Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O homem e o artista

Pelos olhos de tia Thereza, incansável em sua luta para manter viva a alma do artista, e de meu pai, Josaphat, cujo belo traço foi travado pela genialidade do ‘rival’, passei a admirar ‘As garotas’, publicadas semanalmente na revista O Cruzeiro. Irmãos de tio Alceu, a quem, generosamente, Gonçalo Junior chama neste livro de ‘o inventor da garota carioca’, os dois não precisaram de muito esforço para me fazer entender a influência que ‘As garotas’ exerceram, diretamente, em duas gerações de adolescentes do país – e até hoje, pois seus desenhos têm uma atualidade que o tempo não ousou perturbar.

‘As garotas’ tinham e têm yumph, o que lá pelos anos de 1940 significava charme. Traços finos, cores fortes e vibrantes, os desenhos de Alceu tinham o dom de viver. E eu, secretamente, guardava, com orgulho, algumas cópias das ‘minhas’ garotas. Até que um dia, Patrícia Ordones, companheira de muitos anos e, na época, estudante de arquitetura, achou meu ‘tesouro’. Foi direta: ‘Isso é genial’. Minha resposta foi curta, embora o coração estivesse a mil: ‘São desenhos de meu tio, Alceu’. ‘Gostaria de ter conhecido um mestre como ele, que, mesmo com as raízes fincadas no sertão mineiro, conseguiu adquirir, no Rio, a capacidade de captar o mundo!’, disse ela.

Um Brasil melhor

A verdade é que eu também gostaria de ter convivido mais com meu tio. Do artista, autor também de valioso trabalho desenvolvido para a Rhodia nas Fenits, eu conheço muito bem. Do tio, o tempo não foi o bastante – a gente quer sempre mais quando se tem pela frente uma pessoa que, embora genial, sempre conservou o maior bem que o homem pode ter, a dignidade. A fama pouco o afetou. Mesmo trabalhando ao lado de Millôr Fernandes, Carmem Miranda, Ziraldo, Cyro del Nero, Nelson Rodrigues, Bibi Ferreira e Acciolly Neto, continuou sendo o menino bonito, tímido, simples, afetuoso e generoso que deixou Curvelo em busca de um sonho.

O mundo esteve ao alcance de suas incríveis mãos – Walt Disney o convidou para trabalhar nos EUA, mas ele não quis ser apenas mais um naquele imenso estúdio. Talvez, também, em função do sangue mineiro e da teimosia em ficar perto dos outros irmãos, Maria Carmem, Christiano, Evaristo, Miloca, Adauto, Aloysio, Neide e Cláudio. E dos incontáveis sobrinhos, que ganhavam presentes após cada viagem que fazia ao exterior, onde acompanhava os rumos da moda e fazia amigos como Pierre Cardin, Balmain, Saint-Laurent, Christian Dior e Oscar de la Renta.

Todos nós curtíamos suas ilustrações para discos e livros, calendários, desenhos de propaganda, fantasias, cenografias, enfim, a sua luta para criar moda brasileira. Após o fim de O Cruzeiro e de sua morte, meu tio e suas garotas foram, gradativamente, sendo levados pelo tempo, como é de praxe no Brasil. Injustiça? Não serei juiz desta questão. Uma certeza, porém, tenho: o brasileiro paga muito caro pela falta de memória. Outra certeza: o justo resgate do homem e do artista Alceu de Paula Penna será, sem dúvida, como puxar pela linha um Brasil mais gostoso, criativo, sonhador, ético e honesto.