Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Suicídio, assassinato coletivo

À luz de Morte no Paraíso, de Alberto Dines e de Stefan Zweig, de Donald Prater, lá vou eu, mais uma vez, a Petrópolis. Irei muitas outras, desde há algum tempo por um motivo especial: me preparo para escrever um romance chamado Lotte em Petrópolis.

O romancista, ao contrário do biógrafo, não busca e não quer a precisão documental, a não ser para referência.

Elisabeth Charlotte completaria cem anos no próximo 5 de maio. Suicidou-se em 23 de fevereiro de 1942, aos 34 anos incompletos. O marido, companheiro da tragédia, nascido a 28 de novembro de 1881, tinha 60 anos completos. Um humorista já brincou que o Carnaval daquele ano foi muito ruim. O casal matou-se no primeiro domingo depois da quarta-feira de cinzas.

Sabemos que os mortos falam, pois têm o que dizer. Stefan falou bastante em vida, tantos foram os livros que escreveu. Sua secretária, namorada e por fim esposa falou bem menos, quase nada, se comparadas as cartas com a torrente de escritos do marido.

Ridicularizar o escritor

Os túmulos, as artes dos sepulcros, a divisão de classes sociais que lá ainda permanece, tudo chama a atenção e oferece os vestígios das complexidades que nos envolvem. O túmulo deles é o 47.417, na quadra 11, lado direito.

Todas as vezes que visito o casal trágico, sou visita solitária, mas domingo último, não. Um viúvo arrumava as redondezas do túmulo da esposa, morta de infarto há apenas um mês.

Ainda no cemitério, um túmulo aberto, dentro uma caveira que me assusta. Cabeça, tíbias etc., ao lado de um saco de lixo, cheio. Ai, ai, ai, as coisas públicas, a república. Quanto descuido!

O taxista que me leva agora à catedral diz que soube que o alemão que morava ali matou a mulher, o cachorro e depois se matou. Assim nascem as lendas…

Stefan Zweig era sucesso mundial e como tal foi recebido no Brasil. Foi morar em Petrópolis, onde também vivia Gabriela Mistral, que três anos depois da morte do amigo receberia o Prêmio Nobel de Literatura.

Naturalmente, muitos outros escritores cruzaram a vida de Zweig. Thomas Mann reprova-lhe o gesto extremo, desqualificando o suicida como covarde. Alberto Dines informa na pág. 518 de Morte no Paraíso: ‘Sete anos depois, o filho do escritor, Klaus Mann, se mataria na Europa – e o pai nem ao enterro foi’.

George Bernanos também escreve sobre o suicídio de Zweig: ‘Nestes últimos anos fez-se um grande esforço para pôr em ridículo a missão do escritor’. Bernanos morreu em 1948. Seu filho, Michel, suicidou-se em 1963.

Último pedido de socorro

Hannah Arendt, autora da expressão ‘a banalidade do mal’, criada quando escrevia sobre o julgamento do nazista Aldolf Eichmann, executado na forca, reprovou duramente o gesto de Zweig. O mundo ainda não sabia que ela namorava em segredo o pró-nazista Martin Heidegger…

Na enquete feita pelo jornal Diretrizes, dirigido por Samuel Wainer, ‘Vale a pena viver?’, Cecília Meireles, cujo marido se suicidou, diz: ‘A vida deve ser vivida’. Orson Welles, então inquieto no Rio, diz: ‘O suicídio de Zweig é como a rendição de Cingapura… se Hitler vencer, serei um agitador, guerrilheiro.’

Rubem Braga condena quem sai a ‘corvejar, grasnando, crocitando sobre o corpo de um homem que Hitler matou’ e declara: ‘Respeito a Zweig e à sua companheira’.

Jorge Amado lamenta, em depoimento a Alberto Dines, ter condenado o suicídio: ‘Eu estava exilado no Uruguai quando Zweig suicidou-se. Todo o drama humano do escritor e de sua mulher escapou à minha visão, limitada pelas contingências da época.’

Virgínia Woolf suicidou-se. Emily Dickinson também.

Escrevendo sobre o suicídio de Primo Levi, o também escritor William Styron, de A Escolha de Sofia, quis suicidar-se também, mas mudou de idéia e escreveu Perto das Trevas, provando que suicídio é doença e tem cura.

Vários escritores brasileiros se suicidaram, entre os quais Raul Pompéia, em 1895, e Ana Cristina César, em 1983. Ambos tinham apenas 31 anos.

O bangalô onde morava o escritor e onde o casal teve a última noite de suas vidas continua fechado. Uma faxineira que tinha estado lá na sexta-feira, deixou a janela aberta para entrar um pouco de ar na casa.

O suicídio é um assassinato coletivo. Alguém poderia ter visto algum sinal de que o casal precisava de ajuda. Aquele foi o último pedido de socorro. E quando foi ouvido, ninguém mais poderia ser salvo.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século); www.deonisio.com.br