Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O jornalismo na nuvem

O título do livro do jornalista e ex-político Sebastião Nery (A Nuvem, Geração Editorial, 2009) é um achado: permite o encadeamento dos seus capítulos através de um elo mágico, como se, nas suas múltiplas aventuras, ele sempre tivesse um poderoso anjo-da-guarda a guiá-lo e protegê-lo. Mas o subtítulo é infeliz e inexato: 50 anos de história do Brasil. Quando muito, meio século de estórias da história do Brasil, para usar um abuso lingüístico que prosperou por sua inspiração, em Guimarães Rosa.

Conforme sua maior especialidade, Nery conta ‘causos’, com estilo, ironia, humor. Raros jornalistas chegam à altura dessa sua nuvem nas letras brasileiras, em alguns capítulos, como na reconstituição dos seus tempos de seminarista em Amargosa, no interior da Bahia, sua terra natal, antológicos. Outro texto maravilhoso é sobre o encontro com Jânio Quadros, na casa dele, em São Paulo, em 1978. Também reproduz crônicas já publicadas, que estão entre as melhores escritas no país. Uma, em especial, na qual reconstitui a chegada de Antônio Gallotti ao restaurante Antonio´s, no Leblon, no Rio de Janeiro, depois de ter fechado a venda da Light ao governo, um dos mais cabulosos negócios da República, em 1978.

Eufórico com o faturamento, o advogado fala alto. Repórter atento, Nery saca o caderninho e começa a anotar tudo. É ‘entregue’ por outro jornalista e escritor, Rubem Braga, que alerta Gallotti, comensal em sua mesa – atitude nada ética ou mesmo profissional do grande cronista capixaba. Nery tenta disfarçar passando o bloco para uma amiga e lhe pedindo para continuar a anotar. Mas Gallotti decide dar o golpe e se instala na mesa de Nery, quando, sob o compromisso do sigilo, faz-lhe confidências. O jornalista, a partir daí, mais por regras turvas do compadrio do que por compromisso ético, ouve e não revela: ‘E conversamos mais de uma hora. Pena que a conversa ficou confidencial. Quem está na minha mesa está na minha casa’, sentencia Nery.

A frase é brilhante como retórica e nada mais. Guardar o segredo por ocasião da publicação da crônica se entende (embora talvez o melhor fosse o jornalista ter recusado a confidencialidade). Mantê-lo 30 anos depois, quando o personagem principal já morreu, torna-se inaceitável, mesmo que o jornalista possa dizer em sua defesa que o morto já não pode se explicar nem contestar o relato. É um argumento pífio: Cristo morreu há dois mil anos e não deve haver uma semana sem um novo livro a respeito dele.

Desastre operístico

Justamente esse episódio assinala a diferença entre as estórias que Sebastião Nery conta e a história. Esta permanece ao largo do brilhante jornalismo de circunstância, que lhe deu justa fama. Seu livro não pode ser considerado fonte de referência sobre esse meio século durante o qual ele atuou de várias maneiras, em diversos locais e com distintos resultados. A riqueza de experiências o credencia como um profissional especial na imprensa nacional, num lugar destacado. Mas essa mesma diversidade bloqueou a importância do seu papel de jornalista, ao obrigá-lo a se dividir entre político, amigo, compadre e parceiro dos personagens principais dessa história de 50 anos.

Não faltam ao seu livro detalhes saborosos, de bastidores, observados com grande perspicácia. Nery transita com intimidade por um universo de pessoas de vasto talento e que eram numerosas como poucas vezes aconteceu em qualquer outro período da história brasileira, com ênfase em Minas Gerais e Rio de Janeiro. O otimismo de Juscelino Kubitscheck, sua alegria e a liberdade que proporcionou fizeram mais pelo Brasil do que seu plano de metas, o desenvolvimento de 50 anos em 5. Mesmo assim, não foi propriamente uma ‘vitória consagradora’ a que ele alcançou na eleição de 1955: teve 36% dos votos contra 30% que ficaram com o general (e ex-tenente) Juarez Távora.

Foi, sim, uma vitória difícil, tendo que enfrentar permanentes conspirações contra a sua candidatura, a sua eleição, a sua posse e o pleno exercício do seu mandato. Juscelino, a despeito de sua administração controversa e pontilhada de fatos condenáveis, tinha grande autoridade moral quando passou o cargo ao seu sucessor, este, sim, dono de uma ‘vitória consagradora’. Dizia-se que, coerente com o estilo udenista que adotou na campanha, Jânio Quadros criticaria a decantada corrupção do antecessor de corpo presente. Quando inquirido sobre como reagiria nessa circunstância, JK, com sua face humana notável, teria respondido com naturalidade: ‘Meto-lhe a mão na cara’. Um tapa talvez fosse o corretivo necessário para prevenir os órfãos de Jânio (conforme o título da peça de Millôr Fernandes) do desastre operístico de 24 de agosto de 1961, quando o homem da vassoura moral renunciou para dar um golpe à Charles de Gaulle (em versão piorada) e acabou parando na Europa, certamente com alta octanagem no corpo desconexo. A vassoura, que seria usada na limpeza moral do país, serviu à bruxaria.

Desfecho coerente

Apesar do seu volume, A Nuvem pode ser lido com rapidez e prazer. Também com proveito informativo. Mas Nery, como um malabarista da palavra, confiou demais na sua verve, no seu talento cosmopolita, na sua formação invulgar, no seu poderoso glamour (que ele próprio não se cansa de exaltar ao relembrar tantas conquistas amorosas anônimas, tão anônimas quanto seu primeiro casamento, com uma mulher cujo nome nunca menciona no livro). Abusou até da nunca tão assaz celebrada memória.

Comete erro primário ao dar como nascido no Maranhão o paraense Evandro Oliveira Bastos, companheiro de empreitadas, a maior delas o semanário Politika, editado no Rio de Janeiro, tablóide de 24 páginas que circulou de 1971 a 1974. Foram ‘123 semanas sem falhar uma só’, diz Nery, garantindo que o jornal só parou ‘quando o batalhador e solidário Fernando Gasparian lançou e consolidou seu Opinião‘, cumprindo dessa maneira ‘um compromisso nosso com ele’. Acontece que em abril de 1974, quando Politika acabou voluntariamente, Opinião estava mortalmente enfraquecido pela ação violenta da censura ao longo de dois anos de perseguição. Só sobreviveu porque adotou outro enfoque editorial, menos vinculado à conjuntura imediata e mais preocupado com grandes questões, mais intelectualizado. De qualquer maneira, eram trajetórias – e qualidades – distintas as dos dois jornais.

Em época de ditadura aberta, Politika se apresentava como de oposição, o que era, de fato, só na aparência. Por via das dúvidas, Nery e Bastos trataram de recrutar Adirson de Barros, porque ‘tem ligações militares’. Se dedicasse mais tempo a tratar dessa experiência, talvez Nery desfizesse dúvidas, suspeitas e convicções quanto à razão de ser e de se manter de Politika. Mas passa por esse capítulo como se pisasse em brasa. O andamento acelerado é o mesmo quando trata da sua participação no governo Collor, um desfecho coerente com a carreira desse tipo de jornalista, que fez estória na história da imprensa brasileira.

‘O amor’

Na fase baiana, há o relato sobre o Jornal da Bahia, lançado em 1958 e que teve um papel importante para combater e denunciar os coronéis da política local. Nery colaborou, mas a peça chave foi João Falcão, que realmente escreveu um dos capítulos mais importantes do jornalismo da sua terra. Sufocado pelo ‘feroz sargento baiano Antonio Carlos Magalhães’, como diz Nery, o jornal foi vendido em 1983 e desapareceu em 1994. Os coronéis prosseguiram.

A contribuição de Nery viria através do Jornal da Semana, elaborado numa inusitada ponte aérea entre Salvador e Rio de Janeiro. Mas a publicação não era exatamente independente, autônoma, embora, indiferente aos próprios dados que apresenta no livro, ele proclamasse no editorial de lançamento: ‘Não temos compromisso com ninguém, a não ser com a verdade dos fatos de caráter público. Não estamos ligados a grupos econômicos nem políticos’. No entanto, o jornal começou com um ‘checão’ assinado por Antônio Balbino, figura exponencial da política baiana, que dava ‘para pagar tudo do primeiro mês: aluguel da sede, papel, gráfica e um esquema de distribuição’. Balbino bancou o custo do papel usado da primeira à última edição do jornal, além de dar outras ‘ajudas’. Desinteressadas?

Claro que não. Teria, de qualquer forma, contribuído para modificar e melhorar as coisas na Bahia porque o Jornal da Semana se opunha às estripulias do governador Juracy Magalhães. Mas se um coronel foi prejudicado, outro se beneficiou. E o jornalismo já não era comprometido com a verdade, ao menos não de forma incondicional. ‘Dez anos de jornalismo político fizeram de mim um homem político’, confessa, lembrando-se de quando o Jornal da Semana completou um ano.

O político se confundiu com o jornalista, assim como o seminarista com o conquistador. Todos tiveram agendas cheias de acontecimentos, mas, ao final do meio século de estórias (aos 77 anos de idade), questionando-se sobre ‘o que ficou do que passou’, Nery foi exato na sua resposta lacônica: ‘O amor’. Certamente o balanço se revela superavitário para ele como o domínio da imaginação e da fantasia. Para a história, nem tanto. Ou pelo contrário.

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Errar e aprender

O principal método de alfabetização que tive foram as aulas de leitura. A professora (e, depois, o professor também) lia um texto e ficávamos acompanhando sua leitura, atentos ao ‘discurso’ e, ao mesmo tempo, recriando-o com a imaginação, ordenada ou vagueando vagabunda pelo éter. Assim aprendi a ouvir antes que a profissão de jornalista exigisse esse atributo como condição de ofício. Depois de ouvir, eu próprio lia o texto, que se ligava a outro texto – e assim se formou uma bibliografia à parte do currículo escolar. Atribuo a meus mestres da infância ter me adestrado na capacidade de saber ler, captando exatamente o que foi escrito, e interpretar a leitura, já então adicionando a parte que me cabe. Assim evoluí sem trair o autor que me permitiu seguir na escalada.

Faço essas divagações porque, lendo alguns dos comentadores dos meus artigos, reproduzidos em diversos blogs e sites da internet, fico na dúvida se o texto que eles comentaram foi o que eu escrevi. Por causa daquele no qual tratei do carisma de Lula (Jornal Pessoal nº 455), fui colocado nas vestes de um ‘Catão provinciano’, quando não há a menor possibilidade de fazer essa associação de idéias sem trair o que escrevi. Ou então me classificam ao mesmo tempo de dissimulado e frontal oposicionista. Acham que escondo a mão quando faço paralelismo entre Hitler e Lula, querendo dizer na verdade que Lula é Hitler, embora tenha feito dissociação completa entre ambos, lembrados em conjunto apenas para efeito da análise que fiz sobre o carisma.

De vez em quanto erro – e nem sempre é pouco. Mas deixem-me errar com o que disse de fato, não pelo que me atribuem. Assim, posso fazer o que, mais do que humilde, é inteligente: aprender com o corretivo.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)