Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo diante das tragédias





Desde os primeiros dias de 2010 a população
brasileira acompanha um noticiário repleto de sofrimento. Terremotos,
tempestades, nevascas e enchentes assolaram países como o Haiti, Chile,
Portugal, Turquia, França e Brasil, causando a morte de milhares de pessoas. Nas
manchetes de jornais, reportagens de televisão e fotografias o drama dos que
sobreviveram e a luta para recomeçar. Mas por quanto tempo é possível manter
estas tragédias na pauta sem correr o risco de saturar o leitor? E quem
determina quando um assunto

já está esgotado? O que
os jornalistas aprendem neste tipo de cobertura e qual deve ser o tom do
trabalho da mídia? O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira
(9/3) ao vivo pela TV Brasil discutiu estas e outras questões que pautam a
atuação dos meios de comunicação durante coberturas de catástrofes naturais.

Para debater este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio de Brasília os
jornalistas que participaram da cobertura do Haiti. O repórter fotográfico Alan
Marques, da Folha de S.Paulo, é pós-graduado em Marketing pela
Fundação Getúlio Vargas. Também trabalhou em O Globo e no Jornal de
Brasília
. Luciana Lima, repórter da Agência Brasil, passou pelas redações do
SBT e Portal Terra. Em São Paulo, o convidado foi Renato Janine Ribeiro,
professor titular de Ética e Filosofia Política na USP, na qual se doutorou após
defender mestrado na Sorbonne. Foi diretor de avaliação da Capes, em Brasília.
Seus principais interesses são a construção da democracia, os direitos humanos e
a filosofia política clássica.


Antes do debate no estúdio, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Alberto Dines
comentou a atuação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar) no caso do comercial da cerveja Devassa protagonizado pela polêmica
modelo Paris Hilton. ‘Tudo indica que o Conar pretendia lançar no mercado
político o conceito da autorregulação para contrapô-lo às ideias de controle
social, muito em voga’, disse. Outro tema da seção foi o fato de o jornal
capixaba A Tribuna não ter publicado a coluna do jornalista Elio Gaspari
de domingo (07/03), que criticava o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung.
A Tribuna é um jornal moderno, bem equipado e a desculpa de `falha
técnica´ é uma balela, inaceitável’, disse.


Notícia velha vende jornal?


Ainda antes do debate, em editorial, Dines questionou: ‘O público não fica
cansado de tanto horror? A solidariedade é capaz de resistir à exposição
contínua?’. Por outro lado, há a pressão dos editores por alternância de
assuntos e os setores de marketing têm ‘obsessão’ por novas notícias. ‘Mas o que
quer o público, o que se espera de um veículo jornalístico – espetáculo ou
humanidade, show ou realidade, circo ou compaixão?’.


Na reportagem exibida antes do debate ao vivo, foram apresentadas diversas
opiniões sobre a atuação da imprensa. A jornalista Lília Teles, que cobriu a
catástrofe no Haiti para a TV Globo, contou que durante o trabalho é difícil
saber se as matérias estão conseguindo traduzir ‘todo o horror’ que assola o
local do desastre. ‘É tanta morte, tanta dor, tanto sofrimento, que as palavras
parecem não ser suficientes, nunca’, disse. Em muitos momentos, enquanto o
cinegrafista filmava, a jornalista permanecia calada porque as imagens já eram
suficientes para dar ao público a dimensão da situação.


De acordo com a jornalista, era preciso ter respeito pelo telespectador.
Grande parte não gosta de ver os detalhes. ‘Eram detalhes muito chocantes que eu
acho que não cabiam na televisão’, disse. O grande desafio de um jornalista em
uma situação degradante como aquela é buscar o equilíbrio para não correr o
risco de ‘perder a mão’. ‘O termômetro para isso é o bom senso.’ Era preciso que
as pessoas entendessem que a imprensa estava lá para ajudar: ‘A gente não estava
ali para expor os sofrimentos, virar as costas e ir embora’. O povo haitiano
buscou na mídia um aliado confiável. Pedia água, comida e socorro.


Quem deve colocar o ponto final


Rodrigo Rotzsch, editor da seção ‘Mundo’ da Folha de S.Paulo,
destacou que um assunto se mantém na primeira página enquanto houver ‘boas
histórias’, não há um prazo preestabelecido. O espaço limitado dos jornais e a
impossibilidade de manter correspondentes nos locais afetados por um período
extenso não permite que a cobertura se alongue. A agências internacionais de
notícias começam a ‘deixar o tema de lado’ com o passar das semanas.


Luiz Alberto Py, psicanalista e psiquiatra, destacou que tomar conhecimento
de uma catástrofe e conviver com ela são situações distintas. Cada indivíduo
escolhe conhecer os fatos de acordo com sua maneira de ser e sua relação pessoal
com a catástrofe. ‘Quanto mais próximos os acontecimentos são, mais eles nos
afetam’, disse. O psicanalista chamou a atenção para o fato de que a distância
geográfica também gera um distanciamento afetivo.


No debate ao vivo, Dines pediu para Luciana Lima rememorar os momentos
anteriores à viagem para o Haiti. A jornalista contou que foi tudo ‘muito
rápido’. Na manhã seguinte ao terremoto recebeu um telefonema da Redação
perguntando se em cerca de uma hora teria condições de estar na Base Aérea de
Brasília para ‘pegar carona’ no avião do governo federal que levava autoridades
para Porto Príncipe. Com o tráfego aéreo interrompido, era a única oportunidade
de chegar ao país rapidamente. Foi o tempo de arrumar a mala e pegar o
passaporte. A Agência Brasil foi uma das primeiras equipes brasileiras a chegar
ao local da tragédia.


As primeiras impressões do desastre


Mesmo preparada pelas notícias já veiculadas, ao sair às ruas pela primeira
vez, na manhã seguinte à chegada, o impacto foi grande. A tragédia era ‘ainda
maior’ que o esperado. Nos primeiros momentos, a grande dificuldade enfrentada
pela imprensa foi em relação à estrutura de comunicações do país, destruída pelo
terremoto. Inicialmente, só foi possível transmitir o áudio das reportagens e o
impedimento técnico causou grande frustração às equipes de TV presentes no
Haiti. Para Luciana, era angustiante porque desejava transmitir as imagens para
sensibilizar os brasileiros sobre a catástrofe.


Para o repórter fotográfico Alan Marques, esta cobertura será inesquecível.
Durante a estada no Haiti, Marques contraiu malária. Ao regressar, passou ‘uma
semana ardendo em febre’. Perdeu 5 quilos em cinco dias, ainda está se
recuperando mas não se arrepende. Para ele, o que importa é o impacto que seu
trabalho causará nos leitores do jornal. Marques contou que para esta cobertura
adotou o jargão militar: esta não foi simplesmente uma pauta, foi uma ‘missão’.
A equipe estava disposta a enfrentar todos os riscos e se entregar inteiramente
à cobertura do terremoto. ‘Faz parte da profissão’, afirmou.


A viagem não foi imposta. ‘Não tem como recusar porque é uma pauta tão
importante que pode ser a pauta da sua vida, o momento crucial da sua carreira’,
disse. Dines questionou como foi o trabalho de escolha das imagens que seriam
publicadas pelo jornal e se houve a preocupação em evitar o sensacionalismo. O
repórter comentou que toda a equipe trabalhou em harmonia e que sempre evitou
captar imagens grotescas que destoassem do perfil do leitor da Folha.


Dines pediu para Renato Janine fazer uma reflexão sobre o fato de os
profissionais serem ‘arrancados’ de suas rotinas para cobrir a tragédia e logo
depois terem que ‘desligar os nervos’ de tudo o que viveram porque o assunto não
se sustenta por um longo período no noticiário. Janine comentou que as seguidas
catástrofes naturais ocorridas este ano propiciaram um período de exceção para
os jornalistas. Acostumados a acompanhar setores específicos como Política e
Economia, se depararam com uma situação atípica. Como não existe um jornalista
‘especializado em catástrofe’ é difícil o profissional estar preparado para
estas situações.


Informação contextualizada


A cobertura do tremor do Haiti, na opinião do filósofo, saiu prejudicada.
Neste caso específico, o trabalho da imprensa não pode se restringir apenas à
destruição causada pelo tremor. Há necessidade de explicar o contexto econômico,
político e social do país antes da tragédia para mobilizar a ajuda humanitária.
‘São placas tectônicas que se deslocam, que se afastam, mas o que mais?’,
perguntou. A imprensa deve questionar o que se pode fazer para evitar ou
minimizar dramas humanos como este.


Janine destacou que o abalo do Haiti foi menos intenso do que o ocorrido no
Chile, mas as conseqüências foram mais severas. Para Renato Janine, a população
não deve apenas assistir ao noticiário de forma passiva. A cobertura da imprensa
deve ter como resultado a mobilização da sociedade. ‘O que me preocupa
academicamente e humanamente é o que resta disso tudo no dia seguinte. Eu só
tenho a imagem, levo um choque na hora e isso não resulta em nada na minha vida,
na minha ação?’, disse.


A mídia como aliada


Outro ponto levantado por Dines no debate foi o papel da mídia como
mensageira, citado na entrevista de Lília Teles. Luciana Lima relembrou uma das
cenas mais marcantes captadas pelos repórteres brasileiros de televisão
presentes em Porto Príncipe: o resgate de dois irmãos de sete e nove anos, cinco
dias após o terremoto. As equipes da Agência Brasil, da TV Globo e da Rede
Bandeirantes estavam pedindo informações em um posto de gasolina quando foram
abordadas por um haitiano.


O homem contou que havia sinais de sobreviventes em uma casa próxima, mas o
volume de pedidos de resgate era tão grande que o socorro não havia chegado. Os
jornalistas foram ao local e confirmaram a informação. Por iniciativa do
repórter Fabio Pannunzio, da Band, os repórteres convenceram bombeiros que
estavam nas imediações a realizar o resgate. Em pouco tempo, mais de 50 agentes
foram mobilizados para a tarefa. Na opinião da jornalista, salvar aquelas vidas
dependeu do esforço pessoal das equipes de televisão.


***


Catástrofes naturais e mídia


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 536, exibido em 9/3/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Uma nova questão está sendo discutida nas redações brasileiras e a mensageira
foi a natureza. Ou melhor: as calamidades ditas naturais. A sucessão de dilúvios
e terremotos obriga os jornalistas a encararem uma questão crucial: o público
não fica cansado de tanto horror? A solidariedade é capaz de resistir à
exposição contínua?


Repórteres que fazem o trabalho de campo são geralmente os mais sensíveis.
Comovidos com o que vêem gostariam de comover os leitores, ouvintes ou
telespectadores. Já os editores querem movimento e o marketing tem obsessão por
novidades.


Mas o que quer o público, o que se espera de um veículo jornalístico –
espetáculo ou humanidade, show ou realidade, circo ou compaixão?


Este debate já foi bizantino, acadêmico, remoto. Agora ficou atual. Para
sempre.


***


A mídia na semana


** O comercial da cerveja Devassa não era mais apelativo ou mais erótico do
que a praxe nesse tipo de publicidade. A presença da modelo grã-fina americana
Paris Hilton funcionou como chamariz para uma ruidosa intervenção do Conar, o
Conselho de Autorregulamentação Publicitária, impondo limites à sua exibição.
Tudo indica que o Conar pretendia lançar no mercado político o conceito da
autorregulação para contrapô-lo às ideias de controle social, muito em voga. As
duas opções são legítimas e podem conviver, mas a autorregulação só é válida
quando atende às demandas do resto da sociedade. A proibição do comercial foi
inócua e saiu pela culatra: em vez de valorizar a autorregulação mostrou o
quanto ela é ineficiente.


** A direção do mais importante jornal do Espírito Santo, A Tribuna,
alegou ‘problemas técnicos’ para explicar a supressão no último domingo da
violenta denúncia do jornalista Elio Gaspari contra abusos e violações dos
direitos humanos praticados pelo governo de Paulo Hartung. A Tribuna é um
jornal moderno, bem equipado e a desculpa de ‘falha técnica’ é uma balela,
inaceitável. Desta vez os censores foram pegos em flagrante, a repercussão foi
grande, certamente vão voltar atrás. A censura só dá certo quando ninguém
reclama. Censores têm horror à publicidade.

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Jornalista