gradual do Centro Mexicano de Escritores vinha de longe, desde os anos 1980, quando morreu um de seus pilares, Felipe García Beraza, mistura de intelectual e administrador cultural, que dedicou todas suas energias ao bom andamento da instituição. E, no final da década, surgiriam patrocínios mais gordos concedidos pelo governo a escritores e artistas.

Nos últimos tempos, enquanto um jovem ligado ao Centro ganhava 600 dólares por mês durante um ano, outro, obviamente já de comprovada experiência e melhor conhecedor dos atalhos do poder cultural, conseguia apoio mais generoso na base de 2 mil dólares mensais durante três anos para escrever um livro. O Centro Mexicano de Escritores ficou velho, pobre e sem prestígio de passarela, na percepção das novas gerações de escritores, que, além da grana, sabem que hoje precisam nutrir-se das luzes do show business do mercado editorial.

Essa decadência do Centro acentuou-se ainda mais no governo do presidente Vicente Fox, pouco ou nada interessado – além do estritamente necessário, e olhe lá – em aspectos culturais ou artísticos, sem falar de livros e escritores. Sua ministra da Cultura, Sari Bermúdez, trabalha sob permanente fogo cerrado de intelectuais mais críticos do sistema, principalmente o escritor e jornalista Humberto Musacchio, do jornal Reforma, que, tenaz, a acusa de despreparada para o cargo, de fazer uma gestão de brilharecos, inócua e improdutiva, além passar boa parte do tempo rodando o mundo em viagens desnecessárias. Ela nem se digna a responder.

Agora, do Centro Mexicano de Escritores só restam as lembranças dos tempos de glória literária e um arquivo precioso que contém todos os projetos e os textos finais dos livros escritos sob a orientação e incentivo da entidade em seus 50 anos de existência.

Diz a administradora Martha Domínguez Cuevas: ‘Esse arquivo, montado com material dos 500 escritores que passaram por aqui, rigorosamente atualizado, é a história da literatura mexicana, de A a Z, do último meio século’. O arquivo, felizmente, independente da mediocridade e prepotência de burocratas e tecnocratas, logo terá um lugar de honra na Biblioteca Nacional, ao lado de outros do gênero.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México