Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por um modelo de comunicação democrático

O movimento de concentração dos meios de informação em um número cada vez menor de grupos empresariais não é algo exatamente novo. Como também não é nova a partidarização de grupos midiáticos e o seu envolvimento com golpes de fundo político. Acontece que, no caso Venezuela, tais aspectos ganharam maior dimensão. Entre outras coisas, isso se deve fundamentalmente a que, no atual ciclo da História, os aparelhos informacionais ampliaram em muito o poder que detinham antes de a sociedade ser globalizada e mundializada.

Neste novo estágio histórico, apesar de estarem cada vez menos comprometidos com os interesses da sociedade e mais vinculados a interesses mercadológicos e empresariais, os veículos de comunicação assumem a si mesmos como equivalentes da opinião pública, sendo tanto o seu espaço de manifestação como o seu representante. A partir dessa construção, buscam operar um novo tipo de democracia, que teria como característica principal ser referenciada nos meios de comunicação de massa. A isso se denomina Midiático Poder.

Duas tentativas de golpe

No Midiático Poder, os veículos de comunicação são os ‘representantes’ legítimos da sociedade no debate público, principalmente no que se refere a temas mais relevantes, como os de política e economia. Trata-se, no entanto, de uma substituição operada por esses veículos, estratégia de atuação midiático-política que, tanto no contexto venezuelano como em outros casos que não serão tratados neste livro, quando levada ao extremo, em geral tem sido derrotada. [O caso da eleição de Evo Morales na Bolívia é clássico para desmistificar a tese de que os meios de comunicação de massa são o espaço de representação da opinião pública. Segundo Altamiro Borges, no artigo ‘Eleições e manipulação da mídia’, de 12 de julho de 2006, 87% das notícias veiculadas sobre Evo Morales na mídia local foram negativas e mesmo assim ele venceu as eleições no primeiro turno.]

O insucesso dessas operações, no entanto, não significa que o debate a respeito da democratização dos meios e do direito à comunicação deva ser colocado em segundo plano. Ao contrário, ganha ainda mais importância. Se os intentos de ontem foram fracassados, nada garante que os de amanhã também serão.

Por essa razão, este estudo de caso tem, pelo menos, dois objetivos. O primeiro é o de documentar duas tentativas de golpe ocorridas na Venezuela, uma midiático-militar e outra midiático-econômica. Estas denominações decorrem do entendimento de que, nestes episódios, a mídia se sobrepôs aos outros setores envolvidos em cada uma das ações golpistas, assumindo o seu protagonismo.

‘Terrorismo midiático’

Aliás, é preciso registrar que alguns estudiosos só consideram como tentativa de golpe a ocorrida de 11 a 14 de abril de 2002, ocasião em que o presidente Hugo Chávez chegou a ser deposto e encarcerado. Divirjo deles. Entendo e defendo que, nos meses de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, teve lugar outra investida golpista, mais complexa, mas nem por isso menos totalitária. Com a mídia capitaneando o processo, realizou-se por dois meses uma ação de desabastecimento de bens essenciais de consumo, principalmente para a população mais pobre, combinada com uma paralisação na produção de petróleo – que representa em torno de 50% da arrecadação fiscal do Estado venezuelano – e uma campanha de sonegação tributária. Tratou-se de um golpe midiático-econômico, a meu ver muito mais apropriado, por sua forma, à lógica e às dinâmicas daquilo que os neoliberais convencionaram chamar de ‘capitalismo moderno’.

A advogada venezuelana-estadunidense Eva Golinger registra que, naqueles dias, os meios de comunicação privados realizaram a maior guerra informativa dos tempos modernos. ‘As quatro principais emissoras de TV suspenderam a programação habitual nos 64 dias desse movimento e se eliminaram os comerciais de produtos, as telenovelas, os filmes e os desenhos animados’ [Eva Golinger, El Codigo Chávez, La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 2005, p.120]. Golinger ainda cita um estudo do professor de comunicação Luis Britto García, que calcula em 17.600 o número de anúncios publicitários contra o governo, a favor do movimento golpista e de ‘terrorismo midiático’ veiculados por essas quatro emissoras nos 64 dias de dezembro de 2002 e janeiro de 2003.

A utopia é possível

O segundo objetivo é o de fazer com que o relato deste caso Venezuela chame a atenção para um debate sobre a democratização da mídia e a responsabilidade social dos veículos de informação.

Do ponto de vista do processo de comunicação, este estudo de caso contém uma espécie de ‘agenda implícita’. A denominação pode parecer estranha, mas talvez seja a mais justa, pois este aspecto não fica explícito no percurso do livro. Nesta agenda, destaca-se a necessidade urgente de que os grupos que se autodefinem altermundistas articulem uma rede de comunicação em escala planetária. Com isso em vista, este livro apresenta ao seu final uma lista de sites que hoje permitem um outro tipo de informação. É uma lista inacabada, construída a partir de nossa experiência de pesquisa e da contribuição de amigos e pesquisadores. Essa nova rede informal pode vir a ser o que costumo definir – utilizando-me de uma metáfora do escritor uruguaio Eduardo Galeano – como um bando de marimbondos que, atuando conjuntamente, pode derrotar um rinoceronte. [No primeiro Fórum Social Mundial, em 2001, em Porto Alegre, Galeano utilizou essa metáfora para dizer que os que lutam por um outro mundo possível, embora pequenos, atuando em conjunto poderiam derrotar o modelo neoliberal.]

No caso específico da mídia, seria uma rede de pequenas iniciativas, ampla e não-centralizada, que fosse capaz de se contrapor – pela sua riqueza, diversidade, seriedade e compromisso público – aos grandes conglomerados midiáticos, que estão alinhados a um projeto de mundo neoliberal. Hoje, essa utopia de muitos anos é possível de ser construída por conta dos novos recursos tecnológicos, principalmente (mas não somente) a internet.

Em nome da democratização…

De qualquer maneira, essa ação não pode ser dissociada de um debate sobre o comportamento ético dos aparelhos midiáticos. Os veículos de informação não podem ser livres de responsabilidades. Nem livres para utilizar quaisquer recursos ou métodos para alcançar seus objetivos nos planos político e econômico, seja quando vão a um golpe, seja quando se matam por pontos na audiência.

Devem, sim, ser livres para produzir informação. Devem ser radicalmente livres. Mas precisam responder pelo que produzem, segundo critérios referentes às várias responsabilidades sociais dos diferentes meios informacionais. Veículos que receberam concessões públicas de ondas eletroeletrônicas limitadas devem se reportar a um tipo de estatuto diferente de veículos impressos ou produzidos para internet. Esse é apenas um dos pontos. Há muitos outros.

Construir códigos e legislações que sejam eficazes para garantir a diversidade de opiniões e grupos na distribuição dos aparelhos informacionais e, ao mesmo tempo, impedir que sejam utilizados sem critérios, não é censura. É dever democrático.

É muito difícil enfrentar essa questão. Até porque, em nome da democratização e da garantia da qualidade dos meios, em muitos casos históricos o que se fez foi criar regras para limitar a ação jornalística e editorial e ampliar a participação do Estado no controle e na ação informativa. Esse é um movimento inadequado e tão totalitário quanto o da lógica liberalizante.

Enfrentar desafios

Há muitos caminhos para se chegar a um outro modelo. No caso brasileiro, imagino que um deles poderia ser a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação, com encontros desde os municípios até instâncias maiores. Essa Conferência teria como meta construir um Sistema de Comunicação Democrática – talvez nos moldes do Sistema Único de Saúde, o SUS. Nela seriam debatidos desde o destino dos recursos públicos para a área e os critérios para a classificação da programação da TV aberta, até a limitação da propriedade cruzada em comunicação [‘propriedade cruzada’ ocorre quando um mesmo grupo empresarial tem, por exemplo, rádio, TV e jornal na mesma base territorial, ou quando tem dois ou mais veículos no mesmo segmento]. Finalizados os seus trabalhos, suas definições seriam levadas ao Congresso Nacional para serem base de um novo modelo na área.

Não há dúvida de que se trata de um desafio gigante colocar de pé uma Conferência Nacional de Comunicação, assim como fazer com que seus resultados se tornem leis. Mas, para se construir um novo modelo que permita, aos diferentes segmentos da sociedade, real participação, esse é o caminho que me parece mais adequado, pelo seu modo democrático e sua amplitude.

Mesmo porque melhor é enfrentar desafios como esse do que viver histórias como as que o leitor encontrará neste livro.

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Prefácio

Maurício Ayer

Na Venezuela, duas tentativas de golpe de Estado, entre abril de 2002 e janeiro de 2003. O centro nervoso das disputas é a mídia venezuelana. Aparentemente, estamos falando de eventos locais, de um país dito periférico. Em outras palavras, seria um caso de exceção na ‘democracia global’. Midiático Poder – o caso Venezuela e a guerrilha informativa, do jornalista Renato Rovai, mostra, com precisão e profundidade de análise, exatamente o contrário.

Não só as forças golpistas – que tentaram derrubar um presidente democraticamente eleito – são globalizadas e se estendem muito além das fronteiras da Venezuela, como também os seus ‘métodos de trabalho’ – para dizer dessa maneira – são semelhantes aos utilizados em diferentes partes do mundo. Muitos dos ‘consensos’ propalados durante a década de 1990 usaram a unificação informacional como uma estratégia de primeira importância.

Mas a expansão dos meios eletrônicos não acelerou apenas a globalização de mercados e redes de influência. Também permitiu a mundialização dos movimentos de resistência. A internet – os militares, que a desenvolveram, teriam previsto isso? – evidencia-se como uma rede livre por natureza, um campo aberto para que meios informativos independentes atuem com estratégias de guerrilha – em ataques precisos, mas pulverizados; sem centralização hierárquica, mas com um sentido de luta comum. Hoje, é possível driblar os grandes meios e obter o outro lado da notícia, de maneira rápida e barata.

No caso Venezuela, a ação antidemocrática dos meios de comunicação chegou a tal extremo que se tornou até didática. Conhecer essa história é importante para entender como atuam estes meios e como é possível vencê-los na batalha pela democratização da informação.

É chegado o tempo de o jornalismo recuperar o seu sentido fundamental, a transparência – nos conteúdos, fontes, procedimentos e posições políticas. Esse jornalismo já existe e está circulando de múltiplas formas. Midiático Poder segue este caminho e ajuda a conhecê-lo.

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Jornalista