Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os intelectuais e a imprensa

Esse livro é o terceiro volume de coletâneas que reúnem os resultados das pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais, Sociedade e Política (Gepisp) e por especialistas convidados. [Os dois primeiros volumes resultaram do desenvolvimento do projeto “Os intelectuais, a cidade e a nação, 1870-1930”, coordenado pela professora doutora Magali Gouveia Engel, contemplado com o Edital Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), de 2010: Engel, Magali Gouveia; Corrêa, Maria Letícia; Santos, Ricardo Augusto dos (orgs.). Os intelectuais e a cidade. séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012; Engel, Magali Gouveia; Corrêa, Maria Letícia; Carula, Karoline (orgs.). Os intelectuais e a nação: educação, saúde e a construção de um Brasil moderno. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013. A publicação desta terceira coletânea foi financiada pelos recursos do Auxílio à Editoração (APQ3) da Faperj] Criado em 2010 e cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Gepisp é coordenado pelas professoras Magali Gouveia Engel e Maria Letícia Corrêa, tendo sua sede na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Congregando pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação em História e áreas afins, pertencentes a instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro e de outros estados, as atividades realizadas pelo referido grupo – pesquisas, [Além das pesquisas desenvolvidas individualmente como monografias de final de curso de graduação, dissertações de mestrado, teses de doutorado, projetos de pós-doutorado e investigações patrocinadas por bolsas de produtividade do CNPq e de prociência da Uerj, os integrantes do Gepisp encontram-se também envolvidos na realização do projeto coletivo intitulado “Trajetórias e sociabilidades intelectuais no Rio de Janeiro (1870-1945): uma biografia coletiva”, coordenado pelas professoras Magali Gouveia Engel e Carolina Vianna Dantas.] grupos de estudos, seminários e simpósios – encontram-se centradas nas investigações das relações entre os intelectuais, a sociedade e a política no Brasil dos séculos XIX e XX, sob diferentes enfoques teórico-metodológicos. Entretanto, as concepções de Antonio Gramsci, Walter Benjamin e Pierre Bourdieu em torno dos intelectuais e temáticas afins têm sido objeto privilegiado das reflexões desenvolvidas pelos integrantes do Gepisp, conforme se torna evidente em alguns capítulos desta coletânea.

Um dos espaços privilegiados para apreendermos tais relações é a imprensa. Conforme ressaltou Norberto Bobbio, “o aumento daqueles que vivem não apenas pelas ideias, mas também das ideias, deveu-se à invenção da imprensa e à facilidade com que as mensagens transmissíveis por meio das palavras podem ser multiplicadas e difundidas” [Bobbio, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Unesp, 1997, p. 120]. O próprio sentido do termo intelectual referido não apenas à cultura e à instrução, mas também ao engajamento nos embates políticos, tem origem no episódio que ficou conhecido como o Caso Dreyfus, quando o termo aparece na língua francesa. Escritores de grande prestígio, como Marcel Proust e Émile Zola, posicionaram-se em defesa da revisão do processo que condenou o capitão do exército francês de origem judaica Alfred Dreyfus à prisão perpétua, acusado de traição, assinando o “Manifesto dos intelectuais”, publicado no diário Aurore em 14 de janeiro de 1898. Quatro meses depois, o panfleto assinado por Zola, intitulado “Eu acuso!”, era divulgado em uma edição especial do mesmo jornal, que em poucas horas vendeu em torno de 300 mil exemplares. Consolidava-se, assim, a manifestação de repúdio a uma postura antissemita e às suas implicações. Conforme assinalou Adriana Facina, “o fato de os dreyfusards terem ganhado a batalha da opinião pública conferiu legitimidade à intervenção política específica do intelectual” [Facina, Adriana. Literatura & sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 36-37].

No Brasil, a imprensa acompanhou bem de perto todo o processo de constituição e de consolidação do campo intelectual ao longo do XIX, desempenhando papel fundamental no processo de profissionalização das atividades intelectuais, com o surgimento da chamada grande imprensa na virada para o novo século. É nesse contexto que a militância dos intelectuais brasileiros se fortalece e se torna cada vez mais legítima, ao se manifestar e se posicionar em relação aos mais diversos assuntos, desde as questões do cotidiano da cidade até os grandes temas que mobilizavam o cenário internacional, através de seus artigos e crônicas. Literatos, médicos, engenheiros, cientistas, educadores discutiam questões relativas aos seus campos de conhecimento, que, então, começavam a se delimitar, ao mesmo tempo que diagnosticavam a realidade brasileira e propunham projetos para o futuro do país.

O capítulo que abre a coletânea, intitulado “A imprensa como tribuna dos intelectuais no século XIX: O Guanabara em defesa da arte e dos artistas nacionais”, de Débora El-Jaick Andrade, trata justamente do papel desempenhado pelos colaboradores da revista literária que circulou entre 1849 e 1855 – especialmente Joaquim Manuel de Macedo, Araújo Porto-Alegre e Gonçalves Dias – na defesa da causa dos literatos e artistas da cidade do Rio, refletindo sobre o lugar desses atores na sociedade escravista.

No segundo capítulo, “A Lei dos Sexagenários nas ‘Cousas políticas’ da Gazeta de Notícias: os embates acerca da escravidão e da liberdade na imprensa carioca (1884-1885)”, Ana Flávia Cernic Ramos investiga com profundidade os debates em torno da aprovação da Lei dos Sexagenários veiculados pela imprensa carioca em fins do século XIX, revelando que intelectuais como Machado de Assis, Valentim Magalhães, José do Patrocínio e Ferreira de Araújo apreenderam a referida lei como uma derrota política. Tal perspectiva, partilhada por muitos abolicionistas, políticos, literatos e jornalista, coloca em xeque a memória da abolição concebida como um processo linear, resultado do desencadeamento das ações políticas, expressa em parte da historiografia especializada e em materiais didáticos destinados ao Ensino Básico.

No capítulo seguinte, “Ler, ouvir música, ir ao teatro e discutir política: a educação das leitoras oitocentistas e os homens de letras d’A Estação”, Daniela Magalhães da Silveira desenvolve uma análise densa e original dos embates travados entre os colaboradores do periódico entre 1885 e 1886, período da publicação do conto “Casa velha”, assinado por Machado de Assis. A autora aborda também as perspectivas das leituras possíveis que se colocavam para o público feminino a que a revista se destinava.

O capítulo quarto, intitulado “Entre a crítica e o deboche: a ‘música nacional’ nas pautas da imprensa no Rio de Janeiro oitocentista (1882-1899)”, de Avelino Romero Pereira, examina detidamente as polêmicas provocadas por Oscar Guanabarino em sua atuação como crítico de música e ópera de O Paíz e do Jornal do Commercio nas duas últimas décadas do século XIX. A partir de “casos pitorescos” e “escaramuças retóricas” que envolveram tais contendas, o autor analisa o papel mediador da crítica publicada na grande imprensa carioca para a viabilização de carreiras artísticas e de projetos estéticos.

No capítulo 5, “Os profissionais da política republicana segundo Olavo Bilac (1897-1908)”, Thiago Roza Ialdo Montilha investiga as representações dos políticos republicanos, construídas por Olavo Bilac em crônicas publicadas no importante jornal carioca Gazeta de Notícias entre 1897 e 1908. Ressaltando o comprometimento do poeta jornalista com as questões políticas do seu tempo, desde a juventude, quando se engajou nos movimentos abolicionista e republicano, o autor pretende contribuir para o questionamento de interpretações bastante consolidadas que definem Bilac como um intelectual comodamente estabelecido em uma torre de marfim. Por outro lado, a análise revela também as complexidades e as ambiguidades dos posicionamentos políticos assumidos pelo cronista, impossíveis de ser compreendidos em esquemas simplificadores.

A seguir deparamos com o texto fundamental de Tania Regina de Luca, intitulado “O jornal literário Dom Casmurro e a condição do intelectual”, que constitui o sexto capítulo desta coletânea. Nele a autora nos leva a refletir sobre o lugar ocupado pelo intelectual brasileiro num período em que, especialmente entre 1937 e 1945, proliferaram as iniciativas do governo Vargas no âmbito da cultura, ampliando as possibilidades para a participação de segmentos da intelectualidade em entidades estatais. Para tanto, realiza uma investigação minuciosa e aprofundada do jornal literário Dom Casmurro, que circulou na cidade do Rio entre maio de 1937 e dezembro de 1946, desvendando as características específicas do perfil da publicação. Assim, através da análise dos editoriais e das redes de sociabilidade, entre outros aspectos, Tania desvela a complexidade dos posicionamentos assumidos pelo periódico no campo político, bem como as características que marcaram a sua inserção no mundo intelectual.

No capítulo 7, “A modernidade na pena de uma literata juiz-forana (1939 a 1973)”, Rita de Cássia Vianna Rosa analisa as crônicas publicadas pela mineira Cosette de Alencar no jornal Diário Mercantil, que circulou na cidade de Juiz de Fora entre 1912 e 1983, tendo integrado o Grupo dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. O objetivo da autora se orienta no sentido de refletir sobre os modos pelos quais Cosette apreende e vivencia a modernidade que a partir da Segunda Guerra Mundial se difundiria por todo o mundo. Vale destacar que a abordagem adotada por Rita privilegia a percepção das sensibilidades produzidas pela escrita de autoria feminina em torno da modernidade, do moderno e da modernização.

O oitavo capítulo, de autoria de Carlos Roberto Torres Filho, “A Revista Brasileira de Direito Aeronáutico: uma ‘janela’ para a institucionalização do setor aeronáutico no Brasil (1950-1960)”, se orienta no sentido de buscar compreender o processo de constituição da Sociedade Brasileira de Direito Aeronáutico, criada em 1950, como espaço legítimo desse campo de conhecimento que então começava a se definir, bem como instrumento para a viabilização das demandas reivindicadas pelos segmentos envolvidos nas atividades aeronáuticas no Brasil no âmbito do Ministério da Aeronáutica, das companhias de aviação civil e dos profissionais do Direito. O autor examina o papel desempenhado nesse sentido pela Revista Brasileira de Direito Aeronáutico, o “cartão de visita” da SBDA, considerado órgão oficial de propaganda das concepções defendidas pela referida instituição.

Esperamos que os trabalhos aqui reunidos, através de suas diversas temáticas e problemáticas e de diferentes abordagens teóricas, possam contribuir para o aprofundamento da compreensão das relações entre os intelectuais e a imprensa no Brasil dos séculos XIX e XX.

Sobre as organizadoras

>> Magali Gouveia Engel é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora adjunta no Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-Uerj), é também colaboradora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). É autora de Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios, Rio de Janeiro, 1830-1930 (Editora Fiocruz, 2001) e Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (Brasiliense, 1989). Também organizou várias coletâneas.

>> Flavia Fernandes de Souza é mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutoranda no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação Para casa de família e mais serviços recebeu menção honrosa do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (2010).

>> Natália de Santanna Guerullus é mestre e doutoranda no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua tese de Mestrado foi publicada com o título Regra e exceção: Rachel de Queiroz e o campo literário dos anos 1930 (Editora 7 Letras, 2013).