Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O homem que enfrentou o governador do Tocantins

Atrás das grades de uma cela, com uma máquina de datilografia e um violão, o jornalista Rinaldo Campos começou a escrever um livro que seria sua epopéia – a história do político José Wilson Siqueira Campos, ex-governador do Tocantins. Misto de biografia e dossiê político, O ditador do Cerrado se divide em duas partes: a primeira, valendo-se da ficção, tenta traçar as origens do homem que nasceu no sertão nordestino; a segunda, calcada em documentos, procura devassar os alicerces do mito que se julga ‘criador’ do Tocantins.

Segundo o autor, foi o próprio anúncio antecipado do livro, já com o título O ditador do Cerrado, que motivou sua prisão por 35 dias, em janeiro e início de fevereiro de 1993. Posteriormente, depois de impresso, o livro teria quatro edições apreendidas, todas elas ilegalmente, a mando do ex-governador que, segundo o jornalista, mesmo fora do poder controlava as instituições no Tocantins. E ia além, chegando a determinar o recolhimento dos exemplares do livro mesmo no interior do Rio Grande do Sul e em Brasília, às barbas das autoridades federais.

Uma história digna de Kakfa e de Cervantes. Com estilo ágil, sem ser telegráfico, e buscando a objetividade sem perder de vista a sutileza psicológica dos ‘personagens’, Rinaldo Campos procura mostrar o caráter incipiente das instituições no Tocantins. Em visita ao Jornal Opção, na quinta-feira 6, ele trouxe um dos poucos exemplares que restam do livro e conversou sobre sua saga pessoal que, num dado momento, foi coletiva, envolvendo várias instituições que defendem a liberdade de imprensa e os direitos humanos. ‘Apesar de viver no Tocantins, muitos tocantinenses acham que fui morto’, observa. E, irônico, acrescenta: ‘De tanto combater o mito Siqueira Campos, acabei virando uma espécie de mito também’.

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Faça uma minibiografia sua.

Rinaldo Campos – Meu nome é Rinaldo Campos de Oliveira. Nasci em Recife e, com 1 ano de idade, fui com a família para São Paulo, de navio. Tenho 54 anos e posso dizer que estou na profissão desde menino. Aos 7 anos, já colaborava com um jornal de Londrina. Achava fascinante a vida de jornalista: podia andar meio desalinhado e beber durante a madrugada. Militei no movimento estudantil, entre 66 e 68, e tive que passar um tempo fora do Brasil, em Angola, Moçambique e Estados Unidos. Voltei em 1978 e cursei Jornalismo na PUC de São Paulo. Sempre me posicionei, enquanto jornalista, distante de qualquer poder. Comecei no jornal Opinião e no jornal O Repórter, em São Paulo, na fase daqueles atentados contra as bancas de revistas. E sempre tive jornais. Meus jornais duram três, quatro edições, então o pau come e eles vão à falência. Sem se alinhar ao poder, não há possibilidade de sobrevivência. Em 1979, trabalhava no Diário do Povo, em Campinas, do governador Orestes Quércia, e fui correspondente da revista Veja. Por ter denunciado Quércia em seu próprio jornal, fui demitido e decidi ir para o Tocantins. Fui o único representante que a Veja teve no estado em todos esses tempos.

Quando chegou ao Tocantins?

R. C. – Cheguei em 1991. Siqueira Campos tinha sido alijado do poder e Moisés Avelino estava tomando posse no governo do estado. Dias depois, eu estava trabalhando no jornal O Pioneiro, do Siqueira Campos, em que pese o nome dele não aparecer no expediente. Seis meses depois, por falta de pagamento, briguei e saí do jornal. Passados uns três meses, Siqueira Campos me chama em Brasília e me diz: ‘Tenho um canal de televisão, um jornal parado, uma rádio, todo um sistema de comunicação. Pega e faz o que você quiser com ele’. Quando menos eu esperava, tinha nas mãos um sistema de comunicação de um ex-governador, extremamente rancoroso, querendo vingança por ter sido derrotado. Ele não se conformava de ter sido alijado do poder pelo povo. Então, comecei a trabalhar para o empresário Siqueira Campos, que não aparecia no jogo. E fazia oposição ao governo Moisés Avelino. Foi um massacre total. E num estado que tinha uma imprensa composta por garotinhos inexperientes. Eu não era o único jornalista formado, mas era o mais experiente. Comandava aquilo com muita habilidade e muito recurso.

Quanto tempo durou sua atuação?

R. C. – Até o filho dele, Eduardo Siqueira Campos, ser eleito prefeito de Palmas, em 1992. Siqueira Campos me chamou e disse: ‘Acabou o jogo. Daqui a dois anos, vou ser governador novamente. Você pode parar de fazer seu jornalismo e vai ser secretário de Comunicação. No ano que vem, será candidato a deputado federal e está eleito’. Parecia uma proposta irrecusável, mas o que ele queria era o meu silêncio, porque o filho dele era prefeito. Não aceitei a proposta e disse que queria fazer o acerto de contas. Briguei, fiz greve de fome e consegui receber o acerto trabalhista. Eu teria que sair do Tocantins, porque não conseguia trabalhar mais lá. Era tudo deles. Mas disse comigo mesmo: ‘Vou deixar um presente. Tenho que contar essa história’. Foi aí que surgiu a idéia do livro.

Como era a relação do governador Moisés Avelino com a imprensa?

R. C. – Ele nunca deu a menor atenção à imprensa. Se a gente chegava até ele com um documento provando que um secretário dele tinha roubado, ele se limitava a dizer: ‘Você é jornalista, faça o seu papel. Isso é problema do secretário. Se você tiver alguma coisa contra mim, eu respondo. Se eu não gostei, processo você’. Nunca impunha regra nenhuma. A gente podia falar o que quisesse do seu governo que ele não reagia nem autorizava uma reação. Politicamente, foi trágico, porque nunca mais se elegeu.

Como era Siqueira Campos como patrão de jornalista? Ele exigia uma linha editorial?

R. C. – Ele não exigia uma linha – ele era a linha, era o senhor, Mas tinha um problema sério comigo – eu não consigo ser obediente. Mas o jornal do Siqueira, a Folha do Tocantins, funcionava assim: depois de concluída, a edição era levada para a casa dele, ele lia e autorizava ou não a publicação. Como eu não admitia censura, ele tinha uma coluna para dizer o que quisesse, assinada como ‘Dr. Pedro’. Era um personagem que ele criou para dizer tudo o que queria. O Siqueira é um homem esquisito: dorme duas horas apenas, toma 12 banhos por dia, só toma suco de caju e suco de laranja. O caju pelo Tocantins e a laranja pelo Brasil. Tem uma plantação de coco e disse que só iria tomar água de coco do próprio coqueiral.

O Siqueira lê tudo o que se produz no estado. E o que é pior: escreve tudo que se produz no Tocantins. Ele se sentava à mesa e escrevia o discurso dos 20 deputados de sua base, ainda por cima na linguagem do próprio deputado. Ficava 20 horas na máquina. Incorporava a linguagem do Osvaldo Mota, que era um militar; a do Antônio Jorge, que era um motorista, e assim por diante. No outro dia, os deputados levavam para a tribuna 20 discursos na íntegra, escritos por ele. Era impressionante. Só liam o que o governador mandava. Eles não tinham autoridade para dar um palpite. Quando se sentavam à mesa com ele, eram tratados assim: ‘Seus vagabundos, seus sem-vergonha, vocês não são homens’. Ele era muito bruto com os outros, mas me tratava de modo diferente: ‘Rinaldo, esse povo do Norte tem de ser tratado na chibata, porque não tem personalidade. Você é diferente, veio do Sul’. E dizia que eu iria escrever a sua biografia.

É verdade que ele chegava a queimar uma edição, quando reprovava seu conteúdo?

R. C. – Ele tinha vigilantes dentro do jornal. A ditadura militar punha dois. Ele punha todos. Mas comigo não funciona muito, porque sou um ditador ao contrário. Eu trabalhava até 2 horas da manhã e 6 horas da manhã já estava de volta. Eram 20 horas de desespero. Numa dessas madrugadas, o Luiz Pires, um colaborador, para bajular o Siqueira, chamou de ‘corrutela’ a cidade de Paraíso, terra do governador Moisés Avelino, adversário do Siqueira. O jornal tinha 30 mil exemplares, era uma edição especial. Por causa do termo ‘corrutela’, que ofendia os moradores da cidade, Siqueira Campos determinou o recolhimento de todos os exemplares. Em cidades como Araguaína, o carro com os jornais já havia chegado, mas teve que voltar. Essa página foi refeita em todos os exemplares da edição.

Como foi a relação de Siqueira Campos com o jornalista Fernando Martins? É verdade que ele o agrediu? Ele agredia jornalistas?

R. C. – Sei de um incidente com uma jornalista. Siqueira tinha sido eleito governador. Ela fez uma pergunta que o desagradou. Então, ele desceu do palanque, tirou o microfone da mão dela e bateu na cara da moça. No caso do Fernando Martins, ele foi para o Tocantins assumir o jornal, assim que briguei com o Siqueira. E chegou dizendo: ‘O jornal agora é meu, vou modernizar tudo’. Levou uns 30 computadores daqui de Goiânia. Faltava cerca de um mês para a eleição. Veio a eleição e, cinco dias depois, Siqueira Campos chegou no jornal e disse: ‘A chave. Para fora. Está fechado o jornal’. Ele levou o Fernando Martins apenas para salvar a tragédia, porque era véspera de eleição. O Fernando Martins tinha investido tudo o que possuía, estava hospedado no melhor hotel da cidade. Então, ele entrou no jornal, levou um caminhão, encheu de chapas, bobinas de papel, tudo o que sobrou e veio chorando para Goiânia. Chegou aqui, vendeu tudo. Foi o que o salvou.

Em que, exatamente, começou a sua divergência com Siqueira Campos?

R. C. – A rigor, nunca houve convergência. Eu estava desempregado, com um filho para criar e um ex-governador que acabou de deixar o poder me oferece trabalho. Havia jornalismo para fazer. No momento em que o filho dele ganhou a Prefeitura de Palmas é que surgiu o desentendimento. Ele me propôs a candidatura a deputado federal. Mas o grupo dele é de extrema-direita. Eu, até o ano passado, era do PT. Éramos um radical de direita e um radical de esquerda. Não houve nenhuma questão pessoal. Aliás, eu o achava uma figura fantasticamente imbecil, mas não mais nem menos que os outros ditadores. Ele sempre dizia que eu escreveria a biografia dele porque tínhamos as mesmas origens, no Nordeste, além de termos um sobrenome comum. Nunca vi nada de interessante nessa suposta ligação, mas procurava tratá-lo com respeito, com a dignidade que um senhor mais velho exige. Ele era uma figura que lembrava o meu pai, um autoritário direitista, único membro da minha família que votava em Collor e achava que os militares deveriam permanecer no poder. Eu mais via meu pai maluco em Siqueira Campos do que um estranho. Não tinha aversão por ele.

Ele pagou seu acerto direitinho?

R. C. – O meu acerto deu 130 mil dólares, cerca de 250 mil reais. Ele disse que não tinha esse dinheiro e queria pagar em terrenos. Não aceitei, porque queria sair do Tocantins. Fiz greve de fome e acabei recebendo em dólar. Assim que recebi o dinheiro, o coronel Napoleão, braço-de-ferro dele, me perguntou o que eu faria do dinheiro. Eu disse que iria fazer uma homenagem ao nosso velho guerreiro, escrevendo um livro sobre o Siqueira. Quando ele perguntou como seria o livro, respondi: ‘O ditador do Cerrado’. Falei brincando. Três dias depois, uns carros entram na minha chácara. Em um deles, estava o Siqueira Campos. Ele disse: ‘Você não vai escrever esse livro. Meus inimigos vão tripudiar sobre o meu nome’. Perguntei: ‘Você vai me matar?’ Ele disse: ‘Um homem como você não se mata. Mas você não vai publicar esse livro’. Três dias depois, fui preso. E comecei a escrever o livro na cadeia. Exigi cela especial, por ter curso superior, e pedi a minha máquina de datilografia e o meu violão. Era difícil escrever. Apesar do meu humor, eu estava preso de verdade. O Diário da Manhã me mandava marmitex todo dia, em troca de exclusividade. Fiquei preso durante 35 dias, no recesso de janeiro, exatamente no período em que a juíza-titular tirou férias. Quando ela voltou, saí da cadeia. Fui para a minha chácara e comecei a escrever o livro para valer.

Como conseguiu publicá-lo?

R. C. – Tenho uma propriedade em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Resolvi imprimir o livro lá, numa gráfica dos padres palotinos. Fiz a primeira edição do livro. Foram 5 mil exemplares. O convite era uma réplica da capa do livro, personalizada, assinada por mim, com uma caneta preta. Foi um sucesso absoluto. No dia do lançamento, a cidade inteira estava lá para comprar o livro. O lançamento era às 8 da noite. Às 6 da tarde, fui tomar banho e, depois, jantar com dois senadores. Quando faltavam 15 para as 8, chega a polícia. Apreende as obras e me prende. Voltei ao Rio Grande do Sul e fiz a segunda edição. A polícia do Tocantins foi ao Rio Grande do Sul, entrou na minha casa, prendeu um padre, confiscou toda a edição e tocou fogo. Então, passou a ser uma questão de honra. Voltei a Santa Maria e fiz a terceira edição. O lançamento seria no Hotel Naum, em Brasília, onde eu estava hospedado, no último andar, numa ala de proteção, onde só havia autoridade. Ao lado de Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes, o advogado José Roberto Batochio, presidente da OAB, me tranqüilizava: ‘Quero ver se a polícia do Tocantins tem coragem de invadir Brasília. Aqui é a capital da República’. Dez minutos depois, o garçom chegou com o recado: a polícia do Tocantins tinha apreendido a terceira edição do livro, em plena campanha eleitoral, dentro do Naum Plaza.

Quem era o cabeça dessas operações?

R. C. – Era o advogado Telmo Hegele. Foi ele quem moveu as ações que levaram a Justiça do Tocantins a expedir mandados de apreensão do livro. Ele também era do Rio Grande do Sul e sabia onde estava minha casa e o depósito com parte dos originais. Resolvi fazer a quarta edição e mudar de estratégia. Pus a palavra ‘censurado’ na capa do livro, peguei 600 livros e 100 dúzias de banana e fui para o Tribunal de Justiça do Tocantins. O livro estava proibido, mas a banana não estava. Então, quem comprava uma banana, ganhava um livro. Era 20 reais a banana, o preço do exemplar. Cerca de 15 minutos depois, o tribunal inteiro tinha comprado o livro. Os poucos livros que me sobraram dei aos policiais que foram me prender. Em 11 dias, tinha vendido 17.832 livros e distribuído dois, um a minha mãe e outro ao um advogado que me tirou da cadeia. Mas não tinha mais nada. Então, fazia panfletos e ficava infernizando a vida dele. Mas ele não estava preocupado. O filho tinha sido eleito novamente.

O que mais assusta Siqueira Campos no livro? Ele leu o livro?

R. C. – A ousadia do título. Até então, eles não conheciam o conteúdo do livro. Foram ler o livro depois, quando ele foi apreendido no hotel. E tenho certeza de que o próprio Siqueira leu. Ele fez questão de comprar o exemplar. Mas nem ele nem o filho nunca comentaram nada sobre o livro, que, entre outras coisas, mostra a ligação promíscua do seu governo com as empreiteiras que lotearam Palmas. E, na minha linguagem jornalística, quem rouba é ladrão. Na verdade, o Tocantins foi o resultado do processo Fernando Collor. Quem subsidiava o Tocantins era o PC Farias.

Seu livro investiga a origem de Siqueira Campos?

R. C. – Ele diz que nasceu em Cratos, no Ceará, mas nasceu no sertão de Pernambuco, na Serra de Ouricuri. E não nasceu Siqueira Campos. Esse sobrenome surge de uma família que o criou, quando ele foi registrado, já com 17 anos. Muito menos tem a ver com o tenente Siqueira Campos da Coluna Prestes. Eles não são contemporâneos. Um é do Rio Grande do Sul, enquanto o outro é do sertão de Pernambuco. A origem dele é tão complexa que, nos arquivos do palácio, naqueles anos, não constavam os documentos dele. A trajetória dele é obscura. O Siqueira Campos que se conhece hoje começa a surgir quando ele está com 37 anos. É uma história muito conturbada. Ele manipula esses elementos sobre sua origem com muita força. Fui com Leocádia Prestes visitar um memorial de Prestes, no Rio Grande do Sul, e vi uma foto dele abraçado a Prestes, porque ele diz que tinha sido seu auxiliar. As pessoas viam aquela fotografia do Siqueira Campos governador do Tocantins e achavam que fosse do tenente da Coluna Prestes. O ditador do Cerrado é dividido em duas partes, que contam a mesma história. A primeira parte do livro, protagonizada por um Severino sem nome do sertão de Pernambuco, é a história que ele me contava sobre sua infância e adolescência. Eu viajava com ele de aviãozinho todo dia, ele fora do poder, e conversávamos. Ele me falava da primeira namorada, da primeira transa. E um dia me perguntou se eu já tinha fumado maconha. Eu disse: ‘Lógico’. E ele: ‘Eu nunca’. Conto essas conversas no livro, mas de forma literária, sem deboche, sem desprezo.

O livro investiga a história da tentativa de golpe dele com o general Sílvio Frota?

R. C. – Não. Quando escrevi o livro, estava no Tocantins, sem telefone, sem poder para me proteger. Não havia Justiça. Não foi possível checar algumas questões, como a questão dos quatro mandatos dele como deputado. Há casos em que ele foi eleito em anos em que não houve eleição. E quase sempre assumiu o mandato como suplente.

O senhor foi preso. Chegou a receber ameaças de morte?

R. C. – Lá, eles não ameaçam, matam. Eu não morri, mas o Sérgio Mississipi, que trabalhava na Prefeitura de Palmas, foi morto. Ele queria publicar um livro e me perguntou se eu poderia ajudá-lo. Eu disse que não queria misturar o meu caso com o dele, mas me dispus a ajudá-lo, depois que resolvesse o meu problema. Então, ele apareceu lá em casa contando que tinham contratado um pistoleiro para matar a gente. Na verdade, ele estava vacilando, tentando negociar o que tinha. Tentaram comprar o meu material, para que eu não o publicasse, mas eu disse de modo taxativo: ‘Não vendo’. Já o Mississipi, garoto menos experiente, abriu a possibilidade de negociação. Mesmo assim, fiquei preocupado e resolvi passar férias em São Paulo. Convidei o Mississipi para ir comigo. Ele ficou de ir. Mas não apareceu. Fui embora. Quando voltei das férias, dois meses depois, ele já estava morto. Na tarde do dia em que iria se encontrar comigo, três rapazes de terno foram à casa dele. Saíram de carro e ele desapareceu. E começou a se espalhar o boato de que tinham matado um jornalista. Como fiquei dois meses fora, eu é que fui dado como morto.

Certo dia, um policial me disse: ‘Mataram o Rinaldo Campos. Achamos o corpo dele em decomposição’. Perguntei se ele tinha o corpo e me dispus a vê-lo. Ele me levou ao IML. Depois que fotografamos o corpo, revelei que eu era Rinaldo Campos e perguntei quem era aquele cadáver na mesa. O morto era o Sérgio Mississipi. E o cadáver sumiu. Três anos depois, um cidadão que eu apontei na Corregedoria como o pistoleiro que havia matado o Mississipi me procurou para uma conversa. Disse que me admirava e que jamais me mataria. Então, eu perguntei: ‘E o Mississipi?’ Ele disse: ‘Rinaldo Campos, eu estou falando de você’. Levantou-se e foi embora. Acho que uma das razões de nunca terem vindo em cima de mim é porque nunca trapaceei. Fiz um trabalho, publiquei e assumi. Além disso, não me exponho muito, não tenho hábitos noturnos. Minha família mora em Palmas. E continuo trabalhando como jornalista. Fecho dois jornais de São Paulo. E tenho alguns imóveis, que me rendem alguns aluguéis.

Além das denúncias, seu livro traz histórias curiosas sobre Siqueira Campos?

R. C. – Na última eleição dele, ele chamou o fotógrafo oficial da campanha, Benhur de Oliveira, e disse: ‘Procure o meu lado mais fotogênico’. Quando as fotos foram reveladas, ele se queixou ao fotógrafo: ‘Essa papada aqui você deveria ter evitado’. O fotógrafo respondeu: ‘Governador, não é uma questão de fotografia, mas de cirurgia plástica’. Foi demitido. Siqueira Campos era o dono do estado. Era tratado como o criador do Tocantins, com um detalhe: com letra maiúscula, como Deus. Para se ter uma idéia, o Hino Estadual do Tocantins cita Siqueira Campos. É um verdadeiro culto à personalidade. Nas escolas, havia até um material didático em que ele aparecia como um super-herói. É um mito. Tanto que muita gente pensa que eu morri. Um dia, num vôo de Brasília a Palmas, ouvi um sujeito dizer a outro que eu tinha morrido, mas, quando estive preso, ele tinha ido levar marmitex e cigarros para mim na cadeia. Ora, nunca fumei.

É verdade que os livros sobre a história do Tocantins tentam apagá-lo dela?

R. C. – Otávio Barros, autor do livro Breve História do Tocantins, quando foi escrever a obra me ofereceu duas páginas, dizendo que eu era uma figura importante na história do estado, que me admirava muito. Dois anos depois, o livro não tinha saído. Passou mais um tempo, perguntei novamente e ele me contou a verdade: ‘O Siqueira soube que eu dei espaço a você no livro e esculhambou comigo. Mas prestei uma homenagem a você’. E me mostrou uma página do livro, a 151, em que aparece apenas uma fotografia minha segurando O ditador do Cerrado. O jornalista Luís Carvalho também escreveu um livro sobre o Tocantins. Quando o Siqueira soube que eu estava no livro, arrancou todo o material sobre mim e a página ficou em branco. Já o meu livro nem nas bibliotecas é possível encontrá-lo. Muitas vezes, nas bibliotecas do estado, quando o leitor pergunta onde estão os meus livros, dizem que estão sendo restaurados. Uma restauração que nunca acaba.

Em algum momento, o senhor pensou em desistir, quando viu sucessivas edições da obra serem apreendidas?

R. C. – Eu estava quase desistindo, quando o meu filhinho de 3 anos, na época, falou: ‘Papai, eu vou liberar o seu livro. Dou um murro na cara do presidente (ele achava que era o presidente), você pega o livro e sai correndo’. Nessa hora vi que não podia mais parar.

Alguém o apoiou nessa luta toda?

Todo mundo que não era Siqueira me ajudou. Comerciantes, advogados, deputados, profissionais liberais, todos se cotizaram e deram dinheiro para as edições do livro. Siqueira Campos tem o controle físico, bruto, do estado, mas nunca teve o respeito do povo do Tocantins. Nunca ouvi um deputado elogiá-lo. Longe dele era um massacre moral.

Por que ele é forte e as pessoas têm medo de sua volta?

R. C. – Ele não é forte, a oposição é que é fraca. Ela nunca conseguiu se articular. Talvez agora esteja articulada. Se hoje houver resistência, o que vai haver, com a ruptura do governador Marcelo Miranda, vai ser a primeira vez que Siqueira Campos terá um verdadeiro confronto político pela frente. O problema é que ele é um mito no Tocantins. Ele não é um ditador, mas a própria ditadura. Então, ele é uma ameaça se não houver resistência ou um grande trabalho organizado em contrário.

Siqueira Campos tem autocrítica?

R. C. – Nenhum ditador tem autocrítica. São personalistas. E ele é o exemplo clássico do terror dele próprio. Ele não dorme com ele mesmo, dorme com o mito Siqueira Campos. Ele não confia em ninguém, nem em si mesmo. Ele me dizia: ‘Rinaldo, eu não converso com o meu filho, com a minha esposa. Nenhum membro da minha família nunca me ouviu. Eu falo, eles escutam, mas eles não me sentem, e eu nunca consegui senti-los, nunca recebi um carinho. Nesses anos todos, a única pessoa que me dá atenção é você’. Ele conta que, quando seus filhos eram crianças, pegou um menino para criar. Esse menino se chamava Rinaldo e fugiu de casa aos 17 anos, sumiu da vida dele. Ele me disse: ‘Carrego essa angústia a vida inteira. Quando ouvi falar de você, pensei ter encontrado o meu filho’. Mas, na época, eu tinha 39 anos, enquanto o filho dele tinha uns 32. Ele gostava de conversar comigo, porque sou sensível, gosto de pessoas. Nunca conheci uma figura tão espiritualmente abandonada quanto ele. Ele era uma pessoa tensa o tempo todo. Vestia a mesma calça, a mesma camiseta, o mesmo tênis. Tudo da mesma cor. Tinha umas 80 peças iguais.

Vocês dois não se tornaram prisioneiros um do outro?

R. C. – Muita gente acha que essa história me vinculou a ele. Eu não tenho nenhum vínculo de ódio com ele. Ele é a minha piada. Ele se tornou o meu humor.

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Jornalistas, Goiânia