Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Gênesis de Robert Crumb

O Estado de S.Paulo deu um bom presente a seus leitores no último fim de semana no suplemento ‘Cultura’. Livro do Gênesis, de Robert Crumb, foi resenhado por ninguém menos do que Harold Bloom, o famoso crítico literário nova-iorquino, mais conhecido no Brasil pelo pau que deu na escritora inglesa J. K. Rowling e em seu bestseller Harry Potter. Bloom vinha de uma outra polêmica: seu Cânone das obras literárias ignorou textos fundadores ou referenciais das diversas literaturas, tornando indevidamente hegemônica a de língua inglesa.


O artista e ilustrador americano Robert Crumb, de 66 anos, mora na França, juntamente com a esposa e a filha, ambas cartunistas como ele. A empresa de consultoria global Synectics fez uma lista de 100 gênios vivos, em 2007, e nela ele está em 20º lugar.


Crumb é conhecido dos brasileiros desde as décadas de 1970 e 80, quando publicava nas revistas Grilo, Circo e Porrada. Atualmente, suas ilustrações podem ser vistas também na revista piauí. Um de seus personagens mais conhecidos é o gato Fritz, preguiçoso, lascivo e usuário de drogas. Crumb é um sucesso, mas começou como ambulante, vendendo seus quadrinhos, em companhia da mulher grávida, pelas ruas de São Francisco, na Califórnia.


Outras singularidades


O mérito do jornal é trazer de New York Review of Books o longo artigo, com tradução de Celso Mauro Paciornik, ofertando a milhares de leitores de sua edição dominical a inteligência luminosa de Bloom com amostras das ‘feias’ personagens bíblicas, enredadas nas vertiginosas tramas de um deus que é, no mínimo, o maior legislador de todos os tempos e o poderoso mais sanguinário e genocida, cuja violência é incomparavelmente superior à de cruéis imperadores romanos, que crucificavam vencidos até para enfeitar caminhos por onde seus maiorais desfilariam tripudiando sobre os vencidos.


Aliás, os romanos até criaram modelos. Solano López tinha plano de vencer Dom Pedro II na Guerra do Paraguai e desfilar com o imperador do Brasil dentro de uma gaiola pelas ruas de Asunción. Foi assim que Júlio César fez com Orgetorix. Se não encontrasse soldados guiados por comandantes como o Duque de Caxias, o general Osório, os almirantes Barroso e Tamandaré, e gente menos conhecida como Carlos de Morais Camisão na sua heróica Retirada da Laguna, talvez tivesse conseguido.


Javé ganha de todos os poderosos de todos os tempos que exageraram na punição aos vencidos. É verdade que Hitler e Stálin são mais citados como genocidas, e Truman e Churchill aparecem como heróis, mas o americano despejou bombas atômicas sobre o Japão e o inglês bombardeou Dresden, os dois matando milhares de civis que não os enfrentavam e entre os quais havia muitos deles torcendo para que os aliados vencessem a loucura daqueles que os governavam e enfim os libertassem.


Antecipando-se a todos eles, Javé destruiu Sodoma e Gomorra arrasando toda espécie de vida, não apenas a humana, e fez chover quarenta dias e quarenta noites, submergindo a terra inteira no dilúvio, do qual salvou apenas Noé, sua família e casais de todas as espécie que havia sobre a terra.


Javé tem, porém, muitas singularidades. Não disfarça, não diz que não viu, não se preocupa com sua imagem, não se esconde atrás de assessores. Promete e cumpre.


Sem novidade


Bloom diz que ‘as caricaturas de Crumb têm o mérito inicial da estranheza na maneira de retratar os patriarcas e matriarcas do primeiro livro da Bíblia Hebraica‘, acrescentando que ‘as pessoas do Gênesis são de fato pitorescas, mas extremamente feias na visão de Crumb’.


A Bíblia reúne todos os enredos possíveis, como disse Jorge Luís Borges, e tem inspirado muitos escritores ao longo da História, ainda que seja um texto fora do padrão histórico, constituindo-se de narrativas míticas ou lendárias. Naturalmente, sua referência solar é a de texto religioso, mas não se pode desprezar o seu valor literário. Alguns nomes são emblemáticos: Dante, com A Divina Comédia; Thomas Mann, com José e seus irmãos, e mais recentemente o Prêmio Nobel José Saramago com Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim exemplificam os pontos altos do aproveitamento de temas, personagens e tramas.


O caso de Crumb, porém, é outro. É um cartunista que lê e, ao fazê-lo, constrói a sua leitura. É esta, aliás, a moderna concepção de leitor. Os leitores não são sujeitos passivos, enganados por este ou aquele escritor. Ao lerem, criam a sua própria história, concebem com a mais cabal das liberdades a sua liberdade de ver, de sentir, de perceber e principalmente de interpretar o que leem à luz de suas experiências.


Crumb corre o grande risco de não apresentar novidade alguma, tal como os roteiristas de filmes que se apoiaram em narrativas bíblias: Os Dez Mandamentos, Sansão e Dalila, Jesus de Nazaré e tantos outros são filmes cujo desfecho todos conhecem. Aliás, conhecem também as aberturas e as tramas intermediárias.


Então, por que despertam tanto interesse? Entre outras razões, porque todos nós queremos saber como é que os outros viram o que nós já vimos. Como é que leem o que nós já lemos.


Quantas divisões?


Diz muito bem Bloom: ‘As histórias são familiares: Adão, Eva e a Serpente; Caim e Abel; Noé e o Dilúvio; a Torre de Babel; Abraão e Sara; a luta de toda uma noite de Jacó com um dos Elohim; e, por fim, a grande saga de José e seus irmãos’.


Jacó e seu filho José, vendido pelos próprios irmãos, ocupa metade do Gênesis, escrito originalmente em hebraico, mas chega às primeiras línguas de cultura do Ocidente, o grego e o latim, tomando como título a primeira palavra hebraica que abre essas narrativas. Assim, a tradução de Bereshit, ‘no princípio’, transformou-se em título em todas as línguas.


Bloom não poupa elogios a Crumb: ‘Ele não se prende a religiosidades rançosas’. Diz mais: ‘A insanidade moral de fazer da justiça divina uma desculpa para o sofrimento humano é estranha a Crumb’.


Por fim, registre-se como indispensável que o Gênesis e de resto toda a Bíblia não podem ser lidos apenas como livros literários, míticos ou lendários. Eles servem de apoio e estruturam a existência de bilhões de pessoas em todo o mundo, que fazem por merecer o respeito às suas crenças, sem contar que o deus conhecido como Javé no Gênesis atende também por outros nomes – Alá, God, Dieu, Dio, Diós, Deus etc – e está presente, desde a exclamação em God save the king até preâmbulos de constituições de modernas democracias. E ainda como referência solar de cristãos do mundo inteiro, um bilhão dos quais sob as ordens do papa Bento 16, católicos que são.


Os leitores não podem, como Stálin, que perguntou durante a Segunda Guerra Mundial quantas divisões tinha o papa, desrespeitar os que creem, pois as religiões têm tal influência no mundo que moldaram os modos de viver de bilhões de pessoas, sejam elas cristãos, muçulmanos, budistas, judeus etc. Não está entre os direitos do intelectual tripudiar sobre a fé dos que crêem, mas, sim, respeitá-la como um bem que a cultura preservou.


O ofício do intelectual é leigo, mas isso não pode ser escudo para ser antirreligioso.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)