Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Reflexões sobre a produção de novas narrativas reais

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora, avultando na imaginação popular. Apareciam as primeiras lendas. Não as arquivaremos todas. Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dous homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos, realizaram os dous, rapidamente, sem esforço algum… [CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. 30.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, p.118-119]

A nova conjuntura estabelecida no início do século 21, em que a profusão de mídias eletrônicas facilita a propagação dos fatos quase que instantaneamente, pede um renovado direcionamento para o jornalismo, especialmente os veículos impressos. Tomando por base Euclides da Cunha e sua obra, faz-se neste trabalho uma breve discussão sobre as novas narrativas de não-ficção, enquadradas no Jornalismo Literário.

Hoje se vive um momento em que as pessoas, de um modo geral, têm a impressão de estarem bem informadas. Somos atingidos diariamente por uma centena de notícias. A televisão e a internet cumprem agora o papel que um dia foi dos jornais, no passado – o de contar as novidades. Atualmente, o fato em si é noticiado tão logo aconteça; basta que se acesse um site ou que se assista a um boletim televisivo. Entretanto, vê-se que todo esse arsenal midiático é um verdadeiro mosaico de dados que, a priori, não são interligados; a agenda noticiosa cotidiana não enseja as reflexões maiores da humanidade, apesar de tê-las sempre em mãos, a todo o momento no próprio noticiário (meio ambiente, intolerância religiosa, miséria etc.).

Atemporalidade e relevância

Por meio das agências informativas espalhadas pelo mundo, fica-se sabendo diariamente de atrocidades, atentados terroristas e todo tipo de crime contra a condição humana – de um modo frio e assustadoramente natural. Os consumidores desta produção se acostumaram a isso, o impacto inexiste, já que o próprio produto jornalístico provocou esse processo de anestesia. Enquanto isso, o jornalismo impresso convencional, enfraquecido ante a modernidade tecnológica, tenta se adaptar à nova condição. Muitos ainda não se deram conta de que é preciso romper as barreiras do lead – as seis perguntas clássicas do jornalismo – para assegurar a verdadeira função da mídia de papel, que é inserir novas possibilidades narrativas, relatos de histórias de vida inusitadas, contextualizando e sensibilizando os leitores.

Nesse cenário, em que as notícias (pseudo) informam – e o senso comum profissional comumente acha isso o suficiente – em meio à busca por um padrão jornalístico que enfatiza a objetividade, urge a contextualização dos acontecimentos e a busca por novas vozes, perante as versões oficiais que somente retratam visões limitadas das problemáticas sociais. ‘O jornalista pós-moderno precisa pensar em sua função de instrumento-leitor da realidade em bases amplificadas, sintonizadas no ser humano. Para isso, é necessário embasamento social e estético’ (VICCHIATTI, Carlos Alberto. Jornalismo: comunicação, literatura e compromisso social. São Paulo: Paulus, 2005, p.12).

O Jornalismo Literário aparece como uma alternativa conceitual e prática a tudo isso. Com diversos representantes ao longo dos últimos duzentos anos, sua principal experiência aconteceu nos EUA, entre as décadas de 1940 e 1960, com John Hersey, Ernest Hemingway, Gay Talese e Truman Capote, entre tantos outros adeptos do então denominado New Journalism. Surge como uma proposta que procura solucionar o esgotamento das matérias de profundidade e almeja conferir atemporalidade e relevância perene às grandes reportagens.

Correspondente de guerra

Há ainda outras conceituações sobre o tema. Muitos consideram o JL uma tarefa editorial do periodismo que consiste em publicar resenhas de livros, contos de ficção e críticas literárias. No entanto, a definição aqui abordada refere-se à aplicação de recursos da literatura nos próprios textos jornalísticos, tendo ainda o compromisso com a verdade dos fatos. Também chamado de literatura de realidade, pode ser considerado, portanto, uma:

‘Modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização. Modalidade conhecida também como Jornalismo Narrativo.’ [Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 4 de agosto de 2007]

Euclides da Cunha é citado por muitos como o precursor do Jornalismo Literário no Brasil. O professor Edvaldo Pereira Lima, um dos principais estudiosos sobre o assunto, afirma:

‘Primeiro, é importante frisar que, historicamente, o Jornalismo Literário começou realmente a crescer a partir de narrativas de guerras. Pelo menos no mundo europeu, ou anglo-saxão, as primeiras matérias que apareceram com características próximas ao que se entende hoje como Jornalismo Literário foram de correspondentes de guerra.

(…)

No caso brasileiro, temos Os Sertões, de Euclides da Cunha, sobre a Guerra de Canudos, que nasce de reportagens que ele envia para o Estadão como correspondente de guerra. É considerado algo assim como o avô do Jornalismo Literário no Brasil.’ [KUNSCH, Dimas A. Jornalismo transformativo (um diálogo com Edvaldo Pereira Lima). Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 4 de agosto de 2007]

A natureza e o homem

A obra mais conhecida de Euclides, Os Sertões, reconhecida pelo primor literário e científico, foi concebida para cumprir um papel noticioso e testemunhal único. O engenheiro, que foi a Canudos (Bahia) como correspondente do jornal O Estado de S.Paulo, tinha um compromisso maior com a verdade que iria verificar. Tal posicionamento é ratificado em carta que ele enviou a respeitado crítico literário, o paranaense José Veríssimo.

‘Repito: não me preocupo com o destino literário daquele livro que é, afinal, um desgarrão na rota da minha engenharia rude; ele tem o mérito único da sinceridade; é o depoimento de uma testemunha e terá extraordinário valor se conseguir fornecer a futuros historiadores uma página única – mas verídica e clara.’ (CUNHA, 24. dez. 1901) [Carta de Euclides da Cunha a José Veríssimo. 1º de dezembro de 2002. ‘Caderno Mais!’, Folha de S.Paulo, 24 páginas]

O engenheiro, natural de Cantagalo (RJ), que por três anos viveu em São José do Rio Pardo, período em que finalizou sua obra-prima, conseguiu converter em um ensaio de natureza multifacetada todo seu potencial de pesquisa e apuração, direcionado às tarefas jornalísticas a que se propusera antes de viajar para o sertão. As grandes reportagens de Euclides sobre a Guerra de Canudos, em 1897 – coligidas e readaptadas para seu livro publicado no final de 1902 – tornaram-se referência para as ciências, como a antropologia social, a geografia e a geologia, e para a literatura. Um dos primeiros comentários, quando da publicação d´Os Sertões, foi de José Veríssimo.

‘O livro, por tantos títulos notável, do sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem (…).’ [VERÍSSIMO, José. Uma história dos sertões e da Campanha de Canudos. apud MILWARD, Vivianne Milward Azevedo. A viagem narrativa de Os Sertões: o desgastar de um corpo. p.12. Disponível em http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/vivianne_azevedo.pdf. Acesso em 19 de março de 2007]

Realidade caótica

Há os que acreditam, entretanto, que a linguagem euclidiana é incompatível com o jornalismo atual, o qual precisaria ser mais objetivo e simples para atender maior público. O jornalista Paulo Francis critica a aplicação do estilo de Euclides da Cunha.

‘Infelizmente, também, um dos nossos dois grandes escritores, Euclydes da Cunha, é empolado, o que de certa forma ratifica o culto da obscuridade na nossa linguagem, porque pessoas sem o gênio de Euclydes, único na nossa história, tentam copiar-lhe a má forma, porque imaginam assim estar avançando para profundezas do pensamento, quando na verdade escrevem apenas mal. Tem de haver uma linguagem comum.’ [SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus, 1991, p.109]

Todavia, como já foi comentado no início do texto, o nosso tempo exige que o jornalismo impresso remodele suas formas cristalizadas, que sejam repensados seus procedimentos de apuração e redação, para que não seja jugulado pelas novas mídias audiovisuais. Não basta mais ser simplesmente objetivo. É preciso saber incorporar a subjetividade humana, o imaginário coletivo, o poder de percepção de outras pessoas. A realidade é demasiado complexa para ser retratada por aquilo que somente o lead responde – ‘quê, ‘como’, ‘quando’, ‘onde’, ‘por quê’ e ‘quem’. É inerentemente caótica, o que impede que apenas sejam validadas as afirmações de autoridades e representantes das elites, enquanto pessoas de outros círculos sociais são excluídas do espaço dialógico.

Falas, gestos e hábitos

Deixar de lado a obra de Euclides da Cunha, como fonte de influência para as novas narrativas, é o mesmo que jogar fora valiosa herança. O livro Os Sertões representa a confluência dos mais importantes procedimentos jornalísticos com a primazia literária. O jornalista construiu sua narrativa e suas aprofundadas descrições tendo a realidade como seu objeto de análise, sem malversar.

‘Deve levar-se em consideração que em Euclides, como nos grandes autores, o aspecto final da forma é antes orgânico do que mecânico. Ou, em outras palavras: o aspecto mecânico da forma nada mais seria do que o uso dos recursos expressivos preexistentes ao escritor, com os quais ele manifestaria suas intuições, como se fosse um molde em que depositasse o conteúdo de sua imaginação. Diferentemente, a forma orgânica seria aquela que emergisse do próprio conteúdo, inerente à matéria que se quisesse exprimir. Na primeira hipótese, a forma pode não se adequar perfeitamente ao significado que nela se inscreve; na segunda, opera-se a perfeita interação da forma e das intuições que reveste, gerando uma harmonia plena de modo que nada pudesse ser mudado na forma sem alterar a substância que nela se corporificaria.’ [LAURIA, Márcio José. Ensaios Euclidianos. Rio de Janeiro: Presença, 1987, p.26]

Dentro dessa possibilidade de aliar a estética com a informação, o poético com o referencial, está o novo caminho do Jornalismo Literário. A combinação entre a literatura (com figuras de linguagem, adjetivação, transmutação do tempo narrativo e valorização das personagens) e jornalismo (compromissado com a verdade dos fatos que apura, exatidão e ética) cria um espaço dentro da grande reportagem apto a abrigar um entendimento mais aprofundado do real, através do ser humano colocado no centro das atenções; os fatos não devem, pois, serem mais importantes que seus atores; falas espontâneas, gestos e hábitos muitas vezes dizem por si só o inexplicável – o que jamais uma notícia convencional irá fazer.

Mitos messiânicos

É preciso reconhecer que, quando uma pessoa está ocasionalmente diante de um espaço aberto à sua opinião, não se vale somente do conjunto de idéias consideradas reais pela sociedade. Ela se inspira na sua própria visão a respeito das coisas e transforma sua fala em representação oral de sua subjetividade. ‘O homem comum, diante da instabilidade da vida, vale-se de sua capacidade de imaginar outra história e, por isso, sonha, fabula, cria metáforas em lugar de descrever, com rigor e precisão, os fenômenos conhecidos’. [MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003, p.58]

Em Os Sertões, por exemplo, para dar consistência à reportagem de imersão, o narrador Euclides vai aos poucos perdendo seus preconceitos. Ele foi a Canudos com idéias equivocadas acerca de sua pauta. Considerava, do âmbito positivista, a população nordestina despreparada para a civilização, e, do ponto de vista republicano, Canudos como um foco de resistência monarquista — como chegou a comparar à Vendéia, na França. Euclides imerge então diretamente na cultura de um povo que desconhece; entra em contato com suas tradições e contradições locais; e com seu ideário simbólico mais representativo, na figura de Antônio Conselheiro.

Segundo Roberto Ventura, Euclides da Cunha ‘construiu com base nas profecias e nos poemas recolhidos em Canudos um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua cultura, letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica’. [VENTURA, Roberto (1º dez. 2002). Euclides Conselheiro da Cunha. ‘Caderno Mais!’, Folha de S.Paulo, 24 páginas]

Qualidades e idiossincrasias

Uma nova filosofia do Jornalismo, em construção, deve incorporar os métodos de apuração de Euclides da Cunha, seu olhar atento aos detalhes e às cenas transcorridas. São necessários escritores com a mesma disposição nos dias atuais para denunciar a opressão humana, com dramaticidade e mergulho estilístico na medida certa; para contextualizar, desmentir preconceitos — inclusive quando estes são dos próprios jornalistas —, levar o leitor ao estado de espírito em que se sensibilize com a dor humana, de modo que não fique mais reticente ao tomar conhecimento das coisas.

Euclides fez isso com propriedade um século antes. Fazendo jornalismo, ao seu modo ensaístico, desvelou dos pontos de vista geográfico, étnico, antropológico e literário o crime no sertão da Bahia, no fim do século 19, quando o Estado, em nome de interesses e míopes ideais políticos, provocou um dos piores massacres da história e causou um estigma à dignidade de gente sofrida.

Diante da publicação d’Os Sertões, parte da sociedade escandalizou. Um grande alerta ao menos foi dado para que o erro não se repetisse. A permanência do livro foi garantida por qualidades e idiossincrasias, as quais foram — e são — incansavelmente discutidas por uma sorte sem fim de pesquisadores das mais diversas formas do entendimento científico e artístico, além de ter sido traduzida para dezenas de idiomas. Perenidade maior que essa, objetivada pela utopia da nova narrativa de não-ficção, somente se vê em grandes obras como Os Lusíadas e Ilíada.

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Repórter do Jornal Democrata, de São José do Rio Pardo, SP