Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Será que a verdade ainda importa?

N.R. O foco deste texto é a política inglesa, mas trocando personagens e situações bem que poderia ser o Brasil.

Numa manhã de segunda-feira de setembro do ano passado, a Grã-Bretanha acordou com uma notícia depravada. O primeiro-ministro, David Cameron, havia cometido um “ato obsceno com a cabeça de um porco morto”, segundo o jornal Daily Mail. Um famoso contemporâneo seu na Universidade de Oxford afirma que Cameron participou de uma revoltante cerimônia de iniciação, num evento da Piers Gaveston, envolvendo um porco morto. Piers Gaveston é o nome de um turbulenta sociedade estudantil que promove jantares; segundo os autores da matéria, sua fonte foi um atual parlamentar que disse ter visto provas fotográficas: “Sua extraordinária sugestão é a de que o futuro primeiro-ministro teria introduzido uma parte privada de sua anatomia no animal.”

Ilustração por Sébastien Thibault  / The Guardian

Ilustração por Sébastien Thibault  / The Guardian

A matéria, extraída de uma nova biografia de David Cameron, deflagrou um delírio imediato. Era asqueroso, era uma grande oportunidade de humilhar um primeiro-ministro elitista e muita gente achou que era verdade por ser Cameron um ex-sócio do infame Bullingdon Club, também elitista. Em poucos minutos, as hashtags #Piggate e #Hameron disparavam no Twitter e até Nicola Sturgeon [atual primeira-ministra escocesa] disse que as acusações estavam “divertindo o país inteiro”, enquanto Paddy Ashdown [político e ex-diplomata] brincou dizendo que Cameron estava “monopolizando as manchetes”. Inicialmente, a BBC recusou-se a mencionar as acusações e a residência do primeiro-ministro informou que não iria “dignificar” a matéria dando uma resposta – mas pouco tempo depois teve que divulgar um desmentido. Portanto, um homem poderoso foi sexualmente desonrado, de uma forma que nada tinha a ver com suas ideias políticas e de uma maneira à qual ele nunca poderia responder. E daí? Ele tinha que aguentar.

Depois, após um dia inteiro de alegria online, aconteceu algo espantoso. Isabel Oakeshott, a jornalista do Daily Mail coautora da biografia com Lord Ashcroft, um empresário bilionário, foi à televisão e reconheceu que nem sabia se aquele enorme e escandaloso furo era verdadeiro. Ao responder a pressões para fornecer provas da denúncia assombrosa, Isabel Oakeshott reconheceu que não tinha nenhuma. “Não conseguimos chegar ao fundo das denúncias daquela fonte”, disse ela no programa Channel 4 News. “Portanto, nos limitamos a divulgar a descrição que a fonte nos deu… Não dissemos que acreditamos que seja verdade.” Em outras palavras, não havia provas de que o primeiro-ministro do Reino Unido tivesse, no passado, “introduzido uma parte privada de sua anatomia” na boca de um porco morto – uma matéria que foi divulgada em dúzias de jornais e repetida em milhões de tweets e atualizações no Facebook e que provavelmente até hoje muitas pessoas acreditam ser verdadeira.

Isabel Oakeshott até foi mais longe ao tentar livrar-se de qualquer responsabilidade jornalística: “Cabe a outras pessoas decidirem se dão ou não credibilidade à história”, concluiu ela. É claro que esta não foi a primeira vez que denúncias extravagantes foram publicadas com base em provas frágeis, mas a defesa foi extraordinariamente desavergonhada. Parecia que os jornalistas já não tinham que acreditar que suas matérias fossem verdadeiras e, aparentemente, não tivessem que fornecer provas. Ao invés disso, a decisão caberia ao leitor – que nem sabe a identidade da fonte. Mas, com base em quê? Instinto visceral, intuição, disposição?

A campanha contra os imigrantes

Será que a verdade ainda importa?

Nove meses depois de ter acordado dando risadinhas sobre hipotéticas intimidades de David Cameron com um porco, a Grã-Bretanha levantou-se, às 8 horas da manhã de 24 de junho, com a imagem muito concreta do primeiro-ministro, em frente à sua residência oficial, anunciando sua renúncia. “A população britânica votou pela saída da União Europeia e sua vontade deve ser respeitada”, declarou Cameron. “Não foi uma decisão tomada de maneira leviana. Muitas coisas foram ditas, por muitas e distintas organizações, sobre o significado desta decisão. Portanto, não devem haver dúvidas sobre o resultado.”

Mas o que logo se tornaria claro é que dúvidas eram o que não faltava. Ao final de uma campanha que dominou o noticiário durante meses, subitamente era óbvio que o lado vencedor não tinha projeto algum para como e quando o Reino Unido sairia da UE – enquanto as falsas denúncias que levaram a campanha pela saída da UE a ser vitoriosa desmoronavam. Às 6:31 da manhã de 24 de junho, pouco mais de uma hora depois que o resultado do referendo se tornou conhecido, o líder do Partido Independente (Ukip), Nigel Farage, reconheceu que um Reino Unido pós-Brexit não teria 350 milhões de libras [R$ 1,5 bilhão] por semana para aplicar no National Health Service [o equivalente ao INSS] – uma denúncia-chave dos que propunham a saída da UE e que, inclusive, estava inscrita no ônibus da campanha. Algumas horas mais tarde, Daniel Hannan, político do Partido Conservador, declarou que o fluxo de imigração provavelmente não seria reduzido – outra denúncia-chave.

É claro que não foi a primeira vez que políticos faltaram às promessas que haviam feito, mas talvez tenha sido a primeira vez que na manhã seguinte à vitória reconheceram que as promessas sempre haviam sido falsas. Esta foi a primeira eleição importante na era da política pós-verdade: a apática campanha a favor de ficar na UE tentou contrapor fatos às fantasias, mas logo percebeu que a circulação do fato havia sido profundamente falsificada.

Os fatos inquietantes dos que defendiam ficar na UE e os especialistas preocupados foram descartados como “Projeto Medo” – e rapidamente neutralizados por “fatos” opostos: se 99 especialistas diziam que a economia iria desmoronar e alguém discordava, a BBC dizia-nos que cada lado tinha uma visão diferente da situação. (Este é um erro catastrófico que acaba ocultando a verdade e reflete como algumas pessoas divulgam as mudanças climáticas.) Michael Gove declarou no programa Sky News que “as pessoas deste país já se cansaram de especialistas”. Também comparou 10 economistas vencedores do Prêmio Nobel que assinaram uma carta aberta contra a saída da UE aos cientistas nazistas fiéis a Hitler.

Durante meses, a imprensa eurocética trombeteou todas as denúncias duvidosas e jogou no lixo todas as advertências de especialistas, preenchendo as primeiras páginas com inúmeros títulos contra os imigrantes – muitos dos quais foram posteriormente corrigidos, numa fonte bem pequena. Uma semana antes da votação – no dia em que Nigel Farage desvendou seu cartaz inflamatório contra os imigrantes [Breaking Point poster] – a parlamentar Jo Cox, do Partido Trabalhista, que havia feito uma campanha infatigável a favor dos refugiados, foi assassinada – a capa do Daily Mail mostrava um grupo de imigrantes entrando no Reino Unido, na carroceria de um caminhão, com o título “Nós somos da Europa – deixem-nos entrar!” No dia seguinte, o Daily Mail e o Sun, que também divulgara a matéria, foram obrigados a reconhecer que aqueles imigrantes clandestinos eram, na realidade, do Iraque e do Kuwait.

Batalhas confusas entre forças opostas

A descarada indiferença em relação aos fatos não parou depois do referendo: no último fim de semana, a efêmera candidata a líder do Partido Conservador, Andrea Leadsom, que acabara de desempenhar um papel importante na campanha pela saída da UE, demonstrou a diminuição do poder das provas. Depois de dizer ao Times que, sendo mãe, seria uma candidata a primeira-ministra melhor do que sua concorrente Theresa May, ela berrou “Jornalismo de esgoto!” e acusou o jornal de deturpar suas observações – ainda que tenha sido exatamente o que ela disse, clara e definitivamente gravado em fita. Andrea Leadsom é uma política pós-verdade mesmo no que se refere às suas verdades.

Quando um fato começa a se parecer com qualquer coisa que você ache que é verdade torna-se difícil para qualquer pessoa diferenciar fatos verdadeiros de “fatos” que não são. A campanha pela saída da UE tinha plena consciência disso – e soube aproveitá-lo, pois o órgão que regula a ética na publicidade [Advertising Standards Authority] não tem autoridade para avaliar denúncias políticas. Alguns dias após a votação, o principal dos doadores do Partido Independente e financiador da campanha Leave.EU, Arron Banks, disse ao Guardian que o seu pessoal sempre soubera que a exposição de fatos não iria ganhar o referendo. “Foi uma abordagem no estilo da mídia norte-americana”, disse Banks. “O que eles haviam dito antes era ‘Os fatos não funcionam’ e pronto. A campanha por ficar na UE apresentou fatos, fatos, fatos. Simplesmente não funciona. Você tem que se conectar emocionalmente com as pessoas. É o que está por trás do sucesso de Trump.”

Não surpreendeu que, depois do resultado, algumas pessoas tenham ficado escandalizadas ao descobrir que o Brexit poderia ter consequências sérias e poucos dos benefícios prometidos. Quando “os fatos não funcionam” e os eleitores não confiam na mídia, cada um acredita na sua “verdade” – e os resultados disso, como vimos, podem ser devastadores.

Como acabamos chegando aqui? E como vamos sair dessa?

Vinte e cinco anos depois do primeiro website ter entrado na internet, é evidente que estamos vivendo um período de uma transição vertiginosa. Durante os 500 anos que se seguiram a Gutenberg, a forma predominante de informação foi a página impressa: o conhecimento era fundamentalmente transmitido num formato fixo, que incentivava os leitores a acreditarem em verdades estáveis e estabelecidas.

Agora somos apanhados em meio a batalhas confusas entre forças opostas: entre a verdade a falsidade, entre o fato e o boato, entre a bondade e a crueldade, entre os poucos e os muitos, os que estão conectados e os alienados; entre a plataforma aberta da internet – tal como seus arquitetos a imaginaram – e os recintos confinados do Facebook e de outras redes sociais; entre um público informado e uma multidão equivocada.

Uma “verdade” imposta de cima para baixo

O que existe de comum nessas lutas – e o que torna sua solução uma questão urgente – é que elas envolvem a diminuição do status da verdade. Isso não significa que não há verdades. Apenas significa – e este ano tornou isso muito claro – que não podemos concordar com o que são essas verdades e quando não há um consenso sobre a verdade e a maneira de consegui-la, logo se segue o caos.

De maneira crescente, o que caracteriza um fato é simplesmente uma opinião que alguém acredita que seja verdadeira – e a tecnologia tornou muito fácil a circulação desses “fatos” com uma velocidade e um alcance inimagináveis na era Gutenberg (ou mesmo dez anos atrás). Uma matéria suspeita sobre David Cameron e um porco aparece num tabloide pela manhã e de tarde já voou pelo mundo todo, pelas redes sociais, e surgiu em fontes jornalísticas confiáveis por todo lado. Isto pode parecer uma coisa à toa, mas suas consequências são enormes.

“A verdade”, como escreveram Peter Chippindale e Chris Horrie no livro Stick It Up Your Punter!, a história que fazem do jornal Sun, “é uma declaração insignificante que qualquer jornal faz por sua conta e risco.” Normalmente, há várias verdades contraditórias sobre qualquer assunto, mas na era dos jornais impressos as palavras numa página punham fim à questão, acabassem elas por ser verdadeiras ou não. A informação dava a sensação de verdade, pelo menos até que o dia seguinte trouxesse uma atualização ou uma correção, e todos nós compartilhávamos um conjunto de fatos em comum.

Essa “verdade” estabelecida era normalmente imposta de cima para baixo: uma verdade estabelecida, muitas vezes colocada no lugar por uma instituição. Esse acordo não deixava de ter falhas: grande parte da imprensa frequentemente exibia um preconceito em relação ao status quo e uma deferência para com a autoridade e era extremamente difícil, para as pessoas comuns, desafiar o poder da imprensa. Atualmente, as pessoas desconfiam de grande parte do que lhes é apresentado como um fato – particularmente se os fatos em questão forem incômodos ou fora de sintonia com suas próprias opiniões – e embora parte dessa desconfiança seja equivocada, outra parte não é.

A bolha de filtro

Na era digital, é mais fácil do que nunca publicar informações falsas, que são rapidamente compartilhadas e consideradas verdadeiras – como frequentemente vemos em situações de emergência, quando as notícias são dadas em tempo real. Num exemplo entre muitos outros, durante os atentados terroristas em Paris, em novembro de 2015, disseminaram-se rapidamente boatos nas redes sociais dizendo que o Louvre e o Centro Pompidou tinham sido atingidos e que François Hollande tinha tido um ataque cardíaco. As organizações jornalísticas confiáveis são necessárias para desmascarar esses exageros.

Às vezes, boatos como esses são disseminados em função do pânico, às vezes por maldade e às vezes por manipulação deliberada, quando uma empresa ou um regime paga às pessoas para transmitirem sua mensagem. Seja qual for o motivo, as falsidades e os fatos atualmente são disseminados da mesma maneira, através do que os acadêmicos chamam “cascata de informação”. Como descreve a professora de Direito e especialista em assédio online Danielle Citron, “as pessoas encaminham aquilo que outras pensam, mesmo se a informação for falsa, equivocada ou incompleta, porque acham que aprenderam algo valioso”. Esse ciclo se repete e, antes que você se dê conta, a cascata tem um impulso incontrolável. Você compartilha um post de um amigo no Facebook, talvez para mostrar afinidade ou concordância, e ao fazê-lo você aumenta a visibilidade do post para outras pessoas.

Algoritmos como aquele que alimenta as notícias do Facebook são projetados para nos dar mais daquilo que pensam que desejamos – o que significa que a versão do mundo com que deparamos em nosso fluxo pessoal diário foi invisivelmente organizada para reforçar nossas crenças pré-existentes. Quando Eli Pariser, co-fundador da empresa Upworthy, cunhou o termo filter bubble [bolha de filtro], em 2011, ele estava falando de como a internet personalizada – e em especial a função buscadora personalizada do Google, que significa que buscas de duas pessoas nunca podem ser a mesma – significa que é menos provável que estejamos expostos a informações que nos desafiem ou que ampliem nossa visão do mundo, e menos provável que encontremos fatos que desmintam informações falsas que outras pessoas compartilharam.

O que Eli Pariser pedia, naquela época, era que as plataformas das redes sociais vigentes devessem garantir que “seus algoritmos priorizassem opiniões contraditórias e notícias importantes, e não apenas que fosse mais popular ou mais auto-convalidado”. Mas em menos de cinco anos, graças ao incrível poder de umas poucas plataformas sociais, a bolha de filtro que Pariser descreveu tornou-se muito mais excepcional.

“As redes sociais engoliram tudo”

No dia seguinte ao do referendo da União Europeia, um post no Facebook enviado pelo ativista de internet e fundador do site mySociety Tom Steinberg proporcionou uma ilustração fulgurante do poder da bolha de filtro – e as sérias consequências para um mundo em que a informação flui, em grande parte, através das redes sociais:

“Estou procurando energicamente, através do Facebook, pessoas que estejam comemorando a vitória da saída Brexit, mas a bolha de filtro é tão forte, e se prolonga tão longe para coisas como a busca personalizada do Facebook, que eu não consigo encontrar alguém que esteja contente *apesar do fato de que hoje mais da metade do país está obviamente exultante * e apesar do fato de que eu procuro energicamente * ouvir o que eles têm a dizer.

Este problema da câmara de eco [um espeço fechado para produzir a reverberação de um som] atualmente é tão rigoroso e tão crônico que eu só posso pedir a quaisquer de meus amigos que estejam trabalhando para o Facebook ou para outra rede social e de tecnologia importante que digam urgentemente a seus chefes que não agir sobre este problema agora é o equivalente a apoiar e financiar energicamente a destruição do tecido de nossas sociedades… Temos países onde metade [da população] não sabe coisa alguma sobre a outra metade.”

Mas pedir às empresas de tecnologia que “façam algo” sobre a bolha de filtro pressupõe que isso seja um problema que pode ser facilmente consertado – ao invés de ser um problema que já foi levado em consideração com a própria ideia das redes sociais, que são projetadas para dar a você o que você e seus amigos querem ver.

O Facebook, que só foi lançado em 2004, atualmente tem 1,6 bilhão de usuários no mundo todo. Tornou-se a principal maneira das pessoas procurarem notícias na internet – e, na realidade, é predominante em maneiras que teriam sido impossíveis de imaginar na era dos jornais impressos. Como escreveu Emily Bell, “as redes sociais não se limitaram a engolir o jornalismo; engoliram tudo. Engoliram as campanhas políticas, os sistemas bancários, os históricos pessoais, a indústria do lazer, a venda a varejo e até o governo e a segurança”.

O pânico da mudança no algoritmo

Diretora do Centro Tow para Jornalismo Digital na Universidade de Columbia – e membro da diretoria do Fundo Scott, que é proprietário do Guardian –, Emily Bell fez um esboço do impacto brutal das redes sociais no jornalismo. “Nosso ecossistema de informações mudou mais dramaticamente nos últimos cinco anos do que em qualquer outra época nos últimos 500”, escreveu ela em março. “O futuro das publicações está sendo posto nas “mãos de uns poucos, que atualmente controlam o destino de muitos”. Os publishers de jornais perderam o controle da distribuição de seu jornalismo, o qual, para muitos leitores, “agora vem filtrado através de algoritmos e plataformas que são opacos e imprevisíveis”. Isso significa que as empresas das redes sociais tornaram-se esmagadoramente poderosas ao determinar aquilo que lemos – e imensamente lucrativas ao gerar uma receita com o trabalho de outras pessoas. Como destaca Emily Bell: “Há uma concentração de poder em relação a isso muito maior do que jamais houve no passado.”

Publicações organizadas por editores foram substituídas, em muitos casos, por um fluxo de informações escolhido por amigos, contatos e família e processado por algoritmos secretos. A velha ideia de uma internet aberta [wide-open web] – onde hiperlinks de site para site criavam uma rede de informações não hierárquica e descentralizada – foi, em grande parte, substituída por plataformas projetadas para maximizar o tempo que você passa entre suas paredes e algumas delas (como o Instagram e o Snapchat) não permitem qualquer tipo de link externo.

Na realidade, muitas pessoas, principalmente adolescentes, vêm passando cada vez mais tempo em apps de conversas fechadas, que permitem aos usuários criar grupos que compartilham mensagens de modo privado – talvez porque os jovens, que mais provavelmente já enfrentaram assédio online, procuram mais cuidadosamente espaços sociais protegidos. Mas o espaço fechado de um app de chat é ainda mais restritivo que o jardim com paredes do Facebook ou outras redes sociais.

Como escreveu no Guardian, no início do ano, o pioneiro blogueiro iraniano Hossein Derakhshan, que ficou preso em Teerã por seis anos devido às suas atividades online, a “a diversidade que a world wide web originalmente imaginara” deu lugar à “centralização da informação” dentre umas poucas redes sociais selecionadas – e o resultado final é “tornar-nos menos fortes em relação ao governo e às grandes empresas”.

É claro que o Facebook não decide o que você deve ler – pelo menos não no sentido tradicional de tomar decisões – nem impõe aquilo que é produzido pelas organizações jornalísticas. Mas quando uma plataforma se torna a fonte predominante para acessar informações, muitas vezes as organizações jornalísticas preparam seu trabalho de acordo as exigências do novo veículo. (A prova mais visível da influência do Facebook no jornalismo é o pânico que acompanha qualquer mudança no algoritmo que alimenta as notícias e que ameace reduzir o número de visitas à página enviado aos publishers.)

Dando legitimidade à porcaria

Nos últimos anos, muitas organizações jornalísticas afastaram-se do jornalismo de interesse público e passaram ao jornalismo popularesco, procurando visitas à página na vã esperança de atrair cliques e publicidade (ou investimento). A manifestação mais extrema deste fenômeno foi a criação de falsas fazendas de notícias, que atraem tráfego com falsas reportagens que são planejadas para parecerem notícias concretas e, consequentemente, são amplamente compartilhadas nas redes sociais. Mas o mesmo princípio se aplica à informação que é equivocada, sensacionalista e desonesta, mesmo que não tenha sido criada para enganar: a nova medida de valor, para inúmeras organizações jornalísticas, é a viralidade, e não a verdade ou a qualidade.

É claro que os jornalistas já erraram no passado – ou por engano, ou por preconceito ou, às vezes, propositalmente. (Provavelmente, Freddie Starr [humorista e ator inglês] não comeu um hamster.) Portanto, seria um erro pensar que isto é um novo fenômeno da era digital. Mas o que é novo e significativo é que hoje os boatos e as mentiras são tão lidos quanto fatos absolutamente confiáveis – e até mais, pois são mais extravagantes que a realidade e mais excitantes para compartilhar. O cinismo dessa abordagem foi explicitado cruamente por Neetzan Zimmerman, que antes trabalhou para o site Gawker como especialista em matérias de tráfego viral. “Hoje em dia, não é importante se uma matéria é verdadeira”, disse ele em 2014. “A única coisa que realmente importa é se as pessoas clicam para ver a matéria.” Os fatos, sugeriu, acabaram; são uma relíquia da era da impressora, quando os leitores não tinham opções. E ele continuou: “Se uma pessoa não está compartilhando uma matéria jornalística é porque, em sua essência, não é uma notícia.”

A crescente predominância desta abordagem sugere que estamos no meio de uma mudança fundamental nos valores do jornalismo – uma mudança de consumismo. Ao invés de fortalecer os vínculos sociais, ou de criar um público informado, ou da ideia da notícia como um bem cívico, como uma necessidade democrática, essa mudança cria quadrilhas que disseminam falsidades instantâneas que se encaixam em suas opiniões, reforçando as crenças de cada um, aprofundando as opiniões compartilhadas por cada um, e não os fatos concretos.

Mas o problema é que o modelo de negócios da maioria das organizações jornalísticas digitais baseia-se em cliques. Pelo mundo todo, a mídia chegou a um estado de extrema excitação para conseguir raspar alguns centavos da publicidade digital. (E não há muita publicidade: no primeiro trimestre de 2016, 85 cents de cada novo dólar gasto em publicidade nos Estados Unidos foi para o Google e para o Facebook. Antes, ia para os publishers.)

Nas informações que você recebe em seu smartphone, todas as matérias parecem iguais – venham elas de uma fonte confiável ou não. E, cada vez mais, fontes que já foram confiáveis publicam matérias falsas, equivocadas ou deliberadamente revoltantes. “A isca de cliques [clickbait – conteúdo da internet que é destinado à geração de receita de publicidade] é quem manda. Portanto, as redações imprimem, sem qualquer espírito crítico, as piores coisas que aparecem, o que dá legitimidade à porcaria”, disse Brooke Binkowski, editora do website Snopes [um site especializado em desmascarar informações falsas] numa entrevista ao Guardian em abril. “Nem todas as redações são assim, mas muitas delas são.”

A queda dos lucros e da receita

Devemos ter o cuidado de não descartar qualquer coisa com um título digital apelativo como clickbait – títulos apelativos são bons quando levam o leitor ao jornalismo de qualidade. Minha crença é de que o que distingue o bom do mau jornalismo é o trabalho: o jornalismo que as pessoas mais valorizam é aquele em que elas constatam que alguém se empenhou a fundo – onde sentem que o esforço foi empreendido em seu nome, enfrentando tarefas grandes ou pequenas, importantes ou divertidas. É o oposto àquela infindável reciclagem de matérias de outras pessoas em busca de cliques.

Atualmente, o modelo digital de publicidade não discrimina entre o verdadeiro e o não verdadeiro, só entre o grande e o pequeno. Como escreveu o repórter político norte-americano Dave Weigel na esteira de uma matéria que era um trote e se tornou um sucesso viral em 2013: “‘Bom demais para poder checar’ costumava ser uma advertência aos editores para não saírem aceitando matérias baseadas em mentiras. Agora é um modelo de negócios.”

Uma indústria de publicações jornalísticas procurando, desesperadamente, qualquer clique que seja não parece uma indústria numa posição de força e, na verdade, a publicação jornalística como negócio está em dificuldades. A transição para as publicações online foi um passo emocionante para o jornalismo – como eu disse, em minha palestra de 2013 na Universidade de Melbourne, The Rise of the Reader [A ascensão do leitor], ela induziu “uma redefinição fundamental da relação dos jornalistas com nossa audiência, o que pensamos sobre nossos leitores, a percepção de nosso papel na sociedade, nosso status”. Significou que encontramos novas maneiras de narrar nossas matérias – com tecnologias interativas e, agora, com a realidade virtual. Deu-nos novas maneiras de distribuirmos o nosso jornalismo, de encontrarmos novos leitores em lugares surpreendentes; e deu-nos novas maneiras de nos envolvermos com nossas audiências, abrindo-nos ao desafio e ao debate.

Porém, embora as possibilidades do jornalismo tenham sido reforçadas pelo desenvolvimento digital dos últimos anos, o modelo de negócios ainda está gravemente ameaçado, pois independentemente do número de cliques que você receber. Ele nunca será suficiente. E se você cobra dos leitores para acessarem o seu jornalismo, você enfrenta um grande desafio: persuadir o consumidor digital, que está habituado a ter informação gratuita.

Os publishers do mundo inteiro estão vendo os lucros e a receita caírem dramaticamente. Se você quer uma ilustração forte das novas realidades da mídia digital, avalie os resultados financeiros do primeiro trimestre anunciados no início deste ano, com uma semana de diferença, pelo New York Times e pelo Facebook. O New York Times anunciou que seus lucros operacionais haviam tido uma queda de 13%, passando a 51,5 milhões de dólares [R$ 167,3 milhões] – mais saudável do que a maioria do restante da indústria de publicações, mas uma queda significativa. O Facebook, por seu lado, revelou que sua renda líquida havia triplicado no mesmo período – passando ao assombroso número de $ 1,51 bilhão [R$ 4,9 bilhões].

O jornalismo sério é exigente

Muitos jornalistas perderam o emprego na última década. O número de jornalistas no Reino Unido encolheu em quase um terço entre 2001 e 2010; as redações norte-americanas tiveram um declínio semelhante entre 2006 e 2013. Na Austrália, apenas entre 2012 e 2014, houve um corte de 20% na força de trabalho jornalística. No início deste ano, no Guardian, anunciamos que teríamos que perder 100 postos de trabalho jornalísticos. Em março, o Independent deixou de existir enquanto jornal impresso. Desde 2005, segundo pesquisa feita pela revista Press Gazette, 181 jornais locais foram fechados no Reino Unido – aqui também, não devido a um problema com o jornalismo, e sim a um problema de como financiá-lo.

Mas a perda de emprego pelos jornalistas não é simplesmente um problema para os jornalistas: tem um impacto prejudicial sobre toda a cultura. Como advertiu o filósofo alemão Jürgen Habermas, em 2007: “Quando a reorganização e os cortes de custos nesta área essencial põem em perigo os padrões de ética jornalística, eles atingem o próprio coração da esfera pública política. Isto porque sem o fluxo de informação obtido através de extensa pesquisa e sem o estímulo de argumentos baseados numa competência que não é barata, a comunicação pública perde sua vitalidade discursiva. Então, os meios de comunicação públicos deixariam de resistir às tendências populistas e deixariam de poder preencher a função que deveriam no contexto de um Estado constitucional democrático.”

Então, talvez o foco da indústria jornalística se deva voltar para a inovação comercial: como resgatar o financiamento do jornalismo, que é o que está sendo ameaçado. O jornalismo assistiu a uma inovação dramática durante os últimos vinte anos, mas isso não ocorreu com os modelos de negócios. Nas palavras de minha colega Mary Hamilton, editora-executiva de audiência para o Guardian: “Nós transformamos tudo em relação ao jornalismo, mas não o suficiente em relação aos negócios.”

O impacto da crise no modelo de negócios sobre o jornalismo é o de que, ao procurar o número de cliques baratos às custas da precisão e da veracidade, as organizações jornalísticas enfraquecem sua própria razão de ser: descobrir coisas e dizer a verdade aos leitores – fazer reportagens, fazer reportagens…

Muitas redações correm o risco de perder o que é mais importante no jornalismo: o valioso “pé na rua”, o peneirar do banco de dados, as perguntas desafiadoras para descobrir coisas e trapaças de que alguém quer que você não saiba. O jornalismo sério, de interesse público, é exigente e atualmente é mais necessário do que nunca. Ajuda a manter honestos os poderosos; ajuda as pessoas a compreenderem o mundo e seu lugar nele. Os fatos e a informação confiável são essenciais ao funcionamento da democracia – e a era digital tornou isso ainda mais óbvio.

Toda a tarde é dia de juízo final

Mas não podemos permitir que o caos do presente nos faça ver um passado cor-de-rosa – como se pode ver a partir da recente solução de uma tragédia que se tornou um dos momentos mais obscuros da história do jornalismo britânico. No final de abril, uma pesquisa de dois anos determinou que as 96 pessoas que morreram no desastre de Hillsborough, em 1989 (o incidente ocorreu durante o jogo entre o Liverpool FC e o Nottingham Forest, válido pelas semifinais da Taça da Inglaterra). Durante a partida, 96 torcedores do Liverpool morreram pisoteados e outros 766 ficaram feridos. Foi o maior desastre do futebol inglês e um dos maiores do mundo. As investigações apontaram que a tragédia não foi causada por ação violenta por parte dos torcedores. As causas foram a sobrelotação do estádio, bem como o seu péssimo estado de conservação. Além disso, o local não cumpria as normas mínimas de segurança tinham sido vítimas do desastre e não tinham contribuído para a situação perigosa em que se encontrava o estádio de futebol. O veredito culminou uma infatigável campanha levada durante 27 anos pelas famílias das vítimas, que contou com as reportagens, durante vinte anos, do jornalista David Conn, do Guardian. Seu jornalismo ajudou a revelar a verdade concreta sobre o que aconteceu no estádio de Hillsborough e a posterior operação-abafa pela polícia – um exemplo clássico de um repórter usando seu poder para fazer uma descrição em nome dos menos poderosos.

A campanha que as famílias vinham fazendo há quase três décadas era contra uma mentira posta em circulação pelo jornal Sun. O agressivo editor do tabloide, Kelvin MacKenzie, de direita, culpava os fãs pelo desastre, sugerindo que eles teriam forçado a entrada para o estádio sem ingressos – uma denúncia que depois se comprovou que era falsa. Segundo a história do Sun, Stick It Up Your Punter!, dos repórteres Chris Horrie e Peter Chippindale, MacKenzie desautorizou seu próprio repórter e colocou as letras THE TRUTH [A verdade] na primeira página, alegando que os torcedores do Liverpool estavam bêbados, que tinham roubado dinheiro dos bolsos das vítimas, que haviam esmurrado, chutado e urinado em cima de oficiais de polícia, que haviam gritado que queriam fazer sexo com uma das vítimas mortas. Os torcedores, disse um “oficial de polícia graduado”, estavam “agindo como animais”. A matéria, segundo Chippindale e Horrie, é uma “clássica calúnia”, sem qualquer prova imputável e “encaixando-se precisamente na fórmula de MacKenzie ao divulgar um preconceito imprudente e ignorante pelo país inteiro”.

É difícil imaginar que o desastre de Hillsborough pudesse acontecer de novo: se 96 pessoas fossem pisoteadas até morrer na frente de 53 mil smartphones, com fotografias e relatos de testemunhas postados nas redes sociais, teria levado tanto tempo para que a verdade aparecesse? Atualmente, a polícia – ou Kelvin MacKenzie – não teria conseguido mentir tão descaradamente por tanto tempo.

A verdade é uma luta. Dá um trabalho danado. Mas é uma luta que vale a pena: os valores tradicionais da informação são importantes e significativos e valem a pena ser defendidos. A revolução digital significou que os jornalistas – acertadamente, em minha opinião – são mais responsáveis perante a sua audiência. E, como mostra a matéria sobre o desastre de Hillsborough, a velha mídia era capaz de perpetrar assombrosas falsidades, que poderiam tomar anos para ser decifradas.

Algumas das velhas hierarquias foram decididamente enfraquecidas, o que levou a um debate mais amplo e a um desafio mais importante às velhas elites, cujos interesses muitas vezes dominavam a mídia. Mas a era da informação implacável e instantânea – e das verdades incertas – pode ser arrasadora. Nós nos inclinamos de indignação em indignação, mas esquecemos delas muito rapidamente: toda a tarde é dia de juízo final.

Tecnologia e mídia não existem isoladamente

Ao mesmo tempo, o nivelamento do panorama da informação soltou novas enxurradas de racismo e sexismo, assim como novas formas de humilhação e assédio, sugerindo um mundo em que irão prevalecer os argumentos mais barulhentos e mais brutais. É um ambiente que provou ser particularmente hostil às mulheres e às pessoas de cor, revelando que as desigualdades do mundo físico são facilmente reproduzidas nos espaços online.

O Guardian não é imune a isso – e isso foi um dos motivos para que uma de minhas primeiras iniciativas como editora-chefe do jornal foi a de lançar o projeto A internet que queremos para combater uma cultura geral de ofensas online e perguntar como podemos, enquanto instituição, promover conversas melhores e mais civilizadas na internet.

Acima de tudo, o desafio que o jornalismo enfrenta hoje não é simplesmente o das inovações tecnológicas ou da criação de novos modelos de negócios. É também o de estabelecer o papel que as organizações jornalísticas ainda desempenham no discurso público, que se tornou mais fragmentado que o possível e radicalmente desestabilizado. Os extraordinários desenvolvimentos políticos num passado recente – incluindo o voto pelo Brexit e o surgimento de Donald Trump como candidato como candidato republicano à presidência dos Estados Unidos – não são simplesmente a consequência de um populismo que ressurge ou a revolta dos que foram deixados para trás pelo capitalismo global.

Como disse o acadêmico Zeynep Tufekci num ensaio no início deste ano, a ascensão de Trump “é, na verdade, um sintoma da crescente fraqueza dos meios de comunicação de massa, principalmente no que se refere a controlar os limites daquilo que é aceitável dizer-se”. (Um caso semelhante poderia fazer-se com a campanha pelo Brexit.) “Durante décadas, os jornalistas das principais organizações de mídia agiram como guardiões [gatekeepers] que avaliavam quais opiniões podiam ser publicamente discutidas e o que era considerado demasiado radical”, escreveu Tufekci. O enfraquecimento desses guardiões tanto é positivo quanto negativo; há oportunidades e há perigos.

Como podemos ver pelo passado, os velhos guardiões também eram capazes de causar um grande prejuízo e muitas vezes eram arrogantes, ao recusarem um espaço para argumentos que eles consideravam foram do consenso político ortodoxo. Porém, sem algum tipo de consenso, é difícil que qualquer verdade se imponha. O declínio dos guardiões deu a Trump espaço para apresentar assuntos que antes eram tabu, como o custo de um regime global de livre comércio, que beneficia as grandes empresas, e não os trabalhadores – uma questão que havia muito tinha sido descartada pelas elites norte-americanas e por grande parte da mídia –, assim como, de maneira mais óbvia, permitindo que prosperassem suas revoltantes mentiras.

Quando a disposição predominante é anti-elite e anti-autoritarismo, a confiança nas grandes instituições, inclusive a mídia, começa a desmoronar.

Acredito que vale a pena lutar por uma cultura jornalística sólida. Assim como por um modelo de negócios que sirva e recompense as organizações jornalísticas que colocam a busca pela verdade no centro de tudo – construindo um público informado e atuante que investiga os poderosos – e não uma quadrilha mal informada e reacionária que ataca os vulneráveis. Os valores tradicionais da informação devem ser adotados e comemorados: reportagens, checagem de dados e coleta de declarações de testemunhas oculares, desenvolvendo uma tentativa séria de descobrir o que realmente aconteceu.

Nós temos o privilégio de viver numa época em que podemos usar muitas novas tecnologias – e a ajuda de nossa audiência – para fazê-lo. Mas também temos que enfrentar as questões que sustentam a cultura digital e compreender que a transição da mídia impressa para a digital nunca foi somente sobre tecnologia. Também temos que nos dirigir à nova dinâmica de poder que essas mudanças criaram. A tecnologia e a mídia não existem isoladamente – elas ajudam a dar forma à sociedade, assim como são formadas por ela. Isso significa envolver-se com as pessoas como atores cívicos, como cidadãos, como iguais. Trata-se de questionar o poder, lutar por um espaço público e assumir a responsabilidade de criar o tipo de mundo em que queremos viver.

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Katharine Viner é editora-chefe do jornal The Guardian