Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Globo

TELEVISÃO
Catarina Maria de Lima Cunha

‘Contos do Rio’: Cida e a televisão

‘Abrir um crediário é negócio complicado. Só por necessidade. A televisão, de imagem preta tremida e branca fora-de-foco, foi sendo invadida por um exército de fantasmas cinzas e, assim, se anunciava o fim. Assistir novela das oito com fantasma é uma coisa mais os jogos da Copa é tortura! Já pensou ver os canarinhos cinzas levantarem a taça preta? Uma TV nova seria um sonho, sonho que virou aflição quando, em plena final da Taça Guanabara, o Fogão ganhando de virada, a desgraçada vai fechando os olhinhos até ficar apenas uma linha triste de luz, último suspiro. Morreu de vez. Foi coisa de urgência abrir o crediário complicado. Sorte a patroa ser gente boa na hora da ‘precisão’. Botou o nome lá mas exigiu que fosse coisa séria, tinha que pagar o carnê no dia certo, e apresentar o comprovante à chefia. Se não, não tinha pagamento não. Estava certa ela, disse que tinha um nome a zelar. Eu estranhei, mas gente de posse tem até nome. Eu, tenho uma TV a zelar. Patroa boa ela. Ficava meio tumultuado, mas eu, ‘euzinha’, paguei toda a televisão. Graças à Santa da minha patroa, a negada lá da comunidade ia ver a Copa do Mundo em cores e bem grande, como no cinema.

Quando a Televisão completou três meses de aniversário, o canal bom das novelas, o que a gente mais vê nos domingos de jogos no Maracanã, foi ficando pálido, o som mirradinho, soltou um gritinho fino e apagou; em seguida, os outros canais também se calaram. Chamei o meu cunhado, rapaz jeitoso, pra ele dar uma olhada na antena da lage. Nada. Chamei a benzedeira, vai que é urucubaca? Nada. A patroa, deusa na terra, me vendo meio ‘borocoxô’ perguntou e eu falei: ‘Ela morreu, a TV!’ A patroa, sábia, contou da garantia, eu não tinha que pagar nada, era só chamar os técnicos.

O homem veio, de uniforme azul, distinto, barbeado. Chegou com um papel grande, com meu nome em cima, com letras importantes. Tive que assinar, afinal era o meu nome e minha televisão. Mexe daqui, mexe dali. Tirou um monte de coisa e olhou, olhou, mexeu, mexeu, e eu ali, com pena da ‘bixinha’, toda depenada na frente de gente estranha. Fiquei mais aliviada quando ele botou a tampa e apertou o botão: Linda, cheia de vida e luz.

Para comemorar o feito rolou uma feijoada na grande estréia do Brasil na Copa. A abertura tinha um gostinho doce de festa e logo contra aqueles gigantes vermelhos! O vizinho entrou com o torresmo, a terceira filha, ajuizada, com o arroz. O feijão, meu nego não deixa ninguém comprar no lugar dele, tem ciência. A couve, a patroa, alma imaculada, deixou incluir na feira. As carnes, a gente pega com seu Zé do Açougue que sempre vai nas nossas festas, enche os cornos e não paga nada. A cachaça e a cerveja nem precisa encomendar, alguém sempre leva.

A lage estava quente com o pagode rolando, quando, chegada a hora de assistir a transmissão ao vivo, o caçula, menino ranhento, vindo fora do tempo, sem compostura, gritou: Cadê a Televisão? Sumiu, desapareceu no meio do festeio. Foi-se. Mas como se só tem gente da comunidade aqui? Procura daqui, procura dali, nada. O pagode parou e, todo mundo foi saindo de fininho procurar onde assistir ao evento. Sobrou até feijão. Depois, o vazio encardido da parede da sala, o fio da extensão balançava sem nada a dizer. Depois da louça lavada, cacos e convidados varridos, ficou o vazio cansado. A Patroa, um amor de pessoa, não entende nada de televisão que some na comunidade: Falou de Polícia, Fada, Papai Noel, Justiça e Coragem. Vindo dela a gente entende. Falando daqui e dali, fiquei sabendo que a minha televisão, por necessidade, poderia estar lá em cima, no alto do morro, entretendo os falcões que não podiam abandonar o microondas ligado e eles tinham ordem de sair só quando o serviço estivesse terminado. Coisa de emergência, ficar sem ver o jogo, nem pensar.

Não vou admitir esse tipo de indecência com a minha televisão de crediário pago com o suor do meu rosto. É verdade. Vou tomar satisfação com a autoridade da área: um menino forte, bonito, mas que precisa ter ciência de que mãe da comunidade merece respeito. Onde já se viu tomar televisão de gente do bem na hora do jogo da seleção? Só dando uns sopapos nele pra ver se entra no prumo. O moleque mandou eu ir ‘prá’ casa descansar mas como eu não me aquietei, ele chamou os ‘meganhas’ dele ‘prá’ me calar.

– Descansar é o ‘caramba’, eu quero a minha televisão! – Falei para a Patroa, linda, que o negócio estava difícil, sofri ameaça, saiu até no jornal que eu era meio doida querendo bater em meio mundo por causa de uma televisão que não se sabia nem se existia. Ela, mulher única, pensou, pensou, e achou melhor eu não trabalhar mais na casa dela, afinal, era perigoso, alguém poderia me achar lá e… Pah! Ela sempre pensou em mim, boa patroa. Ela me pagou todos os dias em que eu trabalhei e eu pensei, como eu tenho sorte. Tudo bem, eu não tenho trabalho mas tenho uma televisão. Não está aqui, mas é minha.

O meu caçula, o ranhento e feioso, me fez uma surpresa de encher os olhos: Apareceu no barraco com uma caixa tão grande que só dava para ver os cambitos dele por baixo. Disse que era presente. Abri a caixa e lá estava a televisão mais bonita do mundo, enorme, prateada, 29 polegadas, som estéreo e com um controle remoto cheio de botão. É verdade que ninguém, nem minha vó ‘gagá’, esperava nada daquele estrupício. Deus é pai e a ex-patroa é Santa. O meu caçula, feito numa noite úmida, bêbada, trouxe, como um príncipe encantado, a Copa do Mundo dos meus sonhos. Ele subiu na vida, agora é trabalhador. Tem ofício. No microondas, lá em cima. E nada nos faltará.’



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