Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O novo jornalismo hispano-americano

Em meio a inócua, chata e verborrágica guerra político-diplomática entre México e Cuba das últimas semanas, espetáculo sem previsão para terminar logo, um delicioso episódio – conhecido como ‘come y te vas’ – tem pipocado como um dos motivos da acesa irritação do lado cubano: a gafe dada, ano passado, pelo presidente mexicano Vicente Fox, que ao querer evitar um encontro cara a cara entre Fidel Castro e George W.Bush, durante a Cúpula de Monterrey, aconselhou o primeiro, numa conversa telefônica grampeada pelos arapongas cubanos, em termos pouco elegantes para um anfitrião: ‘Então ficamos assim, Fidel, você chega, almoça e vai embora…’

O relato do incidente, feito pelo jornalista mexicano Roberto Zamarripa, e que teria fermentado os insultos e provocações dos dois lados, permite entender, um ano depois, um pouco do porquê desse desconcertante desentendimento entre dois países irmãos, resultando num dos bons e oportunos textos de Enviados especiales – Antología de nuevo periodismo hispanoamericano, que traz 21 trabalhos de escritores e jornalistas espanhóis e mexicanos.

De fato, os textos jornalísticos aqui reunidos levam os leitores, como era mesmo a intenção e esperança dos editores, a transcender a notícia ou a informação do dia-a-dia. E vão transformando os jornalistas, os de maior talento, em escritores competentes por meio de narrativas que, sem deixar de lado o enfoque de jornal ou revista, emergem enriquecidas por recursos literários.

Cabrito assado e gelatina quente

No caso do incidente de Monterrey, por exemplo, na longa conversa entre Fox e Fidel, este pergunta ao mexicano se vão servir cabrito assado, prato típico do norte. Fox confirma: ‘Sim senhor, do melhor’. E Fidel, contente, pede então ‘que não seja muito, pois a viagem de volta a Havana é longa…’, insinuando a agonia de uma digestão pesada por conta do tórrido tempero mexicano.

Minutos antes, ouvindo os detalhes da participação de Cuba na Cúpula, Fidel, malandro velho, sentindo que Fox se apegava muito ao protocolo, pergunta: ‘Diga-me uma coisa, presidente, em que mais posso servi-lo?’ Resposta: ‘Bem, basicamente, não agredir os Estados Unidos ou ao presidente Bush, é melhor nos limitarmos a…’

Do cabrito assado de Monterrey, prato popular mas nada sofisticado, o leitor é levado a cozinha do antológico restaurante El Bullí, um três estrelas Michelin da Catalunha, criado e dirigido pelo jovem chefe Ferran Adriá, de 32 anos, que só abre seis meses ao ano e só à noite. De acordo com o jornalista peruano Julio Villanueva Chang, autor do artigo ‘Un extraterrestre en la cocina’, Adriá é tido como um revolucionário do forno e fogão, um príncipe dos cozinheiros contemporâneos – batizado pelo New York Times como o ‘Salvador Dalí da cozinha’ por sua fulgurante inventividade, para muitos de seus críticos própria de um maluco vindo de outro planeta.

Inventividade que o leva a fugir de regras clássicas, impedindo qualquer comparação com outros colegas do ramo – entre eles outro monstro da gastronomia espanhola, Juan Marí Arzak –, e a criar coisas do tipo como uma sobremesa de gelatina quente ou de sorvete salgado, numa tentativa, ousadíssima, de utilizar ingredientes simples para diluir as fronteiras entre o doce e o salgado.

Que tal pedir um cuscuz de couve-flor? Ou um arroz a lenha, uma paella de caracóis, um peixe ao vapor? A experiência de jantar no El Bullí e saborear os pratos de Adriá é descrita por outro jornalista e gourmet da região, Arcadi Espada, detestado por suas posturas antinacionalistas e, portanto, insuspeito ao dignar-se a elogiar alguma façanha local:

‘Nós, catalães, somos muito escatológicos: a comida de Adriá não se defeca, se transpira. Não sei, é um processo inverso ao da osmose. Comer o que ele cozinha é a experiência estética mais radical e fascinante que podemos desfrutar na Espanha. Nenhum outro artista chegou tão longe’.

O próprio chef assim define seu ofício: ‘A cozinha é cozinha. A arte é arte. Só que a cozinha nos dá uma felicidade imediata e temos que desfrutá-la comendo’.

Das pulcras mesas de toalhas brancas do El Bullí e, noblesse oblige, arrumadinha com talheres de prata, o livro desce ao Rio de Janeiro do início dos anos 1990, quando ali aportou a jornalista e escritora mexicana Alma Guillermoprieto, colunista da respeitada revista New Yorker, na qual costuma escrever sobre a região latino-americana. Escrever com profundidade e conhecimento, fugindo dos estereótipos e exotismos de americanos e europeus.

É duro ser mãe-de-santo

Alma, fluentíssima em inglês, além de seu espanhol nativo, já visitou o Brasil algumas vezes e, no livro, entre outros fenômenos cariocas, descreve, num dos textos mais longos do volume (26 páginas sob o título Rio, 1991), o mundo e a gente da umbanda – ‘a religião mais ou menos oficial dos pobres da cidade, que são predominantemente negros… mas também os bairros mais respeitáveis das classes médias estão salpicados de templos umbandistas…’

Na conversa com uma mãe-de-santo, Mãe Marinete, que se queixa dos graves problemas que afetam a cidade e seus habitantes, de tabela também atrapalhando o exercício da religião, a escritora mexicana encontra o fecho adequado, e realista, as suas observações:

‘Não é tão fácil’, diz Mãe Marinete. ‘É preciso fazer malabarismos para continuar como mãe de santo. Tenho que estar também de olho no mundo lá fora. O Rio de Janeiro está muito louco, a cidade não é mais como antes. Preciso me entender com rapazinhos narcotraficantes que chegam aqui pensando que posso lhes conceder favores. E com sujeitos que acham que tenho alguma coisa que podem roubar. E com o pessoal que quer se bandear para os evangélicos, com os que já foram para lá e agora querem voltar. Sabe de uma coisa? São muitos.’

Metrô é atraso de vida

Da cidade tropical, símbolo mundial do Brasil, o livro pula para a maior cidade do mundo, e a mais poluída, a do México, hoje com 20 milhões de habitantes que a cruzam todos os dias nas onze linhas de um moderno e eficiente sistema de metrô. É nele que o mais respeitado e popular cronista urbano mexicano, o jornalista e escritor Carlos Monsiváis, desce com freqüência e entra num dos vagões que o leva a algum lugar na noite, onde, arroz de festa, é esperado para dar uma conferência ou simplesmente abrilhantar com sua presença algum evento literário ou artístico.

Monsiváis se diz, no texto ‘Sobre el metro las coronas’, ‘preso, angustiado’ quando entra no metrô, ‘porque não tenho malicia corporal para esquivar das trombadas e empurrões, abrir caminho entre gente e camisetas e bolsas e preocupações de trabalho congeladas em gestos distantes’.

Observador agudo dos costumes e taras de uma classe média baixa, empilhada na periferia e cuja diversão maior de fim de semana é queimar pneus e encher a cara, e também de uma classe média alta ostentadora, hipócrita e americanizada, Monsiváis vê no aspecto dos usuários do metrô uma funda relação com a própria cidade. Diz ele:

‘Se quisermos e dispusermos de tempo, dá para averiguar, pelo aspecto, a classe social de qualquer um dos nossos companheiros de viagem. Não que isso revele maior perspicácia, mas só ratifica aquele ditado: ‘Aparência é destino’. Se você engorda, enfraquece suas possibilidades de subir na vida. Se emagrece muito, também. Tudo bem, mas o fato é que quem viaja com freqüência de metrô já carece de possibilidades de subir na vida.’

Ibope manda

Como se sente um jovem escritor sem dinheiro, poeta sem carteira assinada, futuro incerto, quando de repente é convidado para escrever os diálogos de uma telenovela, bem pago e com boas condições de trabalho, numa emissora importante?

Conta o escritor venezuelano Alberto Barrera Tyszka, dos anos 1980 para cá convertido num dos mais prolíficos autores do gênero na América Latina:

‘Topei na hora, não pensei duas vezes. Fui com uma ingenuidade no ânimo, outra no fígado. E logo me acostumei aos gritos e risadas do meu chefe ao entrar na minha sala: ‘Ternura, Barrera, ternura! É isso o que você tem que escrever!’’

Estudioso das crises existenciais de escritores famosos e rendidos, chorosos, ao poder da grana, em seu texto ‘Amor sin rating no dura’ Barrera diz aos novatos o seguinte, lembrando as palavras do mestre do policial americano Raymond Chandler, que entregou-se ao cinema para poder viver decentemente: ‘Pois o mais bonito que Hollywood pode chegar a pensar ou a dizer a um escritor é que ele é bom demais para ser tão-somente um escritor’.

A televonela, continua Barrera, ‘é um conto que poderia ser narrado em dois minutos. O resto é delírio. Escritura e gravação. Horas que só perseguem um final que, na maioria das vezes, todo mundo já conhece. Nessa metade infinita se encontra o escritor. Segundo as estatísticas, toda telenovela contém 25% de informação e 75% de simples reiteração. A habilidade do roteirista consiste em conseguir que essa reiteração ao menos pareça novidade’.

Escravos do chamado rating (índices de audiência, o nosso Ibope), os escritores das telenovelas vivem na corda bamba dia e noite:

‘Trata-se, esse tal de rating, de um invento nefasto, a mais poderosa medida do mercado que nos abençoa ou nos amaldiçoa, que define o trabalho, que dirige, que manda. Ninguém, nesta indústria, quer reconhecer que nela a verdade é móvel, que a fugacidade de um sucesso não pode ser copiada, que a clonagem de bons produtos é uma ginástica inútil. Numa indústria na qual ninguém sabe o que o público quer, cada um se empenha em garantir que sim, ele sabe do que a audiência gosta, o que as pessoas estão esperando ver na telinha.’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México