Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Salim Miguel, outra vez em grande estilo

Há um grande romance na praça, de leitura imperdível. Foi lançado em fins de 2008 e a correria de fim de ano impediu que recebesse toda a atenção que faz por merecer.

É da Editora Record, hoje um verdadeiro oásis para o escritor nacional. Sem alarde, a Record faz de outro modo, passadas tantas décadas, algo semelhante ao que fizeram José Olympio e Henrique Bertasso nos anos 1930, sem deixar de lançar livros estrangeiros de muito melhor desempenho comercial por razões óbvias, a principal das quais é que o escritor brasileiro ainda vive confinado ao fundo das livrarias, como se vivesse e escrevesse exilado em seu próprio país.

Jornada com Rupert, de Salim Miguel, é uma preciosidade. Naturalmente, ainda antes de abri-lo, o livro nos diz muitas coisas.

Salim Miguel, conhecido jornalista e escritor, já premiado pela Câmara Brasileira do Livro & Folha de S.Paulo com o prestigioso Prêmio Juca Pato, como Intelectual do Ano; pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e pela Universidade de Passo Fundo (RS), por Nur na escuridão, cujo tema solar ilumina a imigração árabe para o Brasil, é ainda doutor honoris causa pela Universidade Federal de Santa Catarina, prêmio concedido também a José Saramago. Poucos romancistas brasileiros desfrutam de tão importantes reconhecimentos.

Simpatizante de Hitler

Nascido no Líbano, alfabetizado em alemão, na pequena Biguaçu (SC), onde viveu sua infância profunda e sua adolescência, aos 23 anos, já em Florianópolis, integrava o Grupo Sul, marco da atividade intelectual em Santa Catarina, experiência importante na sociedade catarinense e brasileira entre 1947 e 1957.

O romancista catarinense tem tido, pois, desde os verdes anos, uma passagem memorável, não apenas pelas nossas letras, mas em muitos outros campos, perfilando-se sempre junto às boas causas, muitas das quais ele mesmo criou e liderou com sua conhecida doçura e seu espírito solidário. Basta dizer que não houve ainda, em qualquer editora universitária do porte da Editora da UFSC, um diretor capaz de repetir o estrondoso sucesso alcançado por ele entre 1983 e 1991, quando a dirigiu em circunstâncias muito adversas. Seu sucessor naquele posto, o também escritor catarinense Alcides Buss, soube continuar e reconhecer seu projeto – o que, aliás, é raro entre sucessores e antecessores em cargos semelhantes.

Esta não é uma resenha, sequer um comentário. Escreverei sobre o livro em outra oportunidade. Este é apenas um convite a que leitores e internautas: leiam Jornada com Rupert.

O protagonista do título é o jovem Rupert, filho de Herr Hans, simpatizante de Hitler e dono de uma fábrica de tecidos. Fritz admira o irmão, mas perfila-se junto aos ideais do pai. A irmã Karla, premida pela intuição feminina, que a faz ver com o coração coisas que a razão desconhece, fica dividida entre obedecer ao pai e exercer a liberdade.

Um passo à frente na qualidade

A pequena comunidade onde vivem é o germe de Blumenau, colônia agrícola que dá os passos profetizados por tantos estudiosos, no rumo do campo para a cidade e em pouco tempo se transformará num dos maiores pólos industriais, não apenas do Brasil meridional, mas de todo o país.

Por isso, não raro o romance ganha tom documental, como na p. 51. Ano: 1855.

‘Já faz cinco anos que o Dr. Blumenau chegou. E luta para trazer mais imigrantes. Em suas cartas fala na terra, no quanto é boa, nas oportunidades iguais que há para todos, só dependendo do esforço próprio. Aos poucos será atendido. Na Alemanha, o sábio Humboldt tudo faz para auxiliar seu amigo Blumenau. Os dezessete pioneiros já se transformaram em dezenas, logo serão centenas. Outras levas vão chegando, enfrentando a mata a ser desafiada pelos que fugiam da miséria na Europa, atendendo ao estímulo do farmacêutico Hermann Blumenau; aos alemães já se juntaram, por equívoco, os tiroleses que, ao contrário do esperado, só se entendiam na língua italiana.’

Eu achava pouco provável Salim Miguel superar o desempenho de Nur na Escuridão. Pois, com Jornada com Rupert, ele deu um decisivo passo à frente na qualidade. E sabem qual foi este passo? O da concisão. O barroco Salim Miguel de Nur na Escuridão aproxima-se aqui do estilo conciso de um dos escritores que tanto admira: Graciliano Ramos.

Atividade criativa

Numa nota final, ele lembra que as primeiras anotações para o romance começaram em 1948. Fez três versões do romance nos anos 1940. Devemos à sua esposa, a também escritora Eglê Malheiros, que mandou digitar o antigo original, e ao filho Paulo Sérgio Miguel, que aconselhou o pai – ‘mexendo bastante vai dar’ –, a retomada do projeto.

Com seu habitual humor, mesmo em meio às trapaças que a vida lhe interpôs, Salim conversa com Rupert, de quem discorda, quando o personagem o critica por deixar os ‘turcos’ e ‘ocupar-se dos alemães’.

As pessoas de todas as etnias que para cá vieram tornaram-se brasileiros e este é o milagre de nossa complexa e riquíssima identidade nacional. Que belo romance, Salim Miguel nos trouxe! Com o entusiasmo de menino que ainda hoje toma conta de suas almas, não será surpresa se outros livros aparecerem.

Salim Miguel, nascido em 1924, está em plena atividade criativa. E com isso ganhamos todos nós.

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da ed. Novo Século); www.deonisio.com.br