Saturday, 30 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O resgate de Sancho Pança

Pífio este início do ‘Ano Don Quixote’, tão melancólico quanto a melancólica sátira de Miguel de Cervantes. As aventuras do ‘engenhoso fidalgo’ foram publicadas em janeiro de 1605, há exatos 400 anos, e no mesmo ano reeditadas seis vezes.

Não se trata de homenagear um dos primeiros sucessos editoriais – a Bíblia, graças a Gutenberg, é campeã, imbatível. A omissão é outra: faltou ânimo para evocar, assemelhar, lembrar, entender. Parece que não há garra intelectual para o reencontro com a romanesca e estropiada figura do cavaleiro andante, o sonhador desastrado, herói patético, cruzado sem causas, paladino ridículo e sublime.

Na história da literatura, na grande jornada do pensamento universal e na fabulosa galeria de personagens inesquecíveis ainda não apareceu um que fosse tão caricatural e, ao mesmo tempo, tão instigante. Quixote é o mais popular dos protagonistas, um dos construtores do nosso mundo, está no pódio da tipologia que condicionou o nosso espírito. Ícone. Ninguém o conheceu, pintou, retratou ou filmou, mas aquela esquálida imagem, quase maltrapilha, tomou conta do imaginário de todas as culturas ocidentais.

Daí as sucessivas clonagens em todas as artes e gêneros, tão tocantes quanto o original. O luso-carioca Antônio José da Silva, o Judeu (que agora completa 300 anos de nascimento), antes de ser esganado num auto da fé, usou-o numa ópera de marionetes no Bairro Alto de Lisboa. Richard Strauss deu-lhe voz através de um plangente violoncelo. O Quixote é balé, ópera, musical da Broadway, filme em Hollywood, história em quadrinhos. Breve teremos domquixote ponto com ponto br como endereço de site, blog ou comunidade do Orkut para recontar a atualíssima e veneranda saga.

Escola de samba

Dom Quixote canta, dança, faz rir e chorar. Mais importante: deixou a esfera da onomástica, consagrado como substantivo comum (vários) e adjetivo (vários). Quixotada, quixotismo, quixotice estão dicionarizados; breve, talvez, tenhamos que aceitar o advérbio quixoticamente, mas nenhum neologismo conseguirá reunir em tão poucas sílabas noções tão complexas e contrastantes: delírio e humilhação, audácia e abismo, disparate e engenho, paixão e resignação, triunfo da derrota, ruína gloriosa, batalha sem sangue, quimera inocente.

A magistral criação de Cervantes incomoda, talvez por isso não entusiasme aqui, nos confins do iberismo. A Mancha é muito longe, na outrora exuberante Mata Atlântica onde a utopia disfarça onipotências e a empáfia funciona como paradigma, as desventuras do utopista trapalhão não colam, não pegam bem, perturbam. Com tantos e tão talentosos caricaturistas, a eterna charge da natureza humana parece embaraçar. Compreensível.

Melhor seria resgatar o escudeiro Sancho Pança, relegado injustamente à condição de coadjuvante mas essencial como companheiro e contraponto, antítese e reforço. Baixo, atarracado, às vezes cético, sempre pragmático, meio covarde e, não obstante, fidelíssimo às ilusões do amo. Sancho, com ou sem pança, é mais palatável. Sobretudo porque encarna o povão sofrido, astuto, falastrão, sem tempo para mágoas, de olho em eventuais vantagens caso as fantasias do fidalgo se materializem.

Don Quixote dificilmente renderia enredo de escola de samba mas Sancho pode ser anúncio de cerveja, churrasqueira ou protagonista de uma campanha eleitoral.

O quixotesco ano apenas começou, a temporada de homenagens pode render surpresas, a mitológica dupla tem muito a oferecer. Ela e os moinhos de vento.