Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O marechal da vitória volta a campo

Tendência recente da nossa indústria editorial tem brindado leitores e estudiosos com competentes livros sobre São Paulo, sua gente, seus empreendimentos, com oportuna e ampla visão de conjunto dos últimos cinqüenta anos, em vários campos de atividades. Aí se incluem obras sobre o publicitário Geraldo Alonso, o escritor Marcos Rey, o cineasta Rodolfo Nanni, o compositor Adoniran Barbosa, o craque do São Paulo F.C. Leônidas da Silva, o conde Francisco Matarazzo, fundador das Indústrias Matarazzo, o comandante Rolim Adolfo Amaro, criador das linhas aéreas TAM, entre outros, Tendência, como se nota, algo difusa e bastante diversificada, mas nem por isso menos sólida e atraente, desviando um pouco do palco as luzes ofuscantes que, no mesmo ritmo, sempre chegam do Rio, o centro tradicional da cultura no país.

Reforça agora a presença dos paulistas nesse cenário a biografia do famoso ‘Marechal da vitória’, o empresário Paulo Machado de Carvalho (1901-1992), o ‘dr. Paulo’, uma mistura peculiar de homem de rádio e TV e dirigente esportivo, que batalhou durante 60 anos para dar à sua cidade o melhor em matéria de comunicação, com a rádio e a TV Record, empenho que realizou de forma plena. E, nos apertados intervalos, movido por outra paixão, levando a seleção, sob seu comando geral, aos dois primeiros campeonatos mundiais de futebol do Brasil – o de 1958, na Suécia e o de 1962, no Chile.

Só não liderou o tricampeonato no México, em 1970, por causa das intrigas palacianas da CBF e da cartolagem carioca, mortas de inveja dos logros de Machado, da mesma forma que não pôde evitar, nos anos 1980, a melancólica e irreversível decadência de suas emissoras de rádio e TV, que acabariam caindo, por conta de incêndios seguidos e administração errática, além da arrasadora concorrência da TV Globo de Roberto Marinho, primeiro nas mãos espertas de Silvio Santos, depois nas messiânicas do pastor evangélico Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus.

O sagrado manto azul

Tarefa complexa é, nesse tipo de biografia, na qual além dos oscilantes chiaro-oscuros da personalidade focalizada se bifurcam seus talentos e conquistas – caso do dr. Paulo, cuja vida dividiu-se entre o rádio e a televisão e o futebol –, tarefa complexa é armar um quadro seqüencial e sobretudo abrangente, passando de uma área a outra de forma descontraída ao longo do livro.

Os dois jovens autores da obra lograram muito bem esse objetivo, revelando facetas curiosas de Paulo Machado de Carvalho como homem e empresário, algumas provavelmente inéditas ou, pelo menos, menos conhecidas, e ao mesmo tempo relatando, com fartura de informações e num estilo claro e fluente, episódios importantes da vida brasileira, como foram o surgimento do rádio e da televisão, a explosão da música popular em festivais de auditório, a profissionalização do futebol que culminou gloriosamente com dois campeonatos mundiais, todas etapas nas quais Machado teve participação fundamental.

Com efeito, um dos aspectos logo ressaltados no livro é a própria figura humana do dr. Paulo, muito diferente dos malandros e tubarões que sempre o rodearam, tanto no campo da comunicação como no futebol. Além de católico devotado, crente fervoroso nos milagres de Nossa Senhora Aparecida, sob cujo manto azul sempre procurava abrigo e proteção, marido e pai dedicado, era um empresário íntegro, compreensivo embora durão quando necessário no trato com seu pessoal, mas despojado de vedetismos tolos ou poses imperiais.

E, importante, graças ao seu jeitão conciliador, sempre pronto a maneirar as situações mais difíceis com diálogo e bom senso, fez-se amigo de concorrentes de respeito, como Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados, evitando assim conflitos desgastantes no momento de aventurar-se na frente dos competidores mais próximos – Chatô por certo o mais ágil, de maior cuidado.

Supersticioso, jamais assegurou seu patrimônio imobiliário, as instalações da rádio e da televisão principalmente, pouco a pouco devorado por contínuos incêndios. Tungado em alguma ocasião por uma empresa de seguros, no início de sua carreira, jurou nunca mais aplicar dinheiro nesse tipo de providência, teimosia que no final contribuiu muito para o declínio de suas empresas. Resistente foi também às modernas práticas administrativas: até o fim da vida empresarial controlava o fluxo financeiro da rádio e da TV num caderninho preto, dividido em colunas ‘a pagar’ e ‘a receber.’

Teve, porém, sorte com os filhos – Paulinho, Alfredo e Antonio Augusto, o Tuta –, que além de se darem muito bem como irmãos, gradualmente assumiram o controle cotidiano técnico, artístico e comercial da casa. Mas o dr. Paulo supervisionava de perto o andamento das coisas; era um patrão acessível mas vigilante, sempre centralizador.

A voz de São Paulo

Filho de próspera família de classe média, morador num casarão da rua das Palmeiras, em São Paulo, o garoto Paulo, como alguns poucos de sua geração, rebelou-se contra o sonho clássico dos pais da época – formar-se bacharel em Direito e vestir a toga de magistrado. Freqüentador assíduo dos campinhos de várzea, onde cultivava seu prematuro amor pelo futebol, formou-se advogado na Faculdade do Largo de São Francisco, isso sim. Mas em 1931, aos 30 anos de idade, sem rumo definido na vida, comprou, para horror da mãe, a matriarca Dona Brasília, filha de barões, uma rádio meio falida no número 17 da praça da República, por 25 contos de réis.

Neófito em rádio, que na época também era um negócio incipiente, Machado nunca vira um microfone em sua vida quando entrou nas salinhas acanhadas e escuras da emissora para conferir, no meio do pó acumulado, o que havia comprado. A precariedade do quadro ali visto não o desanimou o suficiente para recuar.

Em poucos meses o indócil empresário já administrava uma rádio-modelo, com audiência e prestígio, graças a uma programação moderna e popular. Aproveitou bem os tempos de turbulência do movimento constitucionalista de 1932, abrindo os microfones a manifestações e protestos dos revoltosos contra o governo de Getúlio Vargas, assim se arriscando, ao desafiar o poder maior do país, a perder a concessão da rádio, chamada pela população de ‘A voz de São Paulo’.

Nesse período deu rédea solta ao talento explosivo e provocador de grandes locutores iniciantes como César Ladeira e Nicolau Tuma, criou noticiários jornalísticos, programas sobre futebol, levou a São Paulo os grandes nomes da música popular da época, estrelas do calibre de Carmen Miranda e Orlando Silva. Da parte artística da emissora, escrevendo programas, cuidavam outras duas jovens revelações, os redatores Otávio Gabus Mendes e Raul Duarte.

Um bonde de 200 contos

Na virada dos anos 1940, consolidada a Rádio Record tanto na audiência como no caixa, Paulo Machado de Carvalho já andava bem enfiado nos bastidores do futebol paulista, na condição de dirigente do São Paulo Futebol Clube, seu time do coração. Coitado do funcionário que fizesse na frente do chefe alguma gozação sobre as agruras são-paulinas, pois o homem passava mais tempo na sede do clube do que na emissora, quebrando a cabeça para elevar o nível técnico da equipe.

O São Paulo de fato andava mal, se arrastava atrás do então Palestra Itália e do Corinthians. Era preciso, para disputar o campeonato de 1942, reforçar o onze tricolor com um grande craque. A solução, temerária, foi contratar a peso de ouro, 200 contos de réis da época, a Leônidas da Silva, o lendário Diamante Negro, que, aos 29 anos, joelhos estropiados, não queria mais saber nem do Flamengo nem do futebol. A proposta do São Paulo porém era irrecusável, sobretudo em termos de um digno e seguro fim de carreira.

Na opinião de cronistas da época, entre eles o destemperado e agressivo Geraldo Bretas, o São Paulo comprara um bonde de 200 contos na figura obesa e lenta de Lêonidas. O jogador realmente começou devagar, mas aos poucos recuperou a forma física e técnica: em 1943, o São Paulo ganharia seu primeiro título no campeonato paulista conduzido pelo futebol mágico do negrão carioca, vindo em seguida os títulos de 1945, 46, 48 e 49, com Leônidas no centro do ataque, dando suas fantásticas ‘bicicletas’, e uma linha média imbatível formada por Bauer, Rui e Noronha.

Televisão no tapa

As experiências bem-sucedidas de Paulo Machado no mundo radiofônico e do futebol aos poucos o prepararam para vôos mais altos, como foi a implantação do Canal 7, TV Record, que no encalço da pioneira TV Tupi do amigo Chateaubriand, inaugurada em 1950, ele colocou no ar três anos depois, na avenida Miruna, perto do aeroporto de Congonhas, em instalações amplas e luxuosas: só o estúdio principal tinha 450 metros quadrados.

A festa acabou melada por um incêndio na sede da Rádio São Paulo, do grupo Emissoras Unidas (a outra era a esportiva Panamericana, mais tarde Jovem Pan), num casarão da avenida Angélica, que, incentivada por um enorme público cativo, transmitia vinte novelas diárias. O fogo transformou em cinzas todo o arquivo de radionovelas da emissora.

Competir com o ousado e milionário Chateaubriand não foi fácil, sobretudo nos primeiros anos, mas o dr. Paulo, cercado de uma equipe vigorosa e cheia de imaginação, logo transformou o Canal 7 numa boa alternativa de TV em São Paulo, a custa de incríveis malabarismos técnicos para suprir as carências de equipamento, com coberturas esportivas, programas cômicos e musicais, seriados infantis, e o saudoso Circo do Arrelia.

Engole essa!’

Certa manhã de 1957, por volta das 6h30, o dr. Paulo, homem metódico, chegou à TV Record, deu uma caminhada pelas redondezas da emissora, cumprimentou os vizinhos, entrou e, enquanto fazia a barba no pequeno salão, leu os jornais. Parecia um dia normal, tranqüilo, mas na verdade uma visita inesperada mudaria o rumo da sua vida nos próximos cinco anos, trazendo-lhe grandes alegrias mas também canseiras e amarguras.

O vice-presidente da então CBD (Confederação Brasileira de Desportos), o carioca João Havelange, vinha com uma proposta surpreendente, que adoçou com belas palavras: ‘Olha, Paulo, quero uma seleção que faça o povo esquecer os fracassos dos últimos anos. Preciso de uma seleção vitoriosa, de um time campeão. E quero você como supervisor. Pode armar tudo, com carta branca’.

Para refletir melhor sobre esse novo e tremendo desafio profissional, Machado dobrou as voltas que dava ao redor da sua emissora de TV. Era preciso pensar muito bem para formar uma comissão técnica séria e competente, alheia ao bairrismo político entre São Paulo e Rio, bem como resistente às provocações de jornalistas inconformados com as escolhas dos nomes de técnico e jogadores.

Com seu estilo na base do primeiro-escute-depois-responda, principalmente no trato com jogadores difíceis, cabeças complicadas (Garrincha, entre outros), e pondo em prática seu espírito pragmático de organização e disciplina, dr. Paulo, depois de comandar o primeiro campeonato mundial na Suécia, em 1958, repetiria o feito em 1962, castigando com o maior gostinho um de seus críticos mais duros na imprensa paulistana, o locutor da Rádio Bandeirantes Pedro Luiz, que desceu-lhe o cacete durante a campanha do bicampeonato. Dado o apito final no jogo contra a Tchecoslováquia, que trazia ao Brasil um segundo título mundial, dr. Paulo gritou no microfone de um repórter da Bandeirantes: ‘Engole mais essa, Pedro Luiz!’.

No dia em que a TV Record, em irrecuperável situação financeira, passou oficialmente ao controle da Igreja Universal do Reino de Deus, em março de 1990, ninguém da família teve coragem de comunicar o fato ao dr. Paulo, solitário e entediado dentro de sua sala, à beira dos 90 anos. Coube ao diretor comercial da Rádio Record, Chico Paes de Barros, avisar ao chefe e amigo que aquela seria sua última tarde no escritório da avenida Miruna.

– Dr. Paulo, a Record acabou de ser vendida aos evangélicos.

– Lamento, meu filho. Ergui isso aqui do nada, em 1931. Mas não havia mais o que fazer. Vamos para casa.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México