Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Rubem Fonseca, esse desconhecido

No fim de semana que passou, a chamada grande imprensa deu extraordinário destaque ao lançamento de O Seminarista, o novo romance de Rubem Fonseca, mas tropeçou feio na tarefa de informar os leitores e adiantar interpretações dos comentaristas a quem encarregou de fazer esse trabalho.

Alguns deslizes são menores, como o de errar a idade do escritor, o ano do lançamento dos livros etc., mas no conjunto é uma perda de tempo ler o que dele se disse, não por esses erros menores, mas por uma deficiência geral que há muito atinge as páginas dedicadas a livros – aliás, cada vez com menos espaço.

Comecemos por uma questão bem simples. Como se define um romance capenga, como fez a Veja? ‘Embora o enredo policial de seu novo romance seja capenga, Rubem Fonseca se mantém como o cronista mais perspicaz de uma cidade onde bandidagem e civilização convivem promiscuamente.’ O romance é coxo, manco, perneta? O que lhe falta? Comparado o artefato literário a um ser que caminha, ainda que no reino da metáfora, figura de linguagem que é recurso poderoso na escrita, sobretudo de ficção, que defeitos têm as pernas do romance que manca?

No trecho seguinte, lemos: ‘Seus contos e romances foram pioneiros em abandonar a figura romântica do malandro para substituí-lo pelo marginal – violento, amoral, sanguinário’.

Neste caso, basta recomendar ao resenhista que releia os dois livros citados, Feliz Ano Novo e O Cobrador, de cujas páginas, segundo ele, poderia ter saído ‘a imagem do cadáver desovado por traficantes cariocas em um carrinho de supermercado que tanto chocou o Brasil no mês passado’. Exatamente nesses dois livros ele encontrará marginais muito românticos, amorosos, repletos de toda ternura e, por exemplo, muito mais éticos do que inumeráveis figuras com as quais lidamos nos dias que seguem.

Heróis problemáticos

Em O Globo, lemos: ‘A vida real é um longo tapete que se desenrola em silêncio e no escuro. Só temos acesso a ela através de dois efeitos extremos: ou a realidade se materializa em sangue, ou coagula em palavras.’ Será? Não há nenhuma outra alternativa para, digamos, acessar a vida real? E adiante: ‘É o que Fonseca nos mostra: o crime está sempre ligado à covardia e à ignorância’.

Bem, neste caso, são abundantes os exemplos dos heróis problemáticos de Rubem Fonseca que, como personagens atualizados de Crime e Castigo, em O Seminarista e em muitos outros livros precisam matar para poder viver. Não são covardes nem ignorantes, já que conhecem melhor do que ninguém o seu ofício e, além do mais, quem detém aquele cabedal de citações latinas não é um ignorante!

O Jornal do Brasil tomou um caminho que é a verdadeira chave do enigma, mas, infelizmente, não o desenvolveu: decifrar o modo de construir a narrativa, o como o romance é construído pelo narrador, em primeira pessoa, pois aí reside o seu grande significado literário, e não o que nos narra, já que aqueles crimes infestam todos os dias a imprensa, a qual, aliás, desempenha um papel estratégico na deificação ou na demonização de cidadãos, tenham eles transgredido ou não as leis que regem a vida brasileira nestes tempos sombrios que atravessamos.

Analisar, interpretar e julgar

Assim, a polícia pode subir os morros do Rio e matar impunemente. Previamente está absolvida pela imprensa, já que matou ‘suspeitos’. E quem define o que são suspeitos? A lei? Não, os seus assassinos! E qual é a pena para aqueles que definem como suspeitos? A pena de morte! Já outros suspeitos, como aqueles que são flagrados com a boca na botija nos três poderes, continuam livres de tudo e principalmente de serem tratados como tais na imprensa!

O espaço é curto, como o foi para os resenhistas, para dizer mais. Na verdade, aqueles que, como o signatário, já escreveram livros e ensaios referenciais sobre a obra Rubem Fonseca,devem sentir um certo desânimo, um tédio, um deixa-pra-lá para tantas banalidades.

Escrever romances dá muito trabalho. Sabe melhor disso quem já escreveu tantos, como é o caso de Rubem Fonseca, angariando respeito da crítica e atenção do público, prêmios e traduções que falam por si etc., mas aqueles a quem foi atribuída a tarefa de comentá-los deveriam tomar algumas precauções, a primeira das quais é analisar os livros antes de interpretá-los e principalmente antes de julgá-los. E se julgarem, saibam de antemão que terão seus julgamentos cotejados com outros, escritos por quem realmente parou, leu e examinou, à luz de teorias e métodos apropriados, a obra de Rubem Fonseca. E principalmente com mais lastro intelectual.

Mistério das citações latinas

Vou encerrar com uma dica para os leitores que este Observatório provavelmente vai produzir para o romance e também para aqueles que já o leram. Não se poupem de uma curiosidade: tomem os provérbios latinos transcritos em O Seminarista e busquem uma tradução – pode ser aproximada – nem que seja pela internet. As buscas valem a pena.

Alia tentanda est via, verso atribuído a Virgílio – Rubem é leitor voraz de poesia, em muitas línguas – como diz o narrador numa de suas sentenças. O caminho (crítico) requer que sejam tentados outros recursos.

Infelizmente, nosso maior escritor foi resenhado como se fosse um estreante. Provavelmente, se pudessem, vários editores dos cadernos chamados de literários teriam ignorado o novo romance dele, pois esta é a prática com os livros cujos lançamentos ignoram ou que não os entendem, ou para os quais não contam no corpo de colaboradores com quem possa entendê-los.

Terão predominado, quem sabe, alguns fatos extraliterários, como o adiantamento milionário que o autor recebeu para ceder os direitos de publicação à Agir, deixando a editora anterior, que era apenas uma promessa editorial quando Rubem Fonseca, surpreendendo todos e, como sempre, ousado, apostou que tinha uma obra capaz de ser um dos alicerces mais sólidos da então nova editora, há quase duas décadas, quando ele, e não ela, já estava estabelecido na praça.

O novo romance de Rubem Fonseca, para ser entendido, requer que sejam decifradas as citações latinas e a razão de ali terem sido inseridas. Para degustá-lo, porém, como romance policial apenas, basta tratá-las como uma refinada curiosidade, um presente para os leitores.

Voltarei ao tema e ao livro.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)