Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Testemunhos do nosso tempo

Crônicas da vida operária começou a nascer quando comecei a trabalhar numa indústria automobilística no ABC paulista, mais precisamente na Karmann-Ghia, onde fui registrado como ajudante geral, na novíssima carteira profissional, em 17 de março de 1970. Foi fruto de minha vivência ali por três anos, bem como das minhas viagens de trem e ônibus entre São Bernardo do Campo e o bairro de São Miguel Paulista, na zona leste da capital, onde passei a morar após chegar do sertão da Bahia.


Esta nova edição, agora produzida pela editora Lazuli, representa um reconhecimento ao trabalho que venho realizando na literatura brasileira há mais de três décadas. O livro foi lançado, pela primeira vez, em 1978, logo depois de ter uma boa acolhida no Premio Casa das Américas, em Cuba. De lá para cá teve cinco edições normais e uma, em capa dura, pelo Círculo do Livro. Esgotado, agora sai com nova concepção gráfica, trazendo o prefácio original do escritor e jornalista Fernando Morais e acrescido de um posfácio do professor doutor Flávio Aguiar, da Universidade de São Paulo (USP), que analisa a obra no contexto da realidade do país naquele período.


Este Crônicas tem uma trajetória curiosa. No início de 1977, comecei a elaborar os primeiros textos. O primeiro deles foi o conto ‘Trabalhadores’. Ao dar o ponto final, lembrei que havia um jornal nas bancas que tinha o perfil da história contada e, assim, poderia publicá-la. Peguei um ônibus e fui à redação do jornal Versus, na rua Capote Valente, em Pinheiros [em São Paulo]. Cheguei, por azar, num dia de fechamento. Uma correria danada porque a publicação tinha prazos determinados com a distribuidora, a Abril. Com receio e muita timidez, entrei na sala de um dos editores e disse que tinha uma colaboração para o jornal. Ele me informou que a deixasse sobre a mesa e continuou a batucar na velha Remington 100. Deixei o envelope sobre a mesa e cai fora. Decepcionado com a recepção, mesmo assim comprei nas bancas a edição seguinte. Uma grata surpresa: na edição nº 10 de Versus, em quatro páginas ilustradas e na companhia de Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez, estava a minha história sobre operários do ABC.


Surpreso, saí andando sem rumo pelas ruas e não sabia o que fazer com a publicação. Mais tarde, à noite, fui à faculdade, onde fazia o terceiro ano de jornalismo. Quando entrei na sala de aula, um grupo de alunos se debruçava sobre o novo número de Versus, justamente sobre o meu texto, tecendo elogios. Rápido, saí dali de fininho, com receio de ser contaminado pela soberba. Mas, no dia seguinte, meu ego explodiu: o jornalista Marcos Faerman, o editor do jornal que havia me recebido atarefado dias antes, me ligou pedindo que escrevesse um texto com a mesma temática para cada nova edição da publicação mensal. Uma semana depois, entreguei a nova crônica, intitulada ‘Nos olhos, gases e batatas…’. O jornalista Luiz Egypto, também editor do jornal, intitulou a nova coluna: ‘Crônicas da vida operária’. Estavam, assim, batizados os meus relatos dos operários do ABC.


Olhar atento


Quase um ano depois, já esgotada a temática das crônicas, continuei mantendo a colaboração com Versus, agora escrevendo um romance em folhetim. Um dia, ao entregar na redação um breve capítulo mensal, alguém me lembrou que a cubana Casa das Américas havia aberto um concurso para escritores brasileiros e os meus originais, publicados mês a mês em Versus, se encaixavam bem no gênero ‘Testemunho’, segundo o regulamento.


Em plena época repressiva do regime militar (1964-1985), não era fácil o contato com Cuba. O correio, por exemplo, não funcionava entre os dois países. A única solução seria mandar o envelope com os originais do livro para Genebra, na Suíça, na sucursal européia da Casa das Américas. Foi o que fiz. Mandei o envelope e esqueci. Às vezes pensava naquilo, mas, pessimista, achava que o envelope havia se extraviado ou confiscado pelos militares. Um dia, Fernando Morais, um dos jurados do concurso em Havana, me procura e avisa que Crônicas havia agradado aos jurados, embora não tivesse ganhado nenhum prêmio (leia abaixo a apresentação de Fernando Morais sobre os bastidores da premiação).


Crônicas da vida operária foi um sucesso arrebatador. Em menos de dois meses, saíram duas edições. Acredito que o maior interesse que o livro despertou nos leitores foi a linguagem simples, sem rebuscamento, seca, sem adjetivos, e que refletia o modo de falar do migrante nordestino, com suas características de homem rural em contato com a sofrida condição de homem urbano.


O meu trabalho recebeu muitas críticas, a maioria favoráveis, outras nem tanto. Um jornalista, que editava na época a revista Leia, jogou um exemplar do livro no lixo, argumentando que alguém com um nome desse não poderia ser escritor. Um autor, hoje à frente de movimentos homossexuais, se transformou, na mesma Leia, numa feroz crítica de 60 anos, com pseudônimo de mulher e tudo, para desancar no anonimato o meu trabalho.


Felizmente, as reações a favor prevaleceram. Os jornais Movimento e Pasquim publicaram notas positivas. Uma delas partiu do jornalista e escritor Renato Pompeu, publicada no Coojornal, de Porto Alegre. Pompeu disse que…




‘…nem só lições nos fornece Roniwalter Jatobá, mas também o prazer da leitura. A linguagem é viva e ritmada, uma flor que nasce da vida operária. Uma linguagem que exige respeito e honra: ele aprendeu com os trabalhadores a honrar o ofício que exerce, no caso, o de escritor. A noção de honra dos trabalhadores é intensa e concreta. Por exemplo, vemos como os operários retratados por Jatobá se revoltam não só contra o facão, o baixo salário, as más condições de trabalho. Eles se sentem revoltados também porque são obrigados a produzir automóveis de má qualidade, com a colocação de chapas que qualquer um poderia ver que logo enferrujariam. Assim os operários são obrigados a produzir artigos ruins e se sentem mal porque têm o orgulho de seu trabalho’.


Com o sucesso do livro, fui a muitas escolas apresentar e discutir a obra. Nessas horas sentia que a minha literatura estava sendo útil para alguma coisa. Não queria – e nem hoje quero – publicar livros e não ser lido. E também não queria me colocar numa redoma de cristal, como fazem muitos escritores neste país, escrevendo para meia dúzia de amigos e assumindo uma postura intelectual, de donos da verdade.


Fiz leitura dos textos em bairros da periferia paulistana. Muitas pessoas gostavam, pois quase sempre se identificam com as histórias. Porém outras pessoas não gostavam pelo mesmo motivo, isto é, a identificação com os textos. Elas diziam que as histórias faziam lembrar determinadas épocas que preferiam esquecer.


Um grande amigo, o poeta Arnaldo Xavier (1947-2004), foi quem me deu uma boa definição dos meus livros, sobretudo deste Crônicas da vida operária. ‘Se um extraterrestre chegasse a São Paulo, descesse em São Bernardo do Campo e quisesse saber como era o cotidiano nas fábricas do ABC nos anos 1970, o único registro seria a sua literatura’, dizia ele.


Exageros de amigo à parte, também acho que ela revela por dentro o inferno da indústria automobilista do ABC, descrito por quem o conheceu como trabalhador; o inferno dos turnos de trabalho; o inferno da mais-valia que se transforma em lucros multinacionais e em danosos investimentos de estrangeiros na Amazônia; o inferno do facão (a ameaça permanente da demissão, como instrumento de chantagem contra os que se recusam a fazer horas extras ou a trabalhar nos domingos). E tudo isso com o olhar atento a tudo que aprendi de literatura, insuflando alma aos personagens, cinzelando seus rostos, criando suas identidades perdidas e sempre em busca da felicidade, supremo objetivo dos homens.


A parcela pobre


Em 2005, o escritor Luiz Ruffato fez uma seleção e prefaciou uma série de contos, boa parte deles presentes em Crônicas da vida operária, que refletem o trabalhador no difícil dia-a-dia de São Paulo. Generoso, Ruffato dirige seu olhar crítico para o meu trabalho. ‘Se nos debruçarmos sobre a produção ficcional brasileira ao longo do tempo, poucas vezes vamos flagrar personagens exercendo algum tipo de atividade laborativa’ escreve Ruffato.




‘Em geral, os escritores nacionais, bem-nascidos, satisfazem no próprio âmbito da classe média as suas necessidades de criação – nicho onde o trabalho nem sempre é bem visto. Quando extrapolam os seus horizontes, caem na tentação ou de idealizar o trabalhador, exibindo a exploração de que é vítima para combater politicamente sua opressão, ou de romantizar a figura do malandro ou do bandido, como pretenso contraponto rebelde às injustiças da sociedade. Isso porque, talvez, a literatura de boa qualidade exija uma dose mínima de veracidade – e são escassos os autores brasileiros conhecedores das mazelas da classe trabalhadora. Roniwalter Jatobá é uma dessas exceções. Ele praticamente instaura a literatura proletária brasileira – e sintomaticamente conta com escassos herdeiros. Antes, o trabalhador urbano pode ser entrevisto em um ou outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 – ou em um ou outro conto – de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Contemporaneamente, alguns poucos se aventuraram no tema. Mas, sem dúvida, Jatobá é pioneiro ao alicerçar no operário a sua obra.’


Sou um escritor obcecado com o trabalho que me propus a fazer nos começo dos anos 1970, que é dar voz ao trabalhador em São Paulo, principalmente o migrante nordestino que vive na metrópole. Pertenço à ala dos ficcionistas brasileiros ligados à realidade, e com o fito de comprovar a existência de uma temática nossa, brasileira, longe de esgotar-se. Escrevo com o que sou. Sou o que há de mim, apenas. Não podemos esquecer que na década de 1950, cerca de 500 mil brasileiros deixavam, anualmente, o Norte/Nordeste em busca do ‘Eldorado’ paulistano. Chegavam de trens, ônibus, paus-de-arara e mesmo a pé. São Paulo se industrializava, fábricas brotavam nas periferias, casas e barracos nasciam da noite para o dia. Ao redor de indústrias, nordestinos fatigados lutavam pela sobrevivência. No trabalho duro e perigoso sonhavam com o futuro. Em precárias moradias pagavam caro as misérias de um país de latifúndios. Assim, há milhares de sagas pessoais, impressionantes até, contidas nesse pedaço de nossa história recente. E é nessa intensa leva migratória que busco (tento) fazer a minha literatura. Um caminho ficcional, vamos dizer meio difícil: textos sobre a parcela pobre do povo e não, como é costume de grande parte dos escritores brasileiros, o mundo limitado e mesquinho da classe média.


Lições de Pound


A literatura tem um papel fundamental na vida das pessoas, bem como tem importância nos tempos atuais em que todos vivemos. Na verdade, tem e sempre terá. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. ‘Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais’, diz o escritor peruano. ‘Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais’.


Filho de pais semi-analfabetos, aprendi nos grandes romances a riqueza do legado da criatividade humana. A Bíblia com O Antigo Testamento, durante muito tempo, foi meu livro de cabeceira. A escola sempre teve um peso fundamental na descoberta da literatura, já que não tinha livros em casa. Durante o ginásio numa escola presbiteriana, em Campo Formoso, no sertão baiano, aprendi a gostar de ler e conheci os clássicos. Já durante a faculdade de jornalismo em São Paulo, conheci professores que amavam ler e que me levaram a dar os primeiros passos rumo à literatura.


Lembro como se fosse hoje de Ana Teresa Pinto de Oliveira, professora de literatura na faculdade e minha primeira leitora. Lembro do seu olhar atento, incentivador: ‘Vá, mande seus contos para as revistas literárias’. Em salas de aula ela me passou a idéia de que eu poderia ser escritor e, se possível, bom escritor. Ou me mover sempre na busca daquilo que, segundo Ezra Pound, seria a principal obrigação do escritor: procurar manter viva a sua língua pátria e a herança de sua cultura.


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Operários no Prêmio Casa das Américas, em Cuba


Fernando Morais


Prefácio de Crônicas da vida operária, de Roniwalter Jatobá, 80 pp., Editora Lazuli, São Paulo, 2006


Quem pela primeira vez me falou em Roniwalter Jatobá foi o escritor Renato Pompeu, festejado autor do romance Quatro-Olhos. Em entrevista que aceitou conceder-me para o jornal Versus, mais ou menos um ano atrás, Renato desancava, com uma crueldade assustadora, a produção literária brasileira dos últimos anos. ‘Depois de Guimarães Rosa não me lembro de ter lido alguma coisa que preste’, sentenciava sem presunção ou afetação. Passado o primeiro momento de ódio, ele repensou um pouco os critérios e abriu raras exceções. Entre elas estava Roniwalter. Um jovem autor, revelou Renato, que escrevia muito bem e que era um dos poucos, no Brasil de hoje, a escrever sobre um tema meio fora de moda na nossa literatura: a classe operária. Quem conhece a língua crítica e demolidora de Renato Pompeu sabe o que significa um elogio como esse.


Como são raros os elogios de Renato a quem quer que seja, e como provavelmente não haverá no planeta duas pessoas chamadas Roniwalter Jatobá, o nome ficou gravado na memória. E ressurgiu meses depois, em Havana. Eu acabava de chegar à capital cubana como jurado do Prêmio Casa das Américas, quando recebi um caixote de papelão contendo trinta e duas obras de gênero ‘Testemunho’, que deveria julgar juntamente com seis outros latino-americanos de distintos países. Rodolfo Puiggrés, ex-reitor da Universidade de Buenos Aires, peronista montonero aí dos seus sessenta e cinco anos e também jurado de ‘Testemunho’, aproximou-se de mim e apontou o charuto que trazia nos dedos para a caixa de papelão: ‘Tem duas coisas ótimas aí, entre as obras que li. Uma é o livro do Eduardo Galeano, Dias y noches de amor y de guerra. A outra fala dos operários lá da sua terra, escrita por um tal de Ratôba‘.


Ratôba, descobri logo depois, era como Puiggrés conseguia pronunciar o sobrenome de Roniwalter, graças a um acento agudo comido pela cópia xerox. E a obra era esta Crônicas da vida operária, que só não terminou o Prêmio Casa de 1978 com glória maior porque os regulamentos são expressos — em cada gênero, só dois premiados. A cada um dos sete jurados de ‘Testemunho’, entretanto, doeu muito não poder colocar estas ‘Crônicas’ entre os primeiros lugares. Sem que aí entrasse a menor cabala da minha parte, Roniwalter lutou até o fim, e perdeu por pouquíssimas cabeças para Contra vento y marea, obra coletiva que recebeu o primeiro prêmio, e Dias y noches, de Galeano, colocada em segundo lugar.


Experiências políticas


Embora seja velha conhecida de quem se interesse pela vida dos habitantes da periferia de São Paulo, a temática de Roniwalter que tanto impressionou os latino-americanos ainda nos pega de surpresa, especialmente neste livro. Mesmo sendo um jovem escritor mineiro, seu ponto de partida não é a galinha que cisca minhocas no fundo de quintal de Belo Horizonte, nem mesmo a nostalgia das porteiras e carros de boi que até em Minas já foram engolidos pelo progresso.


A explicação talvez esteja no fato de que, enquanto sua geração decifrava angústias existenciais, Roniwalter pilotava um caminhão de carga pelas estradas do norte da Bahia, ou apertava parafusos como operário da indústria automobilística de São Paulo. Por isso, suponho, a conversa de Roniwalter é mais dura. Seus personagens, calados e magros, falam de uma gente que chega a São Paulo de pau-de-arara, viaja como pingente nos trens de subúrbio e fabrica máquinas e edifícios de que jamais desfrutará.


Pouco antes de morrer, Paulo Pontes lamentava que a produção cultural brasileira refletisse muito pouco sobre a realidade da população, daqueles noventa milhões que não se beneficiaram do ‘milagre econômico’. Este livro de Roniwalter começa a cumprir essa função, e com uma grande vantagem sobre as tentativas que se tem visto nos últimos tempos. Este é um livro sobre e para o operário urbano, o ex-camponês que virou metalúrgico ou peão de obra, o bóia-fria que se perdeu na cidade grande. Essa obsessão de fazer um livro popular explica a insistência com que Roniwalter pedia a seu editor que mandasse compor o texto em letras tão grandes. ‘O pessoal fica com a vista comprometida muito cedo, não consegue enxergar letra miúda’, explicava o autor com sua timidez, esta, sim, muito mineira.


Há dias Roniwalter ouvia um grupo de amigos relatando suas experiências políticas do final dos anos 60 e lamentava sua alienação a respeito de quase tudo que escutava. Na época das passeatas ele convivia com o povo do interior da Bahia e do norte de Minas, ou com os metalúrgicos da Karmann-Ghia, na zona industrial de São Paulo. Ao terminar a leitura deste livro, percebe-se que Roniwalter estava no lugar certo.


[Fernando Morais é jornalista e escritor; publicou, entre outros livros, A Ilha, Olga e Chatô – O rei do Brasil]


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Uma obra singular e plural


Flávio Aguiar


Posfácio de Crônicas da vida operária, de Roniwalter Jatobá, 80 pp., Editora Lazuli, São Paulo, 2006


Reler este Crônicas da vida operária vinte, quase trinta anos depois é como mergulhar no nosso mundo particular das madalenas de Proust. Todo um universo de lembranças, umas mais presentes, outras que estavam perdidas, vem à tona. É um mundo envolvente de noites em claro, de dias sombrios, de medos e coragem, suores frios ou ardentes, gritos lancinantes, viagens sem volta, tempo parado, espaços vertiginosos.


Era o mundo da ditadura, aquele que nunca ia terminar, era irreversível, aquele que proclamava: ‘o Brasil era o país do futuro; agora o futuro chegou’. E o futuro era aquilo, aquela mistura de horror infinito com uma capacidade de resistência sempre em teste.


Poucas vezes na história do Brasil a vida humana foi tão degradada. Isso não se deu apenas nas câmaras de tortura e nos assassinatos ostensivos ou secretos; na censura ao jornalismo e às artes, na selvageria das delações nas universidades e escolas, e assim por diante. Havia também a degradação do cotidiano, a institucionalização da mentira e da fraude como estilo de vida. Foi assim na proclamação daquele ‘Brasil grande’, ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, lemas que sintetizavam a implantação do delírio coletivo – e muitas vezes consentido – em lugar da percepção e do sonho.


Este livro captou este momento, olhando desde logo os seus escombros, as vidas em estado de pobreza, com dignidade ou em ruínas, que davam o ritmo secreto daquele Brasil, o não-contado, o descontado. É uma obra singular e plural ao mesmo tempo. É singular, pois postula a existência de ‘uma vida operária’ a relatar. É plural, pois esta vida, que é uma, é relatada da pluralidade dos pontos de vista de suas múltiplas narrações, sempre em primeira pessoa.


Esse ponto de vista da primeira pessoa tem especial significação na obra. É o testemunho dessa multiplicação dos olhares. Roniwalter evita o engano – tantas vezes cometido – de querer enfeixar a multiplicidade possível num único olhar – aquele que seria ‘o justo, amplo e correto’, diante da alienação parcial ou total dos demais.


Roniwalter, com a serenidade de seu jeito de pessoa, olha essa variação de olhares, e os reconstrói através de sua própria lembrança. E o faz com uma prosa simples, mas não simplória; chã, mas penetrante, seguindo os meandros das esperanças parcas e desilusões muitas de seus personagens.


Na época esse tipo de literatura enfrentou um paredão de preconceitos. Houve crítica que o denunciasse como populista, naturalismo requentado, prosa referencial, superada, diluidora etc. Embaida por seu próprio modismo formalista, faltava a essa crítica a sutileza necessária para perceber que ali medravam aspectos criadores insuspeitos, como o de debuxar vozes antes quase inaudíveis no terreno literário, a não ser pelo viés repetido do pitoresco ou da falta de educação formal, as vozes do mundo do trabalho.


A literatura ouvia, como radar, aquilo que a ditadura silenciava. Criou-se assim um estilo peculiar de época, algo entre o confessional e o testemunhal. A confissão é uma palavra intermediária. Pertence ao domínio do privado; trazida para a literatura, ela expõe a alma privada no domínio público.


Com isso, na moldura daquele tempo, a literatura dá testemunho: atesta, em primeiro lugar, que aquelas vozes existem e merecem ser escutadas. Essa literatura afirma portanto a palavra do escritor como herdeira de um patrimônio coletivo, ainda que original em sua individualidade.


Acho que este é um dos principais legados de Roniwalter e os de sua geração: o testemunho de que aqueles tempos dilacerantes não dilaceraram de todo os espíritos.


De quebra, se perscrutar bem, quem sabe o leitor e a leitora não verão passar em algum refolho, por entre as migrações, despejos, grandezas e misérias dessa ‘vida operária’ de antanho, a sombra de um presidente da República.


[Flávio Aguiar, professor de literatura brasileira da USP, é autor de Anita, prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro na categoria romance em 2000 e de A comédia nacional no teatro de José de Alencar, prêmio Jabuti na categoria ensaio em 1984]

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Jornalista e escritor