Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade

O compromisso essencial deste livro é analisar mutações de uma época de comunicação generalizada e em rede, na qual a vida social, as mentalidades, os valores e os processos culturais parecem definitivamente vinculados a telas, monitores e ambientes virtuais.

‘Somos dependentes de estímulos externos: as mensagens que chegam no celular, o iPod, as conversas pela Internet, a sensação perturbadora de que muitas pessoas só conseguem abolir a solidão no MySpace, no Facebook ou no Twitter’, resume um atento observador de oito décadas: Zygmunt Bauman [Zygmunt Bauman em entrevista a Karla Monteiro, ‘Estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe é correndo atrás de quê’, O Globo, Rio de Janeiro, 26 de abril de 2009]. Os impactos das tecnologias digitais e da convergência entre elas sucedem-se de maneira vertiginosa, influindo em transmissões informativas, experimentações estéticas, comportamentos, identidades, interações, cadeias produtivas, negócios, transações financeiras, rotinas de trabalho, pesquisas científicas, metodologias educacionais e ações sociopolíticas. Gianni Vattimo demonstra argúcia ao qualificar as tecnologias como ‘o órgão dos órgãos, o lugar no qual o sistema tem sua direção tendencial de desenvolvimento’ [Gianni Vattimo. A sociedade transparente. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 25], com a prerrogativa de controlar e regular o repertório de conhecimentos e inovações.

Para isso, acentua Milton Santos, é decisivo questionar os discursos hegemônicos que – com perícia para ocultar seus laços com o império do mercado – almejam fixar no imaginário social a técnica como ‘uma necessidade universal, uma presença indiscutível, dotada de uma força quase divina à qual os homens acabam rendendo-se sem tentar entendê-la’ [Milton Santos. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 45].1Não raro, esses discursos obtêm consentimentos duradouros, porque o alcance de seus fundamentos escapa à percepção imediata e se insinua na banalização do cotidiano, mesclados com a exaltação do consumo como medida de valor e satisfação. Daí a importância de mobilizarmos energias para a ‘análise das estruturas invisíveis’ – expressão utilizada por Pierre Bourdieu ao enfatizar a necessidade de uma intervenção consciente do pensamento crítico contra a força de gravidade do senso comum estabelecido (‘coisas que ninguém vê, mas que é preciso supor para compreender o que se passa’) [Pierre Bourdieu. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 75].

A diversidade informativa

O esforço cooperativo dos nove autores de Mutações do visível resulta em reflexões sobre uma série de pontos que aguardavam por mais iluminação e aprofundamento. Entre eles, incluem-se modelos de mediação na interseção da comunicação de massa com a comunicação em rede; condicionantes da geração de conteúdos no capitalismo tecnológico; incessante circulação de informações, saberes e entretenimentos em condições desiguais de acesso, assimilação e resposta; formas de hegemonia e contra-hegemonia que se defrontam na arena simbólica; concentração monopólica nos setores infocomunicacionais e o requisito da regulação pública; estratégias midiatizadas de celebração e consagração no campo jornalístico; ideologia e representação simbólica no ciberespaço; realinhamentos culturais e educativos nas redes planetárias; e fronteiras de sociabilidade e criatividade no entorno digital.

O conjunto de textos evidencia o protagonismo dos meios de difusão nas disputas de sentido que conformam ou modificam a opinião pública e os consensos, numa época de conectividades, interfaces e interações próximas ou distantes. As páginas seguintes também fazem sobressair a urgência de sistemas e dinâmicas de comunicação que, incorporando usos e benefícios tecnológicos, favoreçam a diversidade informativa, o pluralismo, a humanização da vida, as sensibilidades artísticas, a inclusão social, a participação política e os direitos da cidadania frente às ambições de classes e às instituições hegemônicas.

(*) Professor de Política na Unesp/Araraquara e autor, entre outros, de As possibilidades da política: idéias para a reforma democrática do Estado (Paz e Terra, 1998) e Em defesa da política (Senac São Paulo, 2001)

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Prefácio

Marco Aurélio Nogueira (*)

O reconhecimento de que passamos a viver numa época tomada pela informação e pela comunicação intensiva tem ocorrido de modo sistemático nas últimas décadas. Somos protagonistas de uma sociedade estruturada por uma combinação explosiva de mídia e mercado, tecnologia e democratização, individualismo e conectividade global, em que tudo parece transparente e conhecido, mas onde imperam a incerteza, a dúvida e a ignorância. Uma sociedade de extremos, de riqueza ostensiva e miséria absoluta, de mudanças incessantes que confundem e quebram paradigmas.

Não se trata mais, como antes, de um mundo baseado na comunicação em massa, no qual o incremento de tecnologia e recursos organizacionais possibilitara a difusão em larga escala de informação e outros produtos culturais. Não há somente indústria cultural, nem somente inovação e mudança tecnológica na área da produção e difusão de informações.

Sobre esse patamar, processa-se uma verdadeira revolução em termos de práticas, hábitos e modos de pensar, impulsionando a constituição de uma vasta plataforma de interatividade para empresas, instituições e pessoas. Vivemos numa época em que o acesso à internet rápida se converte em ‘direito fundamental’, como na Finlândia, e chega a 97% das residências, como na Coréia, ou a 90% dos cidadãos suíços. Mas em que existe uma gigantesca massa de pessoas excluídas desse universo, à espera. Somente no Brasil, são cerca de 179 milhões, algo em torno de 94% da população.

Comunicação interpessoal aberta para o mundo

De um modo ou de outro, o impacto dessa situação é enorme, seja em termos de negócios, pressão política e lutas de cidadania, seja em termos de produção cultural, com as mídias físicas (filmes, músicas, livros) sendo substituídas por cópias digitais.

Por ser precisamente assim, esse é um mundo no qual cresceu enormemente a importância do pensamento crítico, aquele que se dedica a superar aparências, a ir além do visível e do senso comum, unificando e descobrindo o sentido do que se encontra desagregado.

A hipótese principal do presente livro é a de que estamos transitando de um modelo comunicacional baseado na comunicação em massa para um modelo baseado na comunicação em rede, no qual os utilizadores interferem de forma decisiva no sistema de mídia. Em vez de difusão de informação, tem-se agora informação compartilhada e gerada por múltiplas fontes, que operam em rede. A migração das tecnologias analógicas para as digitais facilitou decisivamente a multiplicação de interligações entre as mídias, e essas ligações terminaram por ficar ao alcance dos cidadãos, que de algum modo podem delas se apropriar. Não é que desapareçam os antigos formatos de comunicação, como o livro ou o jornal impresso, ou mesmo o rádio, a imprensa falada. A nova estrutura, na verdade, articula de modo diverso esses antigos formatos e ao mesmo tempo facilita o alcance de outros.

Por menos que essa nova estrutura esteja dada – por mais que ela ainda esteja em constituição, ganhando forma e corpo –, seus efeitos, consequências e desdobramentos já estão anunciados e podem ser sentidos na vida cotidiana. Dentre eles, destaca-se a possibilidade concreta de que se passe a viver com um padrão de comunicação interpessoal aberta para o mundo, isto é, com caráter de massa, mediante a qual todos os produtos, audiências, emissores e divulgadores estarão articulados uns aos outros, dos livros e jornais à internet e aos games, da moda à ciência, do design à medicina.

Uma intervenção inteligente

Há, evidentemente, um complicador de peso nessa transição: o mercado, agigantado pela prevalência de um capitalismo que se exacerba e se expande freneticamente, que se impõe sobre tudo e derrama sobre todos, sem exceção, os prejuízos derivados de suas próprias contradições. O mundo da comunicação em rede também é um mundo mercantilizado, no qual a mercadoria se centraliza e tende a contaminar tudo o que dela se distingue, que não lhe segue a lógica férrea e implacável. Mas o capitalismo é mais do que mercado e mais, portanto, do que economia de mercado e mercadoria.

É um arranjo complexo, que envolve empresas, pessoas e instituições múltiplas, e no qual o Estado tem extraordinário relevo. Mesmo prevalecendo sobre tudo e todos, o capitalismo precisa do Estado e da política, e por essa via entra em contato com aquilo que foge de seu controle e o ameaça. Não está destinado a desaparecer sob o peso de seus paradoxos e contradições, mas jamais poderá existir em paz ou sem sofrer contestação, processo esse que abre as portas do futuro e cria uma cunha que separa capitalismo e sociedade, possibilitando a esta última responder criativamente aos desafios impostos pela busca sôfrega de sempre mais produção e produtividade.

Desses desafios – que têm potência suficiente para levar a humanidade ao desaparecimento ou à regressão –, o mais emblemático é o ambiental, o único efetivamente global e universal.

Diante desse mundo assim cortado de dilemas, crises, promessas e contradições, o pensamento crítico e a ação política democrática são chamados a cumprir sua maior missão: investigar, conhecer, explicar a realidade como totalidade, como um todo que contém em si mesmo a possibilidade de uma intervenção inteligente com vistas à construção de um futuro justo e igualitário para todos os humanos.

Republicanizar a mídia

Como sustentam os autores dos artigos contidos neste livro, nossa sociedade tornou-se ‘midiatizada’, na medida mesma em que tudo nela tende a ser delineado e processado pela mídia, pelos meios de comunicação em sentido amplo. Isso vale tanto para a afirmação do capital e dos jogos de poder dos interesses dominantes quanto para a contestação a eles e a proposição de políticas alternativas. Passam pela mídia os esforços de compreensão da realidade e de modelagem de projetos e concepções do mundo com que grupos, classes e indivíduos se apresentam e se identificam. Inevitável, nesse contexto, que se assista a uma recorrente batalha pela mídia, por seu controle, sua regulação e eventualmente seu enquadramento.

Mercado e Estado, cidadãos e sociedade civil estão, assim, obrigados a acertar as contas com um sistema que, de acessório essencial, tornou-se fundamento estratégico e elo principal entre os diferentes pedaços da sociedade.

Como têm observado diversos teóricos da comunicação, hoje há mais midiatização que mediação simbólica, mais tecnomediações que interações a quente, face to face. Os meios de que dispomos para interagir e dialogar, para formar opinião sobre o mundo, persuadir e convencer, até mesmo para expressar sentimentos e proclamar compromissos, parecem não mais existir fora do circuito midiático. O próprio modo de assimilar e traduzir a realidade social – a estrutura econômica, a estratificação, a política, a cultura, os interesses em ação – fica quase por completo referenciado pela mídia.

As lutas e os conflitos que se materializam no terreno da comunicação em sociedades complexas como as nossas não têm por foco exclusivo a democratização das dinâmicas comunicacionais, ainda que esse seja seu ponto mais visível e um item certamente decisivo da agenda reformista. A questão não passa somente pelo estabelecimento de novas modalidades de controle e regulação, por mais que isso seja indispensável. Trata-se, no fundo, de republicanizar a mídia, fazê-la abrir-se de fato para as massas, ser mais do que um negócio, cumprir um papel positivo para todos.

Lideranças carismáticas e salvacionistas

Vista por esse ângulo, a batalha pela mídia é uma causa democrática, que só pode avançar e vencer por meios democráticos. É essencialmente uma batalha de hegemonia, uma luta para que se promovam deslocamentos nos parâmetros políticos e culturais e nas orientações intelectuais e morais mediante as quais as comunidades se organizam e os fluxos de poder se afirmam.

Tem a ver com domínio e direção, consenso e coerção, política e cultura. Rejeita imposições e argumentos de autoridade, que se tornaram particularmente inócuos em sociedades ágeis e ‘líquidas’ como são as desse início de século 21. Trata-se, em suma, de um processo dinâmico, tenso, contraditório, cujos vetores não se estabelecem de antemão e cujo desfecho se distribui num tempo que não se pode pré-determinar.

Numa situação histórico-social de mercado onipresente e capitalismo exacerbado, é fácil perceber o principal efeito perverso dessa centralização da mídia: é que tudo passa a ser por ela ‘ressignificado’ e a ser, assim, reinserido nos circuitos sociais como mercadoria, o que produz um enorme reforço do sistema e dificulta sobremaneira sua contestação propositiva, isto é, não somente sua negação, sua rejeição, mas, sobretudo, sua superação mediante a proposição ativa de outros desenhos de futuro.

Pode-se explicar, a partir daí, o estado quase falimentar dos partidos políticos, em especial os de esquerda, a dificuldade lancinante de se chegar a projetos que unifiquem e dirijam sociedades, grupos e pessoas, os soluços da democracia representativa e a derivação da política para a mediocrização, o desempenho pífio de tantos governos reformadores, o surpreendente protagonismo adquirido por lideranças carismáticas e salvacionistas.

Uma zona de embate crítico

Tudo hoje parece convulsionado e em efervescência, ainda que muita coisa permaneça inalterada e partes enormes da população mundial vegetem num universo de miséria e horror. As sociedades estão a hostilizar a política, que a elas não consegue corresponder. Movimentam-se com pouca densidade cívica, muita autonomia e graves carências republicanas. Não há futuros sendo propostos, como se estivessem todos encantados pela ‘intransparência’ do mundo real e pela diluição de esperanças e utopias. Na base desse processo, porém, continuam a correr os rios da vida, impondo novidades e desafios sem cessar. O visível e o profundo se modificam, para além das telas e dos ambientes virtuais em que nos movemos sempre mais.

Nesse contexto, a figura do intelectual ganha peso e relevância estratégica. Um mundo globalizado, plural, complicado e desafiador precisa ser pensado com rigor, explicado em suas múltiplas determinações e em seus diferentes ritmos, mediante suas distintas racionalidades e sensibilidades, de modo a que não seja concebido como um somatório de fragmentos.

Isso vale especialmente para o intelectual público, que não deseja dialogar somente com seus pares nem se trancafiar em instituições distanciadas dos tormentos e paixões da vida real, mas se dedica a articular o ideólogo, o técnico, o teórico dos princípios abstratos e o educador, a academia, as escolas, os jornais e as praças. Não foi por acaso que Dênis de Moraes, organizador deste livro, dedicou seu ensaio ao marxista italiano Antonio Gramsci, que pensou como poucos a questão da hegemonia e definiu o intelectual como um especialista que também é político e que sabe não só superar a divisão intelectual do trabalho como também reunir em si ‘o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade’.

Tanto quanto a batalha pela mídia, o intelectual público se realiza a partir da perspectiva da política. Não da política como sinônimo de poder ou reserva de caça de ‘profissionais’, mas como campo onde se disputam as ideias a respeito do viver coletivo e onde se define a maior ou menor virtuosidade da convivência entre grupos e pessoas. Esse é o seu ambiente.

Mutações do visível traduz com competência os desafios que o mundo atual está experimentando no estratégico e sempre mais central setor da comunicação e da informação. Há nele uma combinação bem-sucedida de enfoques distintos que buscam convergir para uma mesma zona de embate crítico. São reflexões que privilegiam o que existe de protagonismo da mídia sem descuidar das disputas de sentido e das lutas por hegemonia que atravessam o campo da comunicação. Essa é sua força e nisso repousa sua enorme utilidade.

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Professor da Universidade Federal Fluminense; autor, entre outras obras, de O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia (Rio de Janeiro: DP&A, 2001) e Cultura mediática y poder mundial (Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2006).