Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Riscando o cavalo, tinindo as esporas

E lá vai a imprensa em louca arrancada, tendo agora como alvo o senador José Sarney. É um bom alvo: oligarca assumido, coronel do Meio-Norte, nomeador de parentes, distribuidor de concessões de rádio e TV, adesista contumaz, daqueles que têm posição firme, sempre ao lado dos governos. Não importa que o eleitorado volúvel mude de posição: ele será sempre íntimo dos palácios, ocupe ou não um cargo de direção.

No Norte, quando alguém quer passar com a boiada por um rio cheio de piranhas, coloca um boi sangrando rio abaixo, e as piranhas se atiram nele. Aproveitando a folga, o restante da boiada atravessa as águas em paz.

Enquanto os meios de comunicação se dedicam exclusivamente à caça de Sarney, Agaciel Maia e sua casa de R$ 5 milhões ficam esquecidos; como esquecidos estão o escândalo das passagens aéreas, as horas extras pagas em período de recesso, o gentil convite do governo e da indústria armamentista francesa a um grupo de parlamentares, com tudo pago, para uma simpática visita a Paris, às vésperas da decisão de uma compra bilionária de armamentos pelo governo brasileiro.

Não se fala do senador que foi com a namorada a Paris, com passagens pagas pelo Tesouro; enfurnou-se convenientemente a farra da verba indenizatória, as notas fiscais suspeitíssimas. Há total silêncio sobre a Gráfica do Senado. Aliás, de onde saíram os dólares na cueca? E o dinheiro dos aloprados? E os seguros de saúde exclusivos para senadores, distribuídos à vontade para tantos não-senadores? Ninguém está recordando os parlamentares que foram publicamente acusados de estar a serviço de um banqueiro, Daniel Dantas, do Grupo Opportunity – e que foram chamados de ‘bancada de Daniel Dantas’, tão íntima a ligação com ele que lhes é atribuída.

José Sarney é investigado, e isso é ótimo (desde que a investigação não pare, mesmo com ele fora do cargo); mas os outros bois estão cruzando o rio sem serem incomodados. E tudo indica que boa parte de sua carne e sangue originalmente não era deles.

 

A verdade do poeta

O título desta coluna é inspirado num poema de Ascenso Ferreira sobre o gaúcho, que risca o cavalo e faz tinir as esporas (Ascenso, a propósito, era funcionário público e só aparecia no serviço para receber os vencimentos). O último verso do seu poema é que deve ligar nosso sistema de alarme jornalístico: ‘Para quê? Para nada’.

 

Oropa, França e Bahia

Uma gigantesca operação de compras militares já criou dois problemas: a França convidou um grupo de parlamentares brasileiros para um ‘lobby suave, gentil’, nas palavras do presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), e o jornalista Janio de Freitas, normalmente bem informado, acusa os franceses de conluio com uma grande empreiteira brasileira. E a imprensa, embora tenha tocado nos assuntos, não se dedicou a investigações em profundidade.

Os dois casos: o reequipamento da Aeronáutica, que hoje tem apenas aviões antigos, e a compra e construção de submarinos no Brasil. No caso da Aeronáutica, a Aerospatiale francesa apresenta seus supersônicos Rafale, concorrendo com a Boeing (F-18 Hornet) e a Saab sueca (Gripen). A FAB deve escolher o que melhor se adapte às condições brasileiras e se comprometa a transferir mais tecnologia. Os franceses levam uma vantagem inicial, já que são sócios da Embraer; e, ao convidar parlamentares brasileiros para o lobby suave e gentil em Paris, procuram ampliar essa vantagem.

Que é que a imprensa pode fazer? Pode, entre outras coisas, buscar o retrospecto de cada supersônico. Fala-se, por exemplo, que o Gripen é um excelente avião, mas tem pouca autonomia de voo; comenta-se que o Rafale, sucessor da bem-sucedida linha Mirage, por algum motivo foi vendido apenas para a força aérea francesa. E o F-18, quais são seus problemas e virtudes? Há gente boa em imprensa de aviação que tem o que dizer – e ainda não foi chamada a fazê-lo, ao menos nos grandes veículos.

O caso dos submarinos é mais grave: Janio de Freitas diz que, para transferir a tecnologia da produção dos submarinos, os franceses exigem a contratação da empreiteira brasileira Norberto Odebrecht para construir o estaleiro. Ou seja, tentam ditar até a política militar do país. E há queixas dos alemães, tradicionais parceiros da Marinha, de que teriam sido preteridos por modelos inferiores e provavelmente mais caros do que os que poderiam oferecer.

Que é que os jornalistas especializados em armas podem dizer sobre virtudes e defeitos dos submarinos franceses e alemães? Mais: cadê as reportagens investigando possíveis ligações francesas com a empreiteira brasileira? Há muito a ser pesquisado. A política militar muitas vezes é mantida em segredo, mas muita coisa pode ser apurada por quem conhece o tema.

 

A palavra do presidente

Ao defender José Sarney, o presidente Lula pode estar equivocado – e provavelmente está colocando o cálculo político acima dos princípios. Mas está correto ao dizer que a imprensa quer condenar antes de o processo acontecer corretamente, e que ‘os jornais realizam julgamento prévio’.

Deixemos um pouco de lado a questão atual e lembremos outras – o mensalão, por exemplo. Os meios de comunicação usavam ‘mensaleiro’ como adjetivo para todos os parlamentares acusados, sem se preocupar se seriam condenados ou não. Parlamentares acusados em outros casos (e posteriormente absolvidos em todas as instâncias, como Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro) foram condenados e fuzilados pela artilharia da imprensa antes que qualquer tribunal se manifestasse. Ibsen, que chegou a ser cotado para a Presidência da República, é hoje deputado federal; Alceni, que era uma estrela em ascensão, teve a carreira política prejudicada por uns 15 anos. Seus sonhos de governar o Paraná se tornaram de dificílima realização.

 

Da Terra à Terra

O mestre Millôr Fernandes diz que o acontecimento mais sensacional do século 20 foi a chegada do homem à Lua. E o acontecimento mais chato do século 20 foi a segunda chegada do homem à Lua.

Pois bem: este colunista acabava de assumir a Editoria de Internacional do Jornal da Tarde, de São Paulo, e enfrentava a terceira viagem do homem à Lua. Como resolver o dilema entre um tema chato e, ao mesmo tempo, da mais alta importância?

A solução foi artística: a agência espacial americana distribuía um livro com a descrição de cada dia no espaço. O JT encomendou a artistas plásticos de renome uma ilustração por dia; e a ótimos escritores um conto por dia. Para o noticiário propriamente dito, algo como 20 linhas, e olhe lá.

Funcionou por algum tempo. Depois, sempre de madrugada, recebíamos diariamente o telefonema das agências internacionais, informando sobre os problemas da Apollo 13, arriscada a perder-se no espaço. E a cada dia tínhamos de rediagramar a página, reduzir o desenho, abolir o conto, mudar tudo, e na correria, para não atrasar o fechamento. Só valeu a pena por um motivo: a volta da Apollo 13, sem acidentes, ao som de Aquarius, deu à terceira missão lunar a emoção que faltou à segunda.

A propósito, que terá acontecido com os belos desenhos que foram para o arquivo?

 

Voo cego

Nossos meios de comunicação continuam esquecendo o caso El Al, a companhia aérea israelense que começou a operar no Brasil um mês e meio antes de sair no Diário Oficial a autorização para funcionar. Este colunista fez uma rápida pesquisa, para saber se uma empresa pode operar antes que a autorização seja formalizada. Voar comercialmente sem autorização expressa das autoridades é manifestamente ilegal – é como os atos secretos do Senado.

E não é tão difícil assim investigar o caso: que tal conversar com o brigadeiro Juniti Saito, comandante da Aeronáutica?

 

Sem motivos

Aliás, o silêncio dos meios de comunicação sobre o caso El Al nada tem a ver, agora, com a visita de nove jornalistas a Israel, a convite. Todos já voltaram ao Brasil.

 

PT vs. PT

Essa história de briga interna no PT, que envolve um quadro de tradição no partido, foi levantada pela repórter Malu Gaspar, de Exame, e publicada em EsquerdaDireitaeCentro, um dos principais blogs da revista. Os demais meios de comunicação preferiram ignorar o assunto, divulgado originalmente no dia 17 de julho.

O professor Ildo Sauer, ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras, afastado pela ministra Dilma Rousseff, mandou um e-mail a amigos, contando que em fins de 2002 foi pedido a todos os membros do grupo de energia do Instituto Cidadania, do PT, que entregassem o currículo. No de Dilma constava o título de doutor. Sauer perguntou-lhe diretamente se ela tinha o doutorado, e ela confirmou. Convidou-a então para participar de uma banca de doutorado. Ela lhe teria dito que não tinha tempo para essas coisas. ‘Hoje compreendo’, diz o e-mail de Ildo Sauer. ‘O desprezo e o desdém eram ferramentas para encobrir a impostura… Há outras’.

Sauer confirmou para a repórter Malu Gaspar a veracidade do e-mail, lamentando embora que tenha vazado. E deu sua opinião sobre a ministra: ‘Nunca tive simpatia pela maneira como ela trata as pessoas. Ela não conversa, só dá ordens. Mas, com quem está acima dela, é um doce’.

 

Nosso ar, como fica?

Ah, a ecologia! O empresário Eike Batista confirmou ao colunista Aziz Ahmed, do Jornal do Commercio, do Rio, que sua empresa MPX quer construir uma usina a carvão mineral em Candiota, no Rio Grande do Sul, com 600 mil kW. Nada contra Eike, um empresário dinâmico e que promete investir 30% do custo da obra em equipamentos ambientais; mas os órgãos de comunicação bem poderiam lembrar que, quando Londres usava carvão mineral em grande escala, até sua neblina era negra. O mesmo problema ocorreu em Los Angeles, onde o smog (de smoke fog, neblina de fumaça) se transformou em problema grave de saúde pública.

Num país onde ainda há boas reservas hidrelétricas, que nem tem usado todo o gás natural disponível, faz sentido usar carvão de pedra para gerar calor e eletricidade? Os meios de comunicação terão deixado a ecologia de lado, diante de investimentos que geram empregos e riscos de poluição? Talvez a ideologia verde sirva apenas à imprensa quando a economia cresce rapidamente.

 

A história do lixo

E, já que falamos em poluição, a história do lixo britânico enviado ao Brasil é muito esquisita. Basta responder a algumas perguntas que todo o mistério estará resolvido. E os meios de comunicação têm onde obter as respostas, sem grande dificuldade.

1. As transportadoras são a MSC e a Maersk. Quem as contratou para trazer os contêineres de lixo da Inglaterra para o Brasil? Quem pagou o frete?

2. Quem é o importador dos contêineres carregados de lixo? Isso deve constar da documentação da carga.

3. Alguém revistou o lixo para saber se, no meio, não há outros tipos de produto de grande valor agregado?

4. Em caso de devolução do lixo, quem pagará o frete?

 

Leitura boa

Ana Estela de Sousa Pinto, que dirige o Programa de Treinamento da Folha de S.Paulo, escreveu Jornalismo Diário – reflexões, recomendações, dicas e exercícios. Vale a pena, como referência, como indutor de novos pensamentos sobre jornalismo. Vale a pena, especialmente, como manual de conduta profissional. Edição Publifolha, R$ 49,90, 344 páginas.

 

Como…

De um grande jornal:

** ‘Avião bate pássaro ao pousar no Tom Jobim’

Alguém sabia que há torneios entre aviões e pássaros?

 

…é…

De um site noticioso:

** ‘Nariz de Michael Jackson estaria desaparecido’

Há certas coisas sobre as quais não pode haver dúvidas. Ou o nariz está lá ou não está. Que quer dizer ‘estaria’?

 

…mesmo?

Esta é de todos os sites noticiosos:

** ‘Americano entra com processo após encontrar camisinha em sopa’

O cavalheiro, pelo que disse, achou que estava comendo queijo derretido. Sua confusão traz uma dúvida: que tipo de produtos lácteos ele usa em sua casa?

 

E eu com isso?

E relaxemos, que a semana ainda é longa. Pode-se começar com um pouco de notícias sobre preconceito:

** ‘Administrador é demitido após cidade descobrir que sua mulher é atriz pornô’

É preciso torcer para que ela ganhe bem: o emprego que perdeu, em Fort Myers Beach, rendia 100 mil dólares por ano.

** ‘Jovem agride namorado que via filme pornô e é presa’

O rapaz precisa tomar cuidado: hoje em dia, nem TV aberta ele pode ver em paz.

Temos os fatos pouco comuns:

** ‘Ladrão aceita deixar casa após dono oferecer uma cerveja’

** ‘Carteira roubada há 27 anos em Nova York é encontrada’

** ‘Animal bêbado bloqueia rodovia na Alemanha’

** ‘Tartarugas em pista atrasam voos em Nova York’

** ‘Texugo interdita trânsito em cidade na Alemanha’

E há também aquelas informações sem as quais não conseguiríamos dormir à noite:

** ‘Leão marinho é flagrado cochilando em zoo alemão’

** ‘Homem explode apartamento tentando consertar colchão inflável’

** ‘Amy Winehouse volta para a Inglaterra aos prantos’

** ‘Ana Maria Braga joga videogame em aeroporto’

** ‘Equatoriana que está leiloando virgindade diz ter recusado oferta de R$ 6,25 milhões’

Há alguns anos, a esposa de um colega decidiu abandoná-lo. Ele, transtornado, pegou o carro e acabou batendo num poste. Um jornalista daqueles que têm veneno escorrendo pelos lábios fez o comentário fatal: ‘Casamento nenhum vale um Corcel zerinho’.

 

O grande título

Um bom candidato é o título exótico:

** ‘Prostituta de 65 anos é presa por suspeita de matar lutadores anões no México’

Há também um, excelente, daqueles que permitem várias interpretações:

** ‘Estrangeiro vira a mão e saldo fica positivo na Bovespa’

E há o político, imbatível:

** ‘Lula diz que não pode virar as costas ao presidente Lugo’

A julgar pelo retrospecto do Pai da Pátria paraguaio, nem deve.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados