Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre segredos e sobre confiança

Parecia um trote, mas era verdade. Quando a revista Vanity Fair de 30 de maio chegou às bancas trazia uma notícia-bomba: a revelação do maior segredo jornalístico da imprensa norte-americana. A reportagem de John D. O’Connor apontava a identidade do Garganta Profunda, a famosa fonte de informação do Washington Post na série de reportagens que ajudou a derrubar o presidente Nixon na metade da década de 70.

O Garganta Profunda era ninguém menos do que o nº 2 do FBI, W. Mark Felt. E o título da matéria era impactante: ‘Sou o cara que chamaram de Garganta Profunda’. A edição da revista causou alvoroço no meio jornalístico norte-americano (e por tabela de todo o mundo), que esperava uma confirmação da informação. Isso só veio no dia seguinte, na capa do próprio Washington Post, com textos dos dois repórteres imortalizados pelo episódio do Watergate: Carl Bernstein e Bob Woodward. Um segredo de 33 anos ruía…

Entretanto, desde 2002, Woodward cogitava acabar com ele. O repórter havia sido o único a tratar com a misteriosa fonte durante as investigações em 1972. Conforme mostra Todos os homens do presidente, filme de Alan J. Pakula, ambos se encontravam secretamente na calada da noite numa deserta garagem subterrânea. Trocavam informações, e Felt sinalizava onde os repórteres do Post poderiam confirmar as informações vazadas pelo oficial do FBI. Após trinta anos de sigilo absoluto sobre a identidade da fonte, Woodward se atormentava ainda com o destino que daria a essa preciosa informação: revelar ou não? E quando? Após a morte de Felt? Levar o segredo para o próprio túmulo? Woodward preparava há alguns anos os originais do que em 2005 tornou-se O homem secreto, relato que não apenas organizava as informações que rondaram a sua relação com o Garganta Profunda, mas que dava alguns sentidos e motivações às personagens de um dos episódios mais ruidosos da democracia ocidental.

Proximidade perigosa

Assim que Mark Felt resolveu confessar sua identidade secreta à Vanity Fair, uma montanha de responsabilidade saiu das costas de Woodward, que se apressou a finalizar o livro. Em dez dias, conta, a história estava pronta para ir às rotativas da Simon & Schuster, e poucos meses depois chegou ao Brasil pela Editora Rocco.

O que poderia ser considerado um lançamento oportunista mostra-se importante depoimento sobre a própria condição dos jornalistas frente a suas fontes de informação. ‘O homem secreto’ não se ocupa da revelação do nome por trás dos vazamentos oficiais, mas de como se deu o relacionamento de Woodward e Felt nesse tempo todo. E isso não é pouco, já que há dados importantes para uma reconstituição desses laços. Não é pouco também porque não são freqüentes os relatos jornalísticos que expõem as vísceras de nosso métier. Neste sentido, Woodward se mostra tão sincero quanto Samuel Wainer em Minha razão de viver, embora seu estilo seja mais elegante e racional. Se o jornalista da Última Hora confessa ter se ‘corrompido até a medula’ para ter o próprio jornal, o colega norte-americano reconhece que foi bem longe para manter o segredo e a fonte: ‘Fui insistente demais, dissimulado, usei Mark Felt e menti a um colega’.

Com isso, caem alguns chavões que sustentaram a maior história do jornalismo investigativo dos Estados Unidos. Woodward era um jovem repórter, ainda inseguro, com uma grande história e uma fonte (bem-informada e disposta a colaborar). Ambos se conheciam desde o fim dos anos 60, antes mesmo de Woodward tornar-se jornalista. Felt tinha a idade de seu pai e, em muitos momentos, sente-se que a relação de ambos beirou uma certa paternidade na medida em que o repórter buscava no agente um ponto de aconselhamento e confiança. O relacionamento descrito dá uma dimensão muito próxima do que realmente se dá nas lidas jornalísticas cotidianas: o repórter se aproxima demais da fonte, perigosamente. E os papéis de ambos se misturam, confundindo a quem servem.

Espécie de vampirismo

Uma fonte é um trunfo, uma segurança, uma garantia. Jornalistas não vivem sem elas. Nem mesmo o jornalismo se edifica sem as fontes de informação. E mesmo apesar dessa evidente dependência, o jornalismo se condicionou a tratar as fontes com distância, com uma certa arrogância e nem sempre com respeito. Inicialmente, as fontes são encaradas também com incredulidade, e precisam se mostrar fidedignas, confiáveis.

No jargão das redações, ouve-se que é preciso estar próximo o bastante da fonte a ponto de extrair informações relevantes, mas distante o suficiente para não se contaminar com ela. A orientação de conduta assume ares de fórmula impossível na rotina profissional. Afinal, como se mede a distância de segurança que protege o jornalista dos interesses da fonte e lhe permite ao mesmo tempo sugar o que interessa ao público?

Essa orientação funciona como um dispositivo de segurança para que o jornalista não se deixe usar, mas não impede que o contrário ocorra. Na verdade, o que se vê é o repórter rondando a fonte sorrateiramente, chegando a ela com interesses nem sempre declarados e deixando o terreno assim que estiver saciado. É uma espécie de vampirismo. Mas dos dois lados, não nos deixemos enganar. Há fontes interessadas na projeção, na notoriedade e na ampla difusão de versões que lhe interessam, que a mídia pode proporcionar. Os vazamentos de Felt, no caso Watergate, não se deram por civismo ou patriotismo do nº 2 do FBI. Seus encontros com Woodward nas madrugadas foram movidos por rancor e inveja, pelo desejo de controlar os passos de outros atores da política. Basta ler o relato de O homem secreto, já decantado pela história.

Vaso que não se cola

E, por essa dimensão, os personagens do épico que foi Watergate revelam-se santos-com-pés-de-barro. São imperfeitos, trazem fraquezas nos bolsos de seus ternos, escondem mesquinharias em suas pastas e crachás. Perdem a estatura de mocinhos e bandidos. Woodward e Felt estão ancorados por boas intenções, nutrem sentimentos civilizados, mas não são imaculados. Seus perfis tornam-se mais porosos, após a leitura do relato do repórter.

Mas jornalistas precisam de fontes, e fontes precisam de jornalistas para fazer circular suas versões. O jornalismo se equilibra sobre isso também. E essa gangorra é dinâmica. Há uma expressão que sintetiza uma preocupação recorrente entre jornalistas: ‘cultivar a fonte’. Isto é, aproximar-se dela, ganhar sua confiança, extrair as informações necessárias e manter um bom relacionamento de modo a que, num outro momento oportuno, se possa voltar a ela e novamente se abastecer com outros dados. Nesse sentido, o nome que demos aos nossos entrevistados e consultados – ‘fonte’ – é mais do que propício, afinal é deles que bebemos (ou sugamos) a substância que serve de matéria-prima para nossos relatos.

A relação entre fonte e repórter é regida por alguma porção de confiança mútua. A fonte acredita que sua versão não será distorcida ou pervertida. O profissional crê que as falas de seu entrevistado estão próximas do que convencionamos chamar de ‘verdade’. Confiança é um vaso que não se cola. Isto é, assim que ela é quebrada, juntar seus cacos é uma tarefa complexa e nem sempre totalmente restaurativa.

Que tipo de pacto?

Os laços que mantiveram Woodward e Felt durante 33 anos vedaram a identidade do Garganta Profunda. E é evidente que esses laços eram de extrema confiança. O relato do repórter deixa entrever até mesmo um tipo particular de amizade entre eles. Não freqüentavam as casas um dos outro, não tinham contatos constantes, mas compartilhavam de um segredo capaz de fazer desmoronar a cúpula da República. Tanto para o funcionário do FBI quanto para o repórter é um motivo que estremece… Com o circo armado por causa de Watergate, muita lama respingou em gente graúda do FBI e do governo, e Felt chegou a ser perseguido, responsabilizado (dada a sua posição no Bureau) e até mesmo condenado. Não foi fácil para o funcionário, e Woodward sentiu remorso e desconforto diversas vezes nesses anos tantos, mal-estar que reforçava a necessidade de se calar sobre o Garganta Profunda. Parecia haver uma dívida contraída e que deveria ser honrada.

Nesse sentido, Woodward não apenas guarda o segredo, mas protege a fonte a ponto de espalhar pistas falsas ao longo dos anos, de forma a desviar o olhar e as apostas dos que queriam adivinhar o nome por trás do Garganta. Para o repórter, proteger Felt ‘era uma questão do meu trabalho, uma questão de honra’. Esse compromisso exemplar de proteção à fonte e de manutenção de um sigilo por décadas talvez hoje seja impossível, basta comparar ao caso Judith Miller, a repórter do New York Times. Jamais contar foi a lei que Woodward se impôs. Fora o repórter e a fonte, apenas mais cinco pessoas conheciam a verdade.

Parece cristalino que Woodward foi bem longe no relacionamento com sua fonte, podendo, inclusive, ter errado, poupando-a de julgamentos mais críticos. Mas como proceder nesse caso? Que tipo de pacto se firma com um informante? Até onde se pode ir com isso? Woodward justifica: ‘Garganta Profunda era alguém que sabia – um informante do lado de dentro – mas era igualmente uma pessoa que dramatizava os limites do jornalismo. Não há soro da verdade. Informantes jogam com suas próprias regras. Os melhores informantes não dizem quais são essas regras’. Mas outro questionamento se impõe: para conseguir a informação, até onde se deve aceitar que a fonte dê as cartas?

O que mudou?

O homem secreto permite perceber com mais nitidez e maiores contornos um relacionamento profissional que não delimita muito bem as fronteiras que o circunscrevem. O livro possibilita também entender algumas das condições de sustentaram o fôlego do Washington Post na investigação do caso. No depoimento de Bernstein no fim do volume, uma revelação importante: os repórteres – sem saber ainda ao certo onde estavam escavando – percebem que a série de reportagens poderia sim abalar irreversivelmente o governo Nixon. ‘Oh, meu Deus! Esse presidente vai ser derrubado’, alarma-se Bernstein, que é compreendido pelo colega. Eles combinam de nunca falar em impeachment na redação por uma razão simples: ‘Nossos editores podiam pensar que tínhamos uma meta estabelecida, ou que nossas reportagens eram megalômanas, ou até que estivéssemos passando dos limites. Qualquer sugestão sobre o futuro do mandato de Nixon podia prejudicar nosso trabalho e o esforço do Post para ser imparcial’, lembra Bernstein.

Preocupações como essas têm sido cada vez mais raras. Repórteres, hoje, pré-julgam, tratam indícios como provas, perseguem, tensionam para um dos lados. Fazem de suas reportagens o atestado de óbito de reputações e concentram poder quase ilimitado na condução de alguns casos.

Certamente, o jornalismo de hoje não é o de trinta anos atrás. Mas o que mudou? O público? Os valores que nos acompanham? Os jornalistas ou a forma de fazer jornalismo?

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Jornalista e professor universitário