Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Repórter não é policial, editor não é juiz



Quando nem os sinais exteriores de riqueza são tomados como um início de prova, lembrando Rui Barbosa, chega-se à vergonha da honestidade mantida. Walter Ceneviva, advogado, em artigo na Folha de S.Paulo, janeiro de 2000


A Justiça tarda, mas não falha, supõe o imaginário popular. Quando os principais suspeitos são membros da magistratura, a Justiça no Brasil costuma tardar e falhar. Em dezembro de 2000, foragido da Justiça havia sete meses e 13 dias, o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, entregou-se e foi preso como único personagem punido pelo escândalo do desvio de recursos da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Num país em que juízes raramente são julgados, a imprensa destacou aquela prisão solitária, mas não atentou para os expedientes judiciais que livraram da condenação os cúmplices de Lalau.


Três anos depois, o juiz federal João Carlos da Rocha Mattos foi preso preventivamente, acusado de ser o mentor de uma quadrilha que negociava sentenças judiciais. Na esteira da ‘Operação Anaconda’ – a maior investigação conjunta até então realizada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal –, foram também denunciados e afastados do cargo os juízes federais paulistas Casem Mazloum, Ali Mazloum e Adriana Pileggi de Soveral. Num país em que é raro magistrados se sentarem no banco dos réus, esses episódios mereceram ampla cobertura da imprensa. Mas os fatos foram tratados como capítulos isolados.


Entre a condenação de Lalau e a prisão de Rocha Mattos, foram afastados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) os desembargadores federais Roberto Luiz Ribeiro Haddad e Paulo Theotonio Costa. Reportagens da Folha de S.Paulo haviam revelado que o patrimônio desses magistrados contrasta com o padrão comum dos juízes brasileiros. Na ocasião, o TRF-3 não se dispôs a investigar esses fatos. Posteriormente, acusados de enriquecimento ilícito e falsificação de documentos, ambos foram denunciados ao Superior Tribunal de Justiça. Num país em que não é usual juízes perderem o cargo por decisão judicial, a imprensa não deu maior atenção ao caso.


Este livro pretende mostrar que há pontos comuns entre todos esses incidentes. Eles ocorreram no mesmo ambiente, ou seja, na Justiça Federal em São Paulo. A conexão entre fatos perdidos no labirinto de processos e recursos judiciais ajuda a entender por que alguns atores vestiram a toga durante tanto tempo, quando seus antecedentes já eram conhecidos no Judiciário.


Os relatos a seguir concentram-se, em grande parte, em acontecimentos dos últimos seis anos, período em que o autor, repórter especial da Folha, se dedicou a pesquisar fatos relevantes na Justiça Federal e no Ministério Público Federal, acompanhando seus desdobramentos nas Cortes Superiores.


Atitude louvável


Por uma coincidência – feliz apenas sob o aspecto jornalístico –, nos anos 80 e 90 este jornalista esteve à frente de duas amplas investigações sobre processos judiciais que tiveram desfechos controvertidos – e favoráveis aos acusados – graças à caneta do juiz Rocha Mattos: o caso Cobrasma, operação suspeita na Bolsa de Valores de São Paulo envolvendo a empresa do então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Luis Eulalio de Bueno Vidigal Filho, e o caso das importações superfaturadas de equipamentos de Israel no governo Orestes Quércia, em São Paulo (1987-91).


As reportagens sobre o patrimônio dos desembargadores Roberto Haddad e Theotonio Costa compõem uma investigação com características distintas das apurações habituais sobre o Judiciário. Tiveram origem num levantamento de informações exclusivamente jornalístico e na consulta a documentos públicos. Não foram baseadas em dossiês pré-fabricados, denúncias do Ministério Público Federal ou documentos vazados de órgãos policiais.


A atuação deste repórter não sofreu nenhuma interrupção, apesar de a Empresa Folha da Manhã S.A., que edita a Folha, ter sido alvo de duas ações de indenização movidas, cada uma, pelos dois desembargadores federais. A manutenção das investigações jornalísticas e de sua publicação no jornal deu elementos ao Ministério Público Federal para denunciar os magistrados.


Evidentemente, tarefa desse porte não resulta apenas da atuação individual de um jornalista. É louvável a decisão da Folha de promover e sustentar uma longa investigação nessa área tão sensível, concedendo autonomia invejável e prazos generosos ao repórter.


Segurança e moderação


Foram valiosas duas recomendações que ouvi, ainda nos anos 80, do publisher da Folha, Octávio Frias de Oliveira: firmeza e serenidade. Firmeza – assim eu entenderia – para enfrentar resistências, garantindo-se a independência editorial e o interesse do leitor. Serenidade, para reduzir os riscos de se ferirem reputações injustamente.


Ao longo desses anos, não me faltaram o apoio e o estímulo de Otavio Frias Filho, diretor editorial da Folha, cuja orientação sempre traduziu, a meu ver, aqueles dois princípios – firmeza e serenidade – que o pai soube transmitir-lhe e ao irmão, Luís Frias, presidente da Empresa Folha da Manhã S.A.


Sou imensamente grato aos competentes advogados da Folha, Luís Francisco de Carvalho Filho e Taís Gasparian, meus ‘anjos da guarda’ para as áreas criminal e cível, respectivamente. Não tendo formação em Direito, aprendi muito com ambos, embora sejam de minha inteira responsabilidade as incorreções e impropriedades deste livro.


Foi um privilégio contar com os conselhos do advogado Walter Ceneviva, articulista da Folha, e com o cordial acompanhamento de Orlando Molina, diretor jurídico do jornal.


De Eleonora de Lucena, editora-executiva, sou devedor das decisões ponderadas. Devo, igualmente, aos secretários de redação que monitoraram o trabalho deste repórter, cada um à sua época: Matinas Suzuki Jr. (caso Cobrasma), Marcelo Beraba (caso das importações de Israel), Josias de Souza (caso da ostentação de riqueza de desembargadores do TRF-3) e Vinicius Torres Freire (Operação Anaconda). Às jornalistas Paula Cesarino Costa e Gabriela Wolthers sou reconhecido pelo incentivo às reportagens sobre o Judiciário. Foi proveitoso submeter os textos à leitura e edição de profissionais dedicados, como Fernando de Barros e Silva, Márcio Aith, Fernando Canzian, Júlio Veríssimo, Plínio Fraga, Rogério Gentile, Neivaldo Geraldo, Maurício Puls, Marcelo Coppolla, Ralph Machado, Luís Fernando Bovo, Oscar Pilagallo, o saudoso Gabriel Junqueira, Marcos Cézari, entre outros. A segurança e a moderação do editor Nilson Oliveira, das quais fui beneficiário no caso das importações de Israel, quando ele atuava na editoria de ‘Brasil’, permaneceram no final de 2003, então como editor de ‘Cotidiano’, coordenando a cobertura da Operação Anaconda.


Seis anos, seis meses


Sem as imagens do repórter-fotográfico Luiz Carlos Murauskas, não teríamos uma idéia do patrimônio acumulado por Roberto Haddad e Theotonio Costa. João Wainer juntou ao equipamento fotográfico seu jipe 4×4 e documentou imóvel superavaliado numa região de difícil acesso na serra da Bocaina. Sem a calculadora e os préstimos do jornalista Mauro Zafalon, seria impossível avaliar e converter os milhões de dólares dos muitos casos de corrupção revelados. Fábio Marra, Mário Kanno e a equipe de Arte da Folha nos ajudaram a todos, com gráficos e ilustrações, a ‘entender cada caso’. Edson Franco colaborou nas avaliações de bens. José Iran Nonato Alves foi um eficiente caçador de registros e contratos nos cartórios e nas juntas comerciais. Agradeço a cooperação das equipes do Banco de Dados e da área administrativa da Folha.


Orgulho-me dos generosos comentários dos colunistas Janio de Freitas, Clóvis Rossi, Josias de Souza, Luís Nassif, Marcelo Beraba e Gilberto Dimenstein. Foi saudável o exercício de valorização do contraditório (‘o outro lado’), inspirado nas críticas dos jornalistas que ocuparam o cargo de ombudsman.


Devo aos repórteres Rubens Valente, Lilian Christofoletti e Mario Cesar Carvalho – que repartiram documentos e dados obtidos na Operação Anaconda – muitas informações relevantes que estão neste livro. Dívida igual, mais antiga, tenho com o repórter Mário Magalhães. Vali-me também de reportagens dos jornalistas João Batista Natali, Claudio Julio Tognoli, Márcio Chaer, Fausto Macedo, Conrado Corsalette, Fábio Diamante e Luiz Maklouf de Carvalho.


Para quem se habituou aos limites da investigação solitária, foi uma experiência muito rica trabalhar em equipe na Operação Anaconda, ao lado também dos jornalistas Cleusa Turra, Vinicius Mota, Roberto Cosso, Gilmar Penteado, Kennedy Alencar, Iuri Dantas e Gabriela Athias. Foram valiosas para este livro as informações da repórter Andréa Michael, da sucursal de Brasília. De lá, também contei com comentários, sugestões e a ajuda de Valdo Cruz, Eliane Cantanhêde, Fernando Rodrigues, Igor Gielow e Silvana de Freitas. A narrativa de seis anos de reportagens foi escrita em seis meses, de fevereiro a julho de 2004, graças ao programa do sabático incentivado pela Folha. Pelas atualizações, correções e cuidados na apresentação do texto, contei com a eficiência e a generosidade de Arthur Nestrovski e da equipe da Publifolha.


Armadilha da atualidade


Sem desmerecer o trabalho realizado por outros veículos, as reportagens analisadas neste livro foram, em sua grande maioria, publicadas na Folha. Optei por aprofundar apenas fatos dos quais participei, tomei conhecimento direto por fontes confiáveis ou por meio de documentação. Devido a esse critério, o cenário principal é a Justiça Federal em São Paulo, embora no período tenham sido publicados relevantes trabalhos jornalísticos sobre distorções de outros tribunais, como as reveladas, por exemplo, pelo jornal O Globo, em 2002, na série de reportagens sobre juízes do Rio de Janeiro e do Espírito Santo que vendiam sentenças.


Pela colaboração e respeito profissional, sou muito grato aos procuradores e promotores Ana Lúcia Amaral, Airton Florentino de Barros, Celso Antônio Três, Cleide Previtalli Cais, Denise Neves Abade, Ela Wiecko de Castilho, Francisco Dias Teixeira, Isabel Groba, Janice Agostinho Barreto Ascari, José Ricardo Meirelles, Jovenilha Gomes do Nascimento, Luiz Antonio Marrey, Luiz Fernando Augusto, Luiz Francisco de Souza, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Marcelo Moscogliatto, Maria Luiza Duarte, Mario Bonsaglia, Mônica Nicida Garcia, Pedro Pereira Barbosa Neto, Raquel Branquinho Nascimento, Ricardo Leme, Rogério Nascimento, Sílvio Marques, Wellington Saraiva e Yedda de Lourdes Pereira. Deixo de citar nesta introdução juízes, advogados e funcionários de tribunais que contribuíram para a realização deste trabalho.


Contei com a atenção dos jornalistas e assessores de imprensa Cláudia Lemos (Procuradoria Geral da República), Marcelo Oliveira (Procuradoria da República em São Paulo), Roberto Cordeiro, Deuza Lopes e Elaine Rocha (Superior Tribunal de Justiça), Renato Parente e Érica Hofman (Supremo Tribunal Federal), Irineu Tamanini (Tribunal Superior do Trabalho), Ruy Barbosa, Márcio Novaes e Fernando Simão (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), José de Sá e Fernando Porfírio (Ministério Público Estadual).


Este livro confirma que jornalistas e operadores do Direito enfrentam uma dificuldade comum: encontrar o equilíbrio entre a garantia da livre informação e a inviolabilidade dos direitos individuais. Nas reportagens mencionadas, houve esforço permanente para acolher a prévia manifestação dos suspeitos. A Folha sempre assegurou espaço para as devidas retificações.


Procurei deixar claro para os envolvidos que não somos movidos pelo sentimento de perseguição, mas pelo interesse público. Esse é o nosso ofício. Atribuo à impessoalidade e à preocupação com o contraditório o fato de – como o leitor perceberá – manter diálogo constante e desenvolto com vários personagens acusados, preservando o distanciamento profissional. Entendo que repórter não é policial, redator não é promotor público e editor não é juiz.


Outro grande obstáculo a superar na investigação jornalística sobre o Judiciário é conciliar o tempo do processo, mais demorado, com os prazos das publicações, cada vez mais curtos. Nessa área, a imprensa não costuma dar seqüência ao que publica. Num livro, a questão da atualidade tem outra face, verdadeira armadilha. Concluída a obra, os processos podem receber novos recursos e ter desfechos diferentes antes de o livro chegar ao leitor.


Interesse público


Finalmente, resta o desafio duplo da linguagem: tornar os fatos compreensíveis, claros e atraentes para qualquer leitor, sem desrespeitar os conceitos e a terminologia do mundo jurídico. Algumas transcrições foram mantidas como estavam no original, para legitimar a sua procedência. Os processos citados têm seus números de registro em notas de rodapé, para facilitar eventual consulta, pelos leitores, nos tribunais.


Como afirmei em artigo publicado na Folha, em 31 de dezembro de 2003, sob o título ‘Cobras e lagartos’, apesar do clamor público e das provas robustas, os réus são apenas suspeitos até decisão final da Justiça. Mas a Operação Anaconda oferece a oportunidade para que o Judiciário e a sociedade reflitam sobre os limites das corregedorias e avaliem a quem favorece o sigilo nas investigações de juízes muito suspeitos.


No mesmo artigo, comentei que ‘o surpreendente na desmontagem da suposta quadrilha que negociava sentenças foi o sigilo mantido na fase de apuração. Paradoxalmente, se não tivesse havido vazamento na etapa seguinte, dificilmente o TRF-3 (Tribunal Regional Federal) [da 3ª Região] prenderia um juiz’.


O Ministério Público Federal tem sido acusado de fornecer à imprensa, de forma açodada, informações sobre investigações ainda na fase preliminar. Quando a Anaconda chegou ao noticiário, circularam nas Redações documentos que deveriam estar preservados pelo sigilo, vazamento atribuído também a escritórios de advocacia, à Polícia Federal e ao Judiciário. [A dificuldade em preservar o sigilo das investigações é reconhecida em ‘Nota à Imprensa’, de 20/11/2003, do diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda: ‘Os procedimentos que dão respaldo legal às investigações tramitam inevitavelmente por órgãos diferentes (Polícia, Ministério Público, Judiciário, e também entre advogados), sendo difícil evitar que cheguem ao conhecimento de pessoas não envolvidas com as operações’.]


Nos dias que se seguiram às diligências de busca e apreensão, os noticiários de televisão reproduziram trechos de gravações a partir de interceptações telefônicas realizadas pela Polícia Federal. As Redações de telejornais, jornais e revistas dispunham de cópias de gravações e das íntegras de depoimentos prestados à Justiça na fase dos interrogatórios.


O leitor encontrará neste livro trechos de peças já publicadas em veículos que entenderam, naquela ocasião, estar prestando um serviço de interesse público. Transcrições textuais de trechos de depoimentos de Rocha Mattos, por exemplo, foram publicadas em jornais nos dias seguintes ao interrogatório.


Apoio permanente


Quando comecei a escrever este livro-reportagem, lembrei-me de um artigo do jornalista Luciano Martins Costa publicado no Observatório da Imprensa dias depois da Operação Anaconda. Seu título é: ‘Quem vai nos contar essas histórias?’ [Observatório da Imprensa, 18/11/2003, remissão abaixo]. Ele se referia aos muitos escândalos ligados à figura do juiz João Carlos da Rocha Mattos, ‘adormecidos na memória da imprensa’. São histórias perdidas e possivelmente desconhecidas dos jornalistas mais jovens.


Nesse artigo, Luciano Martins Costa comentava: ‘Não é difícil adivinhar a solidão de um Frederico Vasconcelos, de um Renato Lombardi ou de um Fausto Macedo tentando desenhar o contexto verdadeiro da notícia no cipoal das informações, sem interlocutores com quem fazer a tabela essencial a uma cobertura desse porte’. Ele achava fundamental o leitor poder entender ‘como se perpetuam nas instituições públicas as associações criminosas’. E questionava: ‘Mas quem vai escrever essa reportagem?’. ‘Ah, mais um ou dois Elios Gasparis! Alguém cuja memória tivesse contado com a disciplina e a objetividade com que o ex-diretor de Redação de Veja expôs as vísceras do regime militar’, sugeria o articulista.


Não tenho a pretensão de haver atendido às expectativas do articulista. Mas registro que o comentário também serviu de provocação para esta sondagem numa instituição fechada, refratária a controles externos e resistente a maior transparência.


Como diz a cientista política Maria Tereza Sadek, ‘o Judiciário brasileiro é uma instituição anacrônica: transformou-se numa burocracia pesada, o que afasta o cidadão comum da Justiça’ [Folha de S.Paulo, 10/11/2003]. Segundo ela, temos hoje uma Justiça não apenas seletiva, mas sobretudo inchada, repleta de demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos, pouco atenta aos pleitos da cidadania.


Dedico este livro aos milhões de brasileiros sem acesso à Justiça e aos milhares de juízes honestos que – também no dizer da professora Sadek – ‘trabalham muito, exageradamente, diferentemente da imagem pública’, ainda que ‘não estejam garantindo o direito da cidadania, como imaginam’.


Os agradecimentos finais, pelo carinho, tolerância e apoio permanentes, foram reservados para Iris Walquíria, minha mulher, João Augusto, Hugo e Maíra.

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Jornalista formado pela Universidade Católica de Pernambuco, exerce a profissão desde 1967; é repórter especial da Folha de S.Paulo, onde trabalha desde 1985, e autor do livro Fraude (Scritta, 1994).