Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O processo de construção do relato

A Editora Annablume lançou Imagem e verdade – Jornalismo, linguagem e realidade, do jornalista e professor Marconi Oliveira da Silva. A partir de notícias e reportagens sobre o Caso Celso Pitta, entre 1997 e 2000, o autor procura mostrar como se dá o processo de construção do relato em torno do affair, que variava ao sabor da situação. Com base numa visão de linguagem ligada às novas investigações na perspectiva cognitiva e filosófica de Wittgenstein, Marconi Oliveira da Silva monta uma teoria geral do funcionamento da linguagem que analisa criticamente o discurso, além de aprofundar questões centrais no trato epistemológico do discurso jornalístico e de outros atores sociais. O livro teve origem na tese de doutorado ‘A apresentação do mundo pela linguagem no jornalismo’, defendida no início de 2004 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Marconi Oliveira da Silva é graduado em Filosofia e Comunicação Social (Jornalismo), mestre em Filosofia e doutor em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco. É professor de Jornalismo no Departamento de Comunicação Social da UFPE e pesquisador na área da epistemologia e da linguagem jornalística. Publicou pela Edipucrs o livro O mundo dos fatos e a estrutura da linguagem – a notícia jornalística na perspectiva de Wittgenstein.

Ao abrir um jornal como a Folha de S.Paulo ou sintonizar a televisão no Jornal Nacional da TV Globo, o leitor/espectador sabe que encontrará nas notícias e reportagens os fatos mais relevantes que aconteceram na sua cidade e no mundo. Esse seu ato de informar-se através do jornalismo tem como pressuposto a crença do leitor na verdade dos fatos. Em outras palavras, o leitor aumenta seu conhecimento sobre a realidade jornalística acreditando ser um retrato fiel da realidade externa. Porém, quando se analisa com mais profundidade a questão, percebe-se que a notícia é um fato jornalístico que já não tem uma ligação direta com os fatos que relata.

A linguagem jornalística aparece como composta dos mais diversos relatos enunciativos com sentido de referir objetos do mundo. No entanto, mesmo que apresente para o leitor um fato ‘novo’ como informação genuína, este fato carrega no seu bojo um ‘dado’, ou seja, uma informação de fundo, que é sobre este (background) que a leitura do leitor vai incidir. Assim sendo, mesmo que o ‘dito’ tenha um mesmo referente, o sentido é diferente para cada interlocutor.

Objetos e proposição

E como se sedimentou essa posição metodológica realista? Segundo Edwin Emery (1965), os tipos de notícias entre 1830 – 1850, na imprensa americana, eram de fatos nacionais, internacionais, crimes, violência, paixões, interesse humano, economia e política, porém não havia preocupação alguma com o rigor investigativo na apuração nem maior precisão e exatidão nos relatos. Só a partir de 1865 é que se inicia o que o autor denomina de a ‘verdadeira revolução’ na imprensa com o surgimento do jornalismo imparcial e objetivo. Essa grande virada foi posteriormente consolidada por Adolph S. Ochs que definiu como princípio editorial para o New York Times que as notícias fossem dadas com imparcialidade, sem medo, nem favor, sem consideração para com nenhum partido, credo ou interesses envolvidos O que se quer ressaltar, ao destacar esses breves dados históricos, é que esse modelo de jornalismo, preso à verdade dos fatos, foi adotado por quase todos os veículos de imprensa do ocidente durante todo o século XX. Contudo, a pergunta que fica é: por que foi, aparentemente, tão fácil à adoção da objetividade como sendo a própria essência do fazer jornalístico? É o que tentarei responde a seguir.

É o empirismo do século XVIII que vai determinar com muita ênfase a teoria da correspondência que estabelece que o significado e a verdade dos enunciados se encontram na realidade. Aplicando a teoria da correspondência ao jornalismo, poderá ser dito que a notícia é verdadeira porque corresponde aos fatos que relata. Essa teoria, de certa forma, é uma decorrência do método científico elaborado por David Hume. Ele enfatiza que todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação causa e efeito. Há sempre uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Essa teoria da causalidade humiana segue os pressupostos aristotélicos que procuram compreender o mundo descobrindo a ligação dos eventos entre si. A ordenação do mundo se realiza via as experiências na conformidade com a categoria de causa e efeito. Isto quer dizer que cada fenômeno possui um agente determinante e antecedente.

O jornalismo adotou o postulado de causalidade humiano para tornar as notícias possuidoras de um valor de verdade por que são resultados de causas percebidas e descritas da realidade. A proposição jornalística sobre determinado fato, se for verdadeira, é idêntica a esse fato. Assim também, quando o jornalismo seleciona objetos do mundo (idéias, pensamentos, fatos) e os apresenta de forma organizada, esses objetos são idênticos à proposição que os afirma.

Tratamento da realidade

A conclusão a que se chega, partindo das premissas do método científico adaptado para o jornalismo, é que as notícias e as reportagens, por exemplo, são o mundo transformado em textos e imagens.

Comumente este modelo é denominado realismo, pois se acredita que exista um conjunto fixo de objetos que são independentes da linguagem e que também há uma relação fixa entre os termos e as suas extensões. Porém, há filósofos, cientistas e lingüistas que se opõem a esse tipo de realismo e advogam que os fatos, por mais simples que sejam, são projetados por teorias, crenças, conceitos, sensações, sistemas, contextos, conhecimentos e linguagem. Isto quer dizer que nenhum fato é um fato puro. Todo fato é percebido e construído constantemente na forma de recategorização dos objetos de discurso. Com esse novo postulado, a dicotomia fato – valor, segundo Putnam (1992), precisa ser revista já que a ciência não procura descobrir a verdade, o que ela procura é construir uma imagem do mundo. A razão disso é que o ‘mundo real’ depende de nossos valores e vice-versa. É essa posição que adoto, isto é, o que o jornalismo apresenta ao leitor é um mundo construído a partir de valores já estabelecidos, contudo mutáveis.

Analiso neste livro os textos jornalísticos denominados de notícia, reportagem e entrevista que aparentemente apresentam fatos referenciais e objetivamente expostos, são, no entanto, enunciados resultantes da confluência das falas de vários falantes, e, portanto, considero os enunciados como elaborações discursivas e independentes dos objetos aos quais se referem. O que quero afirmar é que o texto jornalístico mantém relações com a realidade, mas constrói jornalisticamente um mundo que o leitor pode confundir como sendo o mundo extra-mental. Na verdade, o jornalismo apresenta aos leitores um tratamento da realidade, mas que pode ser confundido como um retrato do mundo.

Convenção de representação

Em outros termos, o jornalismo deve ser visto como uma forma epistemológica de organizar o mundo. Isso significa que, mesmo partindo de objetos do mundo, os jornalistas constroem lingüística e discursivamente objetos de discurso. Esse processo se efetua de forma interacional e dentro do ambiente que os envolve. O mundo percebido pelos sentidos é elaborado como uma maneira de ser percebido pela forma discursiva. O mundo da experiência sensorial não tem uma face externa palpável. Por isso, não produzo o mundo, mas fabrico a forma de perceber este mundo. Assim, a minha percepção do mundo e a descrição que faço dele são frutos de categorizações que elaboro constantemente dos objetos que me rodeiam. Essas categorias são entidades culturalmente construídas pela minha própria experiência. Elas são situadas no mundo e muito concretas. Não são abstratas nem metafísicas. As categorias não necessitam de ser referente de algo, mas não negam o mundo externo. Isto é, o meu dizer não cria o mundo, pois ele existe independentemente do meu conhecer e do meu dizer. É um problema cognitivo e não ontológico. A construção das categorias é um processo interacional que resultará numa representação mental que não é uma fotografia, mas são modelos cognitivos, discursivos de produzir sentido, já que a língua é opaca e se faz socialmente.

O jornalismo não quer apenas apresentar um sentido de mundo, ambiciona também oferecer um quadro social e institucional organizado e estabilizado que o leitor/espectador possa reconhecer e se identificar cognitivamente neste contexto. Por outro lado, e de forma aparentemente paradoxal, a indeterminação e a opacidade da linguagem serão os instrumentos que o jornalismo usará para conquistar audiência. O jornalismo é assim também o mundo da ambigüidade e da indeterminação.

Sou levado a afirmar que assim como as palavras não possuem uma conexão necessária com os seus referentes, também os relatos jornalísticos se relacionam com os fatos através de uma convenção de representação. Como esse fenômeno se dá, é muito bem explicado por H. Putnam. Ele assevera que a idéia de que a verdade é uma cópia da realidade não tem sustentação. Com efeito, os enunciados se encontram dentro dos ‘padrões de aceitabilidade’.

Atividade social

‘O mundo empírico, por oposição ao mundo numénico, depende dos nossos critérios de aceitabilidade racional (e vice-versa, naturalmente). Usamos os nossos critérios de aceitabilidade racional para construir um quadro teórico do <>, e então à medida que essa imagem se desenvolve revemos nossos próprios critérios de aceitabilidade racional à luz desse quadro e assim por diante, e assim por diante para sempre.’ (PUTNAM, 1992:174)

É a linguagem que deve ser estudada e analisada na busca da significação que se dá na sua realização discursiva. Nessa perspectiva, adoto os pressupostos gerais que Marcuschi (2000a:81-83) apresenta como delineadores de um novo olhar sobre a linguagem, o mundo e o discurso. O primeiro pressuposto é sobre a indeterminação lingüística que apresenta a língua como atividade. A língua, portanto,

‘não é um sistema autônomo que se esgota no código, é heterogênea, opaca, histórica, variável e socialmente constituída, não servindo como mero instrumento de espelhamento da realidade.’ […] a determinação se dá no uso efetivo. A língua não é o limite da realidade, nem o inverso. Língua é trabalho cognitivo e atividade social.’

Formulações específicas

O segundo pressuposto (ontologia não-atomista) diz que o mundo não está discretizado e delimitado como o designo. ‘A discretização do mundo empírico (extra-mental) não é um dado apriórico, mas uma elaboração cognitiva.’ (Marcuschi, 2000a: 82). O terceiro pressuposto, como conseqüência dos anteriores, mostra a referenciação como atividade discursiva. Isto quer dizer que a referência não é extensional, mas referência textual.

No âmbito da lingüística, parto da teoria da indeterminação do significado como intrínseco à linguagem para o estudo/forma de construção interativa e discursiva da realidade. A referência, ponto crucial para o jornalismo, é abordada como pertencente aos processos de referenciação e categorização. O efeito de sentido e o significado ou conteúdo dos enunciados são vistos como resultados de interação discursiva pela construção dos referentes e dos objetos de discurso.

O objeto de discurso no dizer de Mondada (1994:62-64),

‘é um objeto constitutivamente discursivo, construído por meios e processos lingüísticos. […] O objeto de discurso é construído (realmente co-construído – por oposição ao dado ou preexistente) por um enunciador através de modos de formulações específicas. […] Ressalte-se ainda que o objeto de discurso não é estabilizado uma vez por todas, mas está integrado num movimento discursivo, ativado e por ser desativado, introduzido para depois passar a um segundo plano, a desaparecer ou eventualmente ser reciclado.’

Uma síntese

O processo de categorização é visto dentro de um status cognitivo e lingüístico, com características de instabilidade onde se estruturam lingüisticamente os objetos de discurso. Com isso, quero reafirmar o estudo dos enunciados jornalísticos nos contextos discursivos. Quero compreender as expressões lingüísticas conforme o uso que delas são feitas pelos enunciados jornalísticos. Fico, portanto, restrito ao que é proferido (o enunciado) como sendo uma preferência (intenção) do locutor (escritor).

Os exemplos de textos jornalísticos que são analisados neste trabalho são retirados do caso que ficou conhecido como Pittagate. As matérias foram selecionadas dos jornais Folha de S.Paulo (FSP), Jornal do Commercio (JC) e das revistas Veja (Veja) e IstoÉ (Ie) no primeiro semestre de 2000.

As denúncias de Nicéa Pitta e seus desdobramentos devem ser situados num contexto de acontecimentos passados e relacionados à administração municipal de São Paulo e seus governantes. Para que o leitor possa entender o contexto dos enunciados, apresento um resumo da carreira política de Celso Pitta de 1987 a 2000. Esta síntese é baseada nos dados publicados pela FSP no dia 25 de março de 2000.

Celso Pitta

Cenário dos acontecimentos – A ligação de Celso Pitta com Paulo Maluf inicia em 1987 quando Pitta assume a direção financeira da Eucatex, empresa familiar de Maluf. Em 1992, Maluf torna-se prefeito de São Paulo e convida Pitta para ser secretário de finanças, cargo que ocupa a partir de 1993. Em 1994, se filia ao PPB, partido de Maluf. Em 1996, Maluf escolhe Pitta para ser seu sucessor. Pitta vence no 2o. turno com 62,3% dos votos válidos. Porém, logo após a vitória, a CPI dos precatórios do Senado acusa Pitta de, na condição de secretário de finanças, ter emitido R$ 3,2 bilhões em títulos para pagar dívidas de R$ 1,9 bilhão, desviando a diferença.

Em fevereiro de 1997 o Banco Central afirma que Pitta fez operações que deram prejuízo de R$ 8,4 milhões a São Paulo, ao vender títulos para corretores a preços baixos e recomprá-los por valores exorbitantes. Em abril de 1997, o Ministério Público abre uma investigação sobre o fornecimento de frangos para escolas da prefeitura (agosto/96 –julho/97) pela empresa ‘A D’oro’ da família Maluf que comprava frangos vivos da ‘Obelisco’, empresa da mulher de Maluf. Este processo foi denominado de frangogate. Em agosto de 1997, a CPI dos Precatórios fala de compra de um Vectra para Nicéa Pitta intermediada por um doleiro e o aluguel de um Tempra para Nicéa pelo Banco Vetor, que negociava precatórios da prefeitura. Ainda em julho de 1997, Pitta tem os bens bloqueados pela justiça, por uma ação motivada pela emissão irregular de títulos públicos para pagar precatórios.

Em 1998, a Folha da Tarde e a FSP revelaram que Pitta havia recebido empréstimo do empresário Jorge Yunes, que somavam R$ 600 mil. A justificativa seria o bloqueio dos seus bens. Em meados de 1998, se inicia o rompimento de Pitta com Maluf. No final deste ano, o chefe dos fiscais da Regional de Pinheiros é preso tentando extorquir R$ 30 mil de um comerciante. Outros fiscais são presos acusados de entregar dinheiro aos vereadores que controlavam as regionais. Em 1999, Maluf perde a eleição para Mário Covas e Pitta afasta os secretários ligados a Maluf. Em março deste ano deixa o PPB. No dia 25 de abril de 1999, Maluf pede desculpas ao leitor por ter recomendado a eleição de seu ex-afilhado político.

Educação: a prefeitura de Maluf e Pitta descumpre a Lei Orgânica do Município que estipula em 30% o percentual mínimo a ser investido em educação. ‘Em maio de 1999, a Câmara vota contra a prorrogação da CPI da máfia, aberta para investigar as irregularidades nas regionais, e contra a abertura de um processo de impeachment de Pitta.

Nicéa: no dia 11 de agosto de 1999, Pitta afasta sua então mulher, Nicéa Pitta, do Centro de Apoio Social e Atendimento por causa de denúncia de irregularidade. Ela ameaça se divorciar. Em 25 de janeiro de 2000, Nicéa e Pitta reaparecem juntos em comemoração do aniversário de São Paulo. Ela fala em reconciliação. Em março, logo após o carnaval, Nicéa diz na Rede Globo que Pitta comprou votos para barrar seu impeachment. É o estopim da crise familiar.

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Jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da UFPE