Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os sentidos da novela

Não está apenas na imprensa a conformação dos humores do país sobre seus rumos políticos. É verdade que a opinião pública se processa, atualmente, pela dinâmica dos chamados meios de comunicação, mas não apenas por aquilo que entendemos como notícias, informações e opiniões que aparecem nos jornais, nas revistas e nos noticiários de rádio e de televisão, além da internet. Muito do que os brasileiros sentem e pensam é consolidado nos programas de auditório, nos humorísticos e, de modo destacado, nas telenovelas. Mesmo assim, por desatenção ou despreparo, quando processam suas ‘análises de mídia’, governos e partidos ainda não levam em conta o que aí se passa. Dessa forma, não perdem apenas uma parte dos sentidos que atravessam e direcionam o debate político – perdem o essencial.


Os programas de auditório e os humorísticos refletem de modo preciso os limites de respeito coletivo por certos personagens da cena política. O modo como são representados ou como são tratados diz mais do que o noticiário sobre a credibilidade de todos eles. Achincalhar um governante só é admissível quando há espaço para isso no imaginário nacional. O grau de ironias verificado nessas atrações de TV indica a quantas anda não apenas a popularidade, mas a respeitabilidade de cada um.


Para que se tenha uma idéia do que isso significa, tomemos como base um caso extremo: o tratamento que recebe, ou não recebe, uma figura como o papa. Não se concebe que ele seja destroçado moralmente num esquete cômico ou num desses debates de celebridades que vez por outra se reúnem diante das claques adestradas dos auditórios televisivos. A razão é simples: o público rejeitaria, com indignação, qualquer atitude que fosse vista como desrespeito ao papa. É nesse sentido que aquela programação de TV normalmente entendida como reles entretenimento é um indicador dos humores nacionais. Essa programação, portanto, deveria ser objeto de estudo pelos que procuram entender as relações entre a comunicação social e a consolidação dos valores, das preferências e dos sentidos políticos que predominam no debate público.


O entretenimento e a opinião pública


Dentro do amplo cardápio do entretenimento, a novela ainda é o termômetro principal. E, entre todas as novelas, a que é veiculada às nove da noite, pela Globo, ainda desponta como a instituição central. Não há exagero no uso dessa palavra, instituição. Assim como o telejornal se firmou como instituição do imaginário pátrio, a novela das oito (ou das nove) é sua contrapartida no campo da ficção. Se ao noticiário cabe abastecer o público de informações imediatas, compondo diariamente a narrativa dos fatos – narrativa que, posta em seqüência diária, vai estabelecendo pólos morais na cena pública, com seus mocinhos e seus vilões de ocasião –, cabe à novela tecer a narrativa mais profunda, humanizando, por assim dizer, cada um desses pólos.


Lembremos, a título de exemplo, um caso clássico. A novela Rei do Gado (exibida entre 1996 e 1997) foi a principal responsável por dar aos trabalhadores sem terra uma face humana. Os telejornais, àquela época, se ocupavam pouco dos conflitos agrários; coube à novela dar a dimensão afetiva, mais próxima do telespectador, daqueles personagens, até então sem rosto, do movimento dos sem terra.


A novela produz familiaridade entre a audiência e os temas da tal vida real. Foi assim com vários desses temas, como os direitos dos homossexuais, a afirmação da mulher, o tráfico de drogas… a lista é grande. A conseqüência dessa complementaridade entre ficção e noticiário na TV é que a primeira fornece os paradigmas profundos sobre os quais o segundo vai assentar as informações ligeiras.


Voltando ao Rei do Gado, é possível que, ainda hoje, um telespectador que receba uma notícia sobre os sem terra vá associá-la, no fundo de sua memória, a um personagem da novela de Benedito Ruy Barbosa. Assim, com o auxílio do repertório que lhe foi servido pela novela, comporá seu retrato mental sobre o que se passa. A isso, bem a propósito, Walter Lippmann chamava de ‘estereótipo’. Assim é que a novela consolida os estereótipos e, sobre eles, o noticiário deita informações.


O dueto entre a novela e o noticiário


A despeito de todas as transformações tecnológicas que vivemos de dez anos para cá, o dueto entre ficção e noticiário, tão próprio da TV brasileira, permanece fundamentalmente inalterado. Agora, quando nos aproximamos do final de mais uma novela das oito (ou das nove), A Favorita, temos aí mais demonstrações do vigor desse mesmo e velho mecanismo. No capítulo que foi ao ar na noite de segunda-feira (5/1), tivemos nada menos que a celebração de um pacto capital-trabalho pela recuperação da massa falida de Fontini. Irene (Glória Menezes), viúva do comandante da grande empresa, endividada depois de um desfalque criminoso, firma com o líder sindical Copola (Tarcísio Meira) uma aliança operário-patronal para reerguer os negócios, sob o aplauso dos empregados, aos quais foram prometidas ações, lucros e dividendos tão logo as coisas melhorem.


O que viabiliza a aliança? Ora, o amor. Irene e Copola têm uma história de amor não resolvida, que se arrasta desde a juventude. Agora, com a viuvez dela e o divórcio dele, ambos se reaproximam num romance outonal. No melodrama, como se sabe, o amor romanesco tudo pode. O curioso é observar no melodrama brasileiro como essa fórmula sabe se alimentar de elementos das tensões reais do país. Nos tempos atuais, de intensa globalização cultural, é cada vez mais difícil se falar em ‘caráter do brasileiro’ ou em categorias análogas, mas não deixa de ser revelador que ainda lidamos, no plano do imaginário, com soluções mais ou menos cordiais para os impasses sociais. Mais que cordiais, amorosas – e, mais que amorosas, melodramáticas. Têm a ver com isso os apelos lacrimosos que abundam nas propagandas políticas durante as temporadas de eleições.


No mais, A Favorita foi uma boa novela. Mais que reeditar e atualizar os cânones do gênero, trouxe inovações, algumas audaciosas e arriscadas. A principal foi o embaralhamento das funções de bem e mal. No início da trama, Flora (Patrícia Pillar), representava a vítima. Tudo levava a crer que ela fora condenada injustamente pelo assassinato de seu marido. Flora passou anos e anos na cadeia pagando por um crime que teria sido cometido por Donatela (Cláudia Raia), que se mostrava frívola e ambiciosa, ainda que afetada em seus cacoetes sentimentais.


Mais para ao meio da história, as coisas começaram a se inverter. Flora, depois de desbancar Donatela, começou a se revelar a verdadeira criminosa – foi ela quem matou, de fato, o marido – e sua rival, contra todas as aparências, é que era a boazinha autêntica. À medida que caminhamos, agora, para o final da trama, as peças vão se pondo em seus devidos lugares – a aliança operário-patronal, firmada sobre o alicerce do amor melodramático, pavimenta o caminho do happy end e, ao que parece, os bonzinhos vencerão, mesmo tendo sido capazes de algumas maldades.


O embaralhamento entre o bem e o mal


A Favorita inovou ao explorar as ambigüidades nos mocinhos e nos bandidos, superando, em parte, o maniqueísmo do qual raramente as novelas conseguem escapar – ou, ao menos, não conseguem escapar sem se divorciar da audiência. Esse embaralhamento aproxima ainda mais a trama de ficção, ainda nos marcos do melodrama, das armadilhas daquilo a que chamamos ‘vida real’. Dá mais potência representativa à novela. Ela parece instalar, dentro dos estereótipos firmados pela ficção, uma espécie de luzinha de alarme, como se dissesse: cuidado, telespectador, nem tudo que está posto é o que parece ser; até mesmo aquilo que fala incessantemente em nome do amor e da boa-fé pode ser uma impostura. A Favorita vem, enfim, para valorizar a chama da desconfiança permanente. É interessante.


Há muito a se comentar sobre A Favorita a partir dessa inovação, mas não tratarei disso aqui. Só o que pretendi foi alertar, uma vez mais, para os nexos estruturantes entre a ficção e o noticiário na TV, que passam ao largo das análises em voga. No mais, talvez caiba registrar que Patrícia Pillar no papel de vilã, ela que foi a grande mocinha do Rei do Gado, uma Cinderela sem terra, e que agora resplandece como a face do ‘mal absoluto’, no dizer de uma das personagens, terá agido mais do que se pensa sobre as disposições do eleitorado para a próxima corrida presidencial. Mulher de Ciro Gomes, um dos nomes cotados para se candidatar à presidência, ela chama para si (e, de modo indireto, para ele) o signo da perfídia. Caso Ciro Gomes venha a se candidatar de fato, Patrícia Pillar não será a companhia ideal para acompanhá-lo nos palanques. A ver.

******

Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP