Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pauta pró-governo da TV Cultura é criticada no ar


O Estado de S. Paulo, 17/2


Gabriel Manzano e Roberto Almeida


Pauta da TV Cultura é criticada, no ar, por ser favorável ao governo


Por cerca de três minutos, os telespectadores do Jornal da Cultura, transmitido de segunda-feira a sábado pela TV Cultura de São Paulo, puderam assistir, na noite de terça-feira, a uma cena praticamente inédita na televisão brasileira – alguém criticar, ao vivo e em cores, o próprio noticiário que estava sendo levado ao ar, qualificando uma reportagem de ‘merchandising’.


O episódio ocorreu quando a apresentadora Maria Cristina Poli perguntou aos dois comentaristas do jornal, Demétrio Magnoli e Eugênio Bucci, o que achavam de uma reportagem exibida, que exaltava várias realizações da Secretaria da Saúde paulista, incluindo uma entrevista do secretário Guido Cerri.


‘Eu fiz jornalismo e aprendi que notícia, quando se trata de governo, é uma coisa prática, já adotada. Notícia é quando o governo tomou uma atitude, não quando diz que vai fazer alguma coisa’, disse Magnoli.


A apresentadora estranhou: ‘Você está criticando a matéria, Demétrio?’ A resposta: ‘O que estou dizendo é que isso parece merchandising do governo’. Com a naturalidade possível, ela voltou-se para Bucci, perguntando-lhe se concordava. ‘Eu concordo sim’, avisou o comentarista. ‘É importante ter claro que o protagonista de notícia é o interesse público. Ou então, uma medida que modifica a realidade. Mas intenções não têm esse poder.’


Cristina ameaçou outra pergunta, mas Bucci foi em frente: ‘Elas (as intenções) podem criar uma expectativa que não será confirmada. Deve-se usar o jornalismo mais para cobrar o poder do que para promover suas ações.’ A apresentadora empenhou-se em defender a reportagem: ‘Vocês não acham que a cobrança só é possível quando isso é divulgado?’ Magnoli manteve a crítica: ‘Todos os atos de governo são públicos. O que se pode fazer é ir lá daqui a seis meses e saber se foi feito’. E ela, encerrando: ‘Sim, isso é jornalismo.’


Em frente. Num esclarecimento sobre o episódio, a TV Cultura defendeu ontem o ‘formato mais analítico’ do jornal, que ‘tem como principal proposta o debate, com diferentes pontos de vista dos convidados’. Adiantou que os dois comentaristas ‘permanecem no telejornal, expondo sempre suas opiniões com total liberdade’.


Magnoli concorda com a explicação. ‘Aceitei participar do programa justamente por causa dessa inovação’. Ele considera ‘um acerto’ o jornal mandar para o ar uma crítica a uma notícia que acabava de ser exibida: ‘Acho ousada a proposta de se convidar comentaristas que possam criticar até o próprio jornal’.


Propaganda oficial. A reportagem sobre saúde, que foi definida como ‘merchandising’ pelos dois convidados, proclamava que ‘a ideia é oferecer serviços de qualidade, para impedir que (os doentes) venham para a capital’. O secretário Guido Cerri afirmava, na entrevista que encerrava a matéria, que ‘cada região tem de ter recursos para atender a todos os pacientes’.


O problema, diz Magnoli, é que os governos ‘tendem a tentar usar as tevês públicas para fazer propaganda oficial. Mesmo não sendo uma prática corrente da televisão, algumas dessas pautas acabam passando. Foi o que aconteceu.’


Para ele, faltou dizer, naqueles três minutos do debate sobre a reportagem, que a publicidade dos atos de governo é feita pela publicidade estatal, ‘o que é um assalto inconcebível ao bolso dos consumidores que pagam altos impostos’.


 


 


Veja Online (AFP), 16/2


Brasil mantém tradição de controle de opinião e é recordista de notícias censuradas no Google


No primeiro semestre de 2010, o Google foi obrigado por autoridades brasileiras a retirar do ar 398 textos jornalísticos – recorde mundial para o período, e o dobro do número ostentado pelo segundo colocado na lista, a Líbia, uma ditadura. O dado consta do relatório do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), divulgado nesta terça-feira, em São Paulo. Os dados também mostram que, às vésperas das eleições 2010, juízes brasileiros emitiram 21 ordens de censura, segundo pesquisa realizada pelo Centro Knight para o Jornalismo, do Texas (EUA). Os números chocam, mas não surpreendem. Afinal, o Brasil vem alimentando o mau hábito de manter algum tipo de controle sobre a circulação de ideias – prática que fere a liberdade de expressão também na internet.


‘Esse quadro mostra que a censura e a autocensura, que vem junto, estão atingindo níveis muito sérios no Brasil’, disse Carlos Lauria, coordenador do CPJ, que veio ao país apresentar o levantamento Ataques à Imprensa em 2010, segundo a Agência Estado. Ele apresentou ainda texto sobre a situação da imprensa na América Latina. A censura ao jornal O Estado de S. Paulo, que nesta quarta-feira chega ao 565º dia, é o destaque do levantamento. ‘É espantoso que, num país como o Brasil, um dos maiores jornais seja proibido de noticiar um grande escândalo, que envolve figuras políticas conhecidas. Não consigo imaginar o Washington Post sendo proibido de publicar algo sobre um ex-presidente americano’, disse ele.


O alerta sobre a censura na rede é oportuno. Está nas mãos do governo o projeto que prevê o estabelecimento do Marco Civil da internet, que pretende disciplinar a rede, prevendo direitos e deveres de cidadãos, provedores de acesso e Justiça. Como mostrou reportagem de VEJA, não contramão da via democrática, o texto prevê que seja oficializada a prática judicial brasileira de retirar do ar conteúdos supostamente ofensivos a terceiros. Para isso, basta um pedido à Justiça. Seria, assim, mantida a tradição nacional de manter algum tipo de controle de opinião. Em outras palavras: embora a publicação de qualquer conteúdo esteja salvaguardada pela Constituição, o que afasta a censura prévia, a Justiça manteria a prerrogativa de determinar a retirada de textos, fotos, vídeos e outras formas de expressão da rede – o que configura controle posterior.


Enquanto o Marco Civil não vem, os juízes se apoiam no Código Civil para retirar um conteúdo de circulação. O trecho da lei prevê que ‘(…) a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade (…).’


A situação é bem diferente em nações com ampla tradição de garantia à livre circulação de ideias. É o caso dos Estados Unidos, insuspeitos quanto à aversão à censura. O artigo 230 do Communications Decency Act (CDA), lei que estabelece responsabilidades na internet, proíbe a retirada do ar de conteúdos em caso de difamação, calúnia ou invasão de privacidade. Nessas situações, cabe apenas punição financeira. Fica evidente que a liberdade de expressão é um pilar tão fundamental da democracia americana que nada deve miná-lo. É um bom exemplo a ser seguido aqui.