Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O sucesso dos vampiros

A escritora que mais vendeu livros em 2009 em todo o mundo é americana, chama-se Stephenie Meyer e tem apenas 36 anos, completados na noite do último Natal. Todos já ouviram falar dela e muitos a leram. Tendo estreado em 2005, já vendeu mais de 42 milhões de exemplares dos quatro romances da série ‘Crepúsculo’. Lançados também no Brasil, quatro deles aparecem entre os dez mais vendidos de Veja: Crepúsculo, Amanhecer, Eclipse e Lua Nova. Em 11º lugar está A Hospedeira.

A editora que publica sua obra no Brasil, a Intrínseca, está com nove livros entre os vinte mais vendidos. E com apenas quatro autores. Além de Stephenie Meyer, publicou O ladrão de raios e A maldição do Titã, de Rick Riordan; Para sempre, de Alison Noë, e A menina que roubava livros, de Marcus Zuzak.

Novas editoras, recentemente surgidas no Brasil, como a Intrínseca, a Sextante, a Novo Século e a Leya, aparecem nas listas dos livros mais vendidos entre editoras de catálogos imensos, como a Companhia das Letras, a Ediouro, a Objetiva e, entre outras, a Record, a maior editora da América Latina.

O fenômeno da hora, porém, é a autora americana, nascida em 1973 numa família de seis irmãos, com curso superior de Letras: Literatura Inglesa, e que resolveu ser escritora. Ela casou-se em 1994, aos 21 anos, e é mãe de três filhos. Nem bem tinha estreado, recebeu um adiantamento de 750 mil dólares.

Obrigações descumpridas

Como se sabe, o adiantamento costuma ser o pomo da discórdia nos contratos dos autores brasileiros. Por norma, os editores nacionais aceitam, porque a isso são obrigados, comprar papel e tinta, pagar digitadores, revisores, diagramadores e gráficos, dar 50% ou 60% a distribuidores, que repassam algo em torno de 30% às livrarias, mas o autor, o primeiro a trabalhar para eles, só receberá em média 10% do preço de capa dos exemplares vendidos do livro que ele escreveu sozinho.

Sem contar que no Brasil, até prostituta agora é profissão reconhecida, mas escritor ainda não. Salvo para pagar impostos, que disso ninguém está livre, já que o Estado, que falha na saúde, no transporte, na educação e na segurança, não falha na arrecadação e vai buscar o imposto até mesmo no confisco das contas correntes, mesmo que sejam salários, deixando ao contribuinte o ônus de provar que aquelas quantias são salários, bens impenhoráveis, o que em muitos casos o Estado já sabe, pois foi ele quem fez o crédito.

Este contexto pode ajudar a esclarecer fenômenos como o de Stephenie Meyer e a entender os livros que mais vendem no Brasil, quase todos estrangeiros.

Os editores desses livros mais vendidos semelham vampiros de grande sucesso. Estão bebendo o sangue de outros editores, que investiram para que eles pudessem ganhar dinheiro. São parecidos também com o Estado brasileiro, que chupa o sangue dos contribuintes, com a promessa de melhorar a vida de todos numa próxima etapa, posterior à arrecadação. E o que vemos? O dinheiro sumir nos numerosos escândalos, enquanto o contribuinte, que já pagou ao Estado, paga de novo se quiser ter saúde (planos privados), estradas (pedágios), segurança (guardas pagos em condomínio, guaritas de quadras etc.), educação (escolas privadas) e outras obrigações do Estado, jamais cumpridas.

Rebaixamento do trabalho

Vampiro é palavra que veio do alemão Wampir, radicada no sérvio ou no eslavônio upir, sanguessuga. Vampiros famosos ostentavam os nomes das localidades onde surgiram, consagrados no cinema e na literatura, de que são exemplos Düsseldorf e a Transilvânia, e entre nós o clássico O Vampiro de Curitiba, do escritor paranaense Dalton Trevisan, já levado ao teatro e ao cinema. Os americanos filmaram Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, com Tom Cruise no papel principal, e agora levam ao cinema também a obra de Stephenie Meyer.

Entendamos também o sucesso dos livros dessa autora à luz de um verso de Belchior cantado por Elis Regina – ‘o sinal está fechado para nós, que somos jovens’ – e da célebre citação de Karl Marx que diz que ‘o capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive somente de sugar o trabalho vivo e, quanto mais vive, mais trabalho suga’. E acrescenta Marx: ‘O vampiro não largará a presa enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue a ser explorada’.

Quem tiver dificuldade de entender o que disse Marx, pergunte a um aposentado sobre quantos salários ele recolheu e quantos passou a receber depois que se aposentou, restando ainda o engima de o aposentado, se voltar ao trabalho, pagar FGTS, INSS, IRPF etc. Para quem ele está recolhendo isso? Para ele é que não é, pois essas quantias ultrapassam em muito as ajudas que ele dá àqueles para quem o sinal está fechado pelo crime de serem jovens, pois já temos avôs criando netos, depois de terem criado os filhos.

É preciso encontrar novos modos de dizer as mesmas coisas, pois nem tudo passa, que é mais ou menos o que se depreende de Os Nomes da História: um ensaio de poética do saber, de Jacques Rancière (Editora da PUC-SP e Pontes Editores), para quem ‘a época democrática e social não é com efeito nem a idade das massas nem a dos indivíduos (…) ela é a idade de uma subjetivação perigosa, engendrada por uma abertura do ilimitado e constituída a partir de lugares de fala que não são localidades designáveis’.

O presidente Lula é o mais claro exemplo do uso do principal recurso dos escritores, a metáfora. Ele encontrou um outro modo simples e claro de dizer o que Fernando Henrique dizia de modo complexo e sofisticado, próprio de um Ph.D, para quem nada é simples, e está fazendo o maior sucesso com a herança bendita que o antecessor lhe deixou, aperfeiçoando-a em muitos casos, sobretudo na cobrança de impostos e na redistribuição deles em forma de bolsas disso e daquilo, que deveriam ser emergenciais, mas que, por rebaixamento do trabalho como valor, vampirizado pelo capital, estão se tornando definitivas.

Quem falha

Talvez os vampiros venham obtendo este tremendo sucesso porque estamos quase todos sendo vampirizados, de um modo ou de outro e, como sempre, estão surgindo escritores que souberam encontrar novos modos de dizer as mesmas coisas.

Eles não são os melhores escritores que temos, do ponto de vista de qualidade literária, assim como nossos governantes não são os melhores no crivo de qualidade política, mas ambas as categorias encontraram novos modos de dizer a mesma coisa e estão encontrando extraordinária receptividade.

Quem está falhando somos nós, intelectuais, jornalistas e homens de cultura, que, pernósticos, achamos que eles estão errados e nós, certíssimos, mas incompreendidos. Temos que encontrar novos modos de dizer para sermos entendidos.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)