Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Por uma história crítica da mídia

Um grande filósofo do século 19 escreveu que ler jornal era essencial para um bom café da manhã (não havia web). Era uma época otimista: as Luzes fariam do mundo um lugar melhor e os jornais eram um dos suportes desta iluminação, formadores da opinião pública, imparciais, objetivos, independentes. O século 20 cuidou de acabar com o mito de uma Razão invencível e o novo milênio parece também não ter começado muito bem. Fantasmas rondam este mundo: crise, novas tecnologias, novos modelos, menos leitores, mais crise. Nisso tudo, há lugar para o jornalismo? Se sim, qual é o papel do jornalista? A web mudou tudo? Esta necessidade de jornais e jornalismo, ela vem do quê? Pra que jornalismo, afinal?

Vá lá saber, mas como as bruxas da anedota, o jornalismo existe, está aí, é mecanismo essencial do nosso modo de vida, e não há como subestimá-lo, até porque jornalismo implica em representar, em falar sobre, e o mundo moderno é um mundo de representações. Não só isso: o jornalismo é um discurso que pretende sempre ser verdadeiro, qualquer que seja a definição de verdade. Jornalistas não se veem do lado do mal e do engano (e nem são vistos assim), abominam o erro e justificam seu trabalho como um bem social. Nesse sentido, jornais, jornalistas, o jornalismo, estão indissoluvelmente ligados à noção de ética, ao conhecimento do bem e a praticá-lo. Não são só necessários, são ‘bons’. Será?

Essa é aquela pergunta chata, que talvez fosse de bom tom não fazer, mas ninguém que leve o jornalismo e o ofício do jornalista a sério pode deixar de fazê-la. Ética, Jornalismo e Nova Mídia – Uma Moral Provisória leva o ofício a sério. Seu autor, o jornalista e professor Caio Túlio Costa, foi um dos ‘jovens turcos’ que no início dos 80 participaram do chamado ‘Projeto Folha’; mais do que isso, foi um dos líderes do processo – e o primeiro ombudsman do jornal. No fim dos 90, ele se recriou como um dos ‘pais fundadores’ da web no Brasil. Tem uma carreira importante, marcada por sucesso e polêmicas. Pode-se desgostar do que diz e faz, mas é difícil não reconhecer seu senso de oportunidade. O livro é mais uma prova disso. A Crise de 2008 e o mundo em rede nos obrigam a pensar no tema da relatividade moral do jornalismo. De novo. E de forma diferente do que havia sido feito em outras situações.

Imprecisão e incerteza

Costa pensa difícil. Para complicar ainda mais a vida do leitor, escolheu o caminho da história do pensamento e da arte para expor seus argumentos, percurso interessante, sem dúvida, mas árduo e cheio de obstáculos. O livro trata das relações entre ética e jornalismo, indo de Sócrates a Stiglitz, de Epicuro a Kant, de Descartes a Sartre (e mais algumas dezenas de autores e personagens). Há que se ter tempo (e leitura) para atravessar o mar de citações e referências, ‘momentos em que a questão moral encontrou definições capazes de iluminar condutas’, que servem para montar uma história (hiper) crítica da mídia como um lugar de meias verdades, omissões e mentiras úteis, às quais se sujeitam jornalistas no desejo de acertar, metidos em um mar de erros crassos, provocados pela pressa ou pela ignorância.

Não bastasse isso, há a relatividade (a culpa é sempre de Einstein). No capítulo 9, Costa faz o elenco de algumas das aporias com as quais se defronta a Velha Mídia quando ela se vê diante do Oceano Azul da Nova Mídia. Por exemplo, o pobre jornalista, o que acontece com ele? Descolado de seu centro, o jornalista-Sol corre o risco de se apagar, subjugado por um leitor que ele não controla mais. E a famosa distinção igreja-Estado (invenção americana dos anos 20, sobre a qual se escreveram vários livros de ética e jornalismo), como fica? Para Costa, a dissolução dos limites entre atividade editorial e atividade comercial arrisca apagar a fronteira que garante a independência do negócio enquanto garante o negócio (de fato, arrisca, mas é fato que em bons jornais, o limite é sempre nítido).

E o demônio do marketing? A possibilidade de ações de marketing ligadas a determinados conteúdos, se efetivada, deixa um sabor amargo de dúvida no leitor (vale para os marqueteiros o que vale para os publicitários). Isso para não falar da cultura, em geral: a redução progressiva do conhecimento por parte dos novos criadores de conteúdo cria uma geléia geral onde imprecisão e incerteza viram qualidades e não defeitos. No fim, o leitor pode se perguntar, irritado com o jornal que agora lhe estraga definitivamente o café, o que quer Caio Túlio?

Conhecimento e desconfiança

Quer desmontar a pretensão à objetividade da imprensa, que desde sempre afirma que são objetivas (e verdadeiras) suas representações. Quer arrasar o que vê como a arrogância pedante dos jornais e dos jornalistas. Não existe isso, diz ele. Nunca existiu, e menos ainda existe agora, o território do jornalismo estraçalhado pela nova mídia e sua abertura ao leitor-criador.

Ok, mas esta é a parte fácil. Há a parte difícil.

Um, como ele mesmo nos lembra, jornalismo é ‘parte determinante da engrenagem que faz o mundo parecer o que parece ser’. Não há como prescindir dele. Dois, códigos morais temporários são encrenca. Parecem resolver o problema, mas sempre haverá uma noite em que as duas moças se encontrarão com o filósofo sedutor, ao mesmo tempo e não sucessivamente. Três, a Nova Mídia também precisa ser alvo de crítica, ou não? Soluções? O livro deixa mais perguntas do que respostas.

Enfim, precisam de jornalismo (e precisamos dele…), azar. Não durmam no ponto. Não acreditem no senso comum e cuidado com móveis encerados e jornalistas sinceros. À guisa de solução, se há uma, só a busca contínua do conhecimento e a desconfiança persistente em relação ao ‘estado atual das coisas’. A autoironia está no sangue ou não há jornalismo. Pena que não haja muita gente com senso de humor. Faltam caixeiros.

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Jornalista