Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O índex chinês

Nos anos 1950, um dia encontrei minha irmã escondida num canto, chorando, com um livro na mão. Ela estudava em um colégio de freiras e cursava o ginásio; eu era aluno do primário de um colégio de padres salesianos. Contou-me o motivo de seu choro: havia descoberto por que nossa mãe não ia a missa aos domingos: ela era excomungada.

Percebendo que eu não entendera direito, mostrou o livro. Tratava-se de primeiro volume da Comédia Humana, de Honoré de Balzac; continuou dizendo que a freira, professora de Religião, dissera que os livros do autor estavam no índex e quem os lesse era automaticamente excomungado. Tratava-se do Index Librorum Proibitorum (índice dos livros proibidos), relação que Igreja Católica Apostólica Romana iniciara em 1559 e que durou até 1966, na qual eram listados os livros ‘mais nocivos aos ignorantes que úteis aos doutos’.

Nos mais de 400 anos de existência foram publicadas mais de 30 edições do Index, condenando 109 escritores por sua obra total e singularmente mais de 4 mil livros. Acabou por autodeterioração, pois em 1966 ninguém ligava mais para a excomunhão.

Essa história serve para contar o que está acontecendo na China atual. Trata-se de um país que chamou a atenção mundial nos últimos anos, pelo seu crescimento econômico e potencial de consumo. Todavia a liberdade individual, que deveria ser o maior ‘produto’ de uma nação, continua sendo uma mercadoria escassa na nação mais populosa do mundo. O bilhão e 300 milhões da habitantes vivem submetidos à censura em todos os segmentos da imprensa [veja remissão abaixo].

Partido único

Existem antenas satelitais, mas as transmissões de canais estrangeiros são cuidadosamente vigiados, e sofrem blackout quando tratam de assuntos proibidos – como os direitos humanos na China.

Os correspondentes de jornais ocidentais têm seus limites. Ir ao Tibet é permito somente em viagens organizadas e acompanhados por funcionários do Ministério do Exterior. Viajar para as províncias do interior, só com autorização oficial: quem não faz o pedido pelos canais competentes, corre o risco de ser preso pela polícia e mandado de volta a Pequim.

Os visto para os correspondentes têm validade de apenas um ano e para os desobedientes é negada a renovação. Aos repórteres nacionais é praticamente proibido o jornalismo investigativo. Aqueles que acreditam que a imprensa possa ser um meio de controlar o poder acabam na cadeia, como Zhao Yan, assistente e intérprete do The New York Times em Pequim, que foi detido por dois meses sob acusação de ter ‘revelado segredos de Estado’. A realidade é que ele antes de assumir suas função no NYT, se distinguira na imprensa local por suas denúncias sobre corrupção.

Como se não bastasse, as autoridades chinesas impuseram seu próprio índex: existem os livros que não podem entrar no país. A alfândega controla todas as embalagens que são enviadas ao interior do país e seqüestra os textos considerados contrários ao governo comunista. Os tempos são diferentes, as penas são mais brandas, limitam-se apenas ao confisco dos livros e pesadas multas, mas nada de ler aquilo que o regime considera nocivo ao povo.

Não se sabe até onde poderá ser sustentada essa situação, que combina uma liberação extrema da economia com o controle de um partido único. Do antigo regime maoísta, Den Xiaoping extraiu uma geração de tecnocratas que movimentou uma formidável máquina que fabrica o desenvolvimento, o bem-estar e a instrução. Mas os chineses de uma sociedade civil que se emancipa começam a se perguntar: por que têm liberdade de escolher o seu carro, o seu celular, as suas férias na Europa, mas não podem escolher os livros que querem ler?