Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os jornais e a crise republicana

O poder de Pinheiro Machado, senador e vice-presidente do Senado Federal, é uma dessas situações ainda não totalmente esclarecidas na História do Brasil, por mais que tenham sido esquadrinhados documentos e mudadas perspectivas de abordagem.

Há um dado concreto: o monopólio mineiro-paulista do poder, como dizia Afonso Arinos de Melo Franco, desde que Campos Sales instituíra a ‘política dos governadores’ ou ‘política dos estados’. Esta que fora uma solução episódica para garantir o apoio parlamentar de um governo recém-instalado em 1898 e que fizera duras concessões materiais para conseguir a renegociação da dívida externa, o funding loan, tornou-se uma espécie de solução política permanente para o equilíbrio institucional que a República ainda não havia conseguido. Desde a queda do Império tinham existido dois governos de militares, um deles nitidamente ditatorial por algum tempo, e o governo instável de Prudente de Morais.

A ‘política dos governadores’ surgiu como uma solução que equilibrava institucionalmente o país, com os ‘grandes estados’, Minas Gerais e São Paulo, revezando-se na presidência da República e deixando os políticos estaduais inteiramente nas mãos das oligarquias regionais, onde acabariam compondo-se as diferentes facções ou frações dessas oligarquias. No âmbito municipal repetia-se o esquema, garantindo assim nas três esferas do recém-criado estado federal a funcionalidade do modelo oligárquico.

Como um dos subprodutos dessa ‘política’, criou-se de fato uma hierarquia de estados principais – os citados –, de estados médios (como o Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco) e a corte de pequenos estados. Se os primeiros exerciam o rodízio no exercício da presidência e com freqüência controlavam os postos tidos como mais importantes, aos segundos cabiam a vice-presidência e os ministérios e aos últimos apenas estes. Uma rápida consulta na lista de presidentes, vice-presidentes e ministros confirma esta percepção, sem necessidade de maior comprovação estatística.

As exceções – Hermes da Fonseca presidente em 1910, Epitácio Pessoa em 1919 – confirmam a regra, pois evidenciam crises inter-oligárquicas já bastante estudadas na historiografia do tema.

Figura excêntrica

Como, pois, nesse contexto, o líder de um estado ‘médio’ como Pinheiro Machado chegou a ter o poder que teve? Como teve condições de controlar a comissão de verificação de poderes, instrumento que homologava – ou rejeitava – os resultados das eleições parlamentares e por isto tornava-se instituição-chave na operacionalização da política de governadores? Como foi capaz de, no governo Afonso Pena, enfrentar o chefe de estado e sua liderança parlamentar, representada pelo jovem deputado Carlos Peixoto, no que se poderia chamar o conflito entre o ‘morro da Graça’ (residência de Pinheiro Machado, no bairro carioca de Laranjeiras) e o ‘Jardim de Infância’ (como era depreciativamente conhecido o bloco parlamentar de Peixoto)? Como conseguiu manobrar em 1910 para fazer o presidente da República fora do rodízio tradicional, mas mantendo como vice-presidente o mineiro Wenceslau Brás – o que já é uma pista? Como conseguiu levar avante a ‘política das salvações’, que, apesar da altissonância das palavras, revelou-se antes de tudo a derrubada de oligarquias em vários estados, substituindo-os por outras, inclusive afetando em alguns locais adeptos seus?

Como finalmente, conseguiu ter contra si, no início do governo Wenceslau Brás, já restabelecido o rodízio tradicional, a então escassa opinião pública, imobilizada por uma das mais eficazes campanhas de mídia empreendidas no Brasil, a ponto de seu assassino ter atribuído à influência dos jornais a decisão de matá-lo?

São indagações que freqüentemente vêm à mente, quando se pensa no meteoro político Pinheiro Machado, fruto maduro de uma oligarquia sólida, a sul-riograndense, mas que poderia ter sido apenas uma figura excêntrica na política nacional, pelo peso político atribuído a seu estado.

Não foi, entretanto, essa figura excêntrica que se poderia esperar, mas ao contrário, fortemente cêntrica, pelo menos entre 1902 e 1915, realizando no plano nacional o que outras lideranças do Rio Grande do Sul – Osório, Silveira Martins, Francisco Glicério – tentaram e não conseguiram.

O trabalho da historiadora Vera Lúcia Bogéa Borges responde a algumas dessas questões com extrema proficiência.

Rigor metodológico

A partir do estudo das relações políticas e da ação de Pinheiro Machado, sobretudo no período 1909-1915, a autora constatou o papel do legislativo federal como um locus privilegiado de poder, e, nele, as hábeis ações do político gaúcho buscando ‘um espaço de poder alternativo a Minas Gerais e São Paulo’.

O livro, que se inicia pela morte de Pinheiro Machado e sua repercussão na imprensa da capital federal, faz um outline da evolução republicana até o governo Afonso Pena, detendo-se na análise do sistema eleitoral republicano, para concentrar-se nos anos de 1914-1915, isto é, da campanha eleitoral que levou Wenceslau Brás á presidência até o assassinato do político.

A conclusão da autora deixa claro o peso da imprensa na formação da opinião pública, pelo menos da cidade do Rio de Janeiro – afinal, José Veríssimo não dissera pouco antes que a ‘opinião pública é a opinião que se publica’? Ademais, avaliou o significado do Partido Republicano Conservador como instrumento de legitimação do poder de Pinheiro Machado, num país marcado pelas agremiações políticas estaduais, e não nacionais, e o significado ambíguo da ‘política das salvações’, que acabaria por afetar alguns de seus aliados. Por último, delineou as concepções políticas do biografado, como auto-proclamada personificação do republicanismo (vício que vinha dos políticos da Revolução Francesa, com sucessivos avatares) e defensor de estados federados fortes com reduzidos poderes residuais à União.

Vera Borges, mais um produto da nova geração de historiadores oriundos da pós-graduação, trabalhou com rigor metodológico, precisão conceitual e amplo domínio de fontes, entre as quais destacam-se a correspondência de Pinheiro Machado, Afonso Pena e Rui Barbosa, o processo-crime do homicídio, além dos Anais do Congresso Nacional.

O livro Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915), originalmente dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi aprovada em parecer do Presidente da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, embaixador João Hermes Pereira de Araújo, constituindo-se o volume inicial de publicações que pretendem divulgar estudos de pesquisas originárias da produção universitária brasileira.

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Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro