Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Os gurus de Curitiba

Dante Mendonça talvez seja mais conhecido como chargista. Afinal, vem publicando seus trabalhos desde 1972. Mas ele é também cronista. E, diferentemente daqueles jornalistas que são também contistas, poetas ou romancistas bissextos, há muitos anos ele assina crônicas diárias em dois jornais: O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná. Já publicou cerca de dez livros, três deles de leitura ou contemplação absolutamente imperdíveis: Álbum de figurinhas, Botecário e Banda Polaca. Mas agora são quatro. Acaba de lançar Curitiba: piores defeitos, melhores qualidades, pela Editora Bernúncia, de Florianópolis.

Talvez por força de suas raízes catarinenses – ele é natural de Nova Trento, terra de Madre Paulina, canonizada pelo papa João Paulo II – o autor possa conciliar o olhar do outro com o olhar dos aborígines, pois ele é quase um deles, como tantos outros, já que o Paraná recebeu tsunamis de imigrantes (Europa, sobretudo) e migrantes (RS e SC, principalmente). Dante Mendonça opera muito bem o distanciamento, que lhe garante isenção nos juízos, e a proximidade, que lhe enseja conhecer bem os temas sobre os quais escreve. Ele pinta e borda, tal é a naturalidade de seu estilo.

Quem ousa criticar?

Faltam palavras? Pois se, faltando traços, eles os inventa, com as palavras talvez possa ser até mais fácil, já que, se não estão ainda na boca de todos, o autor as providencia rapidinho, como fez com ‘guruato’, que ele forma a partir de guru, palavra que os portugueses levaram da Índia para Portugal, para o Brasil e para as nações africanas ainda no século 16, designando mestre espiritual, conselheiro, luminar, exemplo a ser seguido. Mas ele, modestamente, atribui ao escritor curitibano Jamil Snege a criação do vocábulo.

Os guruatos estão representados por figuras solares de suas áreas de atuação, de que são exemplos Dalton Trevisan, na literatura, Sylvio Back, no cinema, e Manoel Carlos Karam, no teatro. Mais tarde, com exceção do primeiro, os outros dois espraiaram-se também em outras direções. Back publicou poesias e Manoel Carlos Karam, romances. Mas então já brilhavam outros sóis, como o poeta Paulo Leminski e o ator Luís Melo.

Com poucas exceções, intelectuais e artistas de Curitiba queixam-se do provincianismo, não apenas da capital, mas de todo o Estado. As críticas que fazem ao seu terrum talvez valham para todas as províncias brasileiras, com exceção do Rio Grande do Sul e da Bahia, estados em que nem bem surge um valor é adotado por todos os locais, que cobrem de cuidados o nascituro, prolongando-os vida afora. E, assim procedendo, tratam como intocáveis aqueles que podem e devem ser examinados com isenção. Quem ousava criticar Erico Verissimo ou Jorge Amado? Ainda hoje é difícil fazer isso no Rio Grande do Sul e na Bahia.

Um talento estabelecido e reconhecido

O escritor Jamil Snege assegura, em citação que Dante transcreve à p. 253, que à medida em que um cineasta, um músico, um intelectual, um artista, um cientista, um homem de cultura, enfim, ou mesmo um esportista obtêm sucesso para além das influências locais, ‘aumenta seu grau de invisibilidade em Curitiba’. Snege exemplifica: ‘Se você é um belo projeto de escritor, alguém tentará convencê-lo de que é melhor, mais lucrativo, ser um redator de propaganda’. Esqueceu-se de dizer que podem passar também, e rapidamente, da persuasão com maus conselhos a descaradas anulações e perseguições.

Outro escritor curitibano, Valêncio Xavier, fixa mais claramente a autofagia de Curitiba, atribuindo-a apenas às esferas oficiais. A cidade inteira lê o escritor detestado – que é lido também por aqueles que o evitam, anulam, perseguem e detestam – e ele não sucumbe à arrebentação. Passada a onda da hora, vêm outras, que também se vão, e quem fica é ele! Se for feito um inventário nacional que use a qualidade como critério, e não as vendas, Curitiba terá representantes em todas as áreas da cultura, das letras às artes plásticas, passando pelo teatro, pela música, pelo cinema, pelo direito, pela arquitetura, pelo urbanismo, pela medicina etc.

Dante Mendonça como que desaparece do livro que escreveu para revelar o talento dos outros. E para revelar a Curitiba que ele adotou como sua cidade e foi por ela adotado. ‘Dia após dia, convivemos com as quatro estações. Saímos de casa com calça de veludo e retornamos com a bunda de fora. Isso a Moça do Tempo não sabe’.

O autor poderia ser mais uma vítima das notórias exclusões processadas pelo eixo Rio-São Paulo. E, se ficasse quieto no seu canto, daria munição a tais indiferenças, tornando-se cúmplice de muitas omissões, como, aliás, fazem muitos daqueles que se queixam, mas não se insurgem contra o estado geral da traição dos poderes locais. Ele, ao contrário, faz charges, faz crônicas, publica livros, movimenta-se, dialoga, compartilha, se expõe e, assim procedendo, revela, com bom humor, o seu talento, que há tantos anos está estabelecido e reconhecido. Wilson Martins, um crítico tão qualificado quanto rigoroso, que, depois de lecionar na Universidade de Nova York, vive recolhido como se a biblioteca de sua casa em Curitiba fosse a sua cela de monge dedicado às coisas do espírito, elogiou o novo livro de Dante Mendonça em sua coluna habitual no Jornal do Brasil, no sábado (25/4).

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)